O anúncio dizia: “Amanhã você não
vai pagar o seu cafezinho”.
Certamente era um café que se
inaugurava, procurando cativar o público. Depois do famigerado Petit
Prince de Saint-Exupéry, cativar tornou-se palavra de consumo
geral. Como o cafezinho.
Pois não era. A casa fechava-se e, a
título de despedida sentimental, não cobraria o cafezinho que fora
objeto do seu comércio durante trinta anos.
O frequentador suspirou:
— Há vinte anos que tomo café nesta
casa, e logo quando ela vai acabar é que institui o fornecimento
gratuito.
Acrescentou:
— Não é pelo preço do cafezinho, que
eu sempre paguei sem sacrifício, e continuaria a pagar, se a casa
continuasse. É pela espécie de sonho acordado que isso me provoca,
sonho que dura um momento, e se esfarela: as coisas de graça. Elas
só ficam sendo de graça na hora em que deixam de ser coisas.
— Mas vem cá, você queria que tudo
fosse de graça a vida inteira? — perguntou o amigo.
— Queria. Por que não? Se este
cafezinho me é servido de graça neste instante, e se eu voltar
daqui a cinco minutos será servido outra vez de graça, e mais cinco
minutos depois, e mais cinco e mais cinco… até eu ficar entupido
de café e bradar: chega, não quero mais! por que não posso pensar
que uma sociedade bem organizada serviria tudo a todos, a troco de
sorriso?
O outro ia retrucar com as leis da
economia, as lições do dr. Gudin, o bom senso etc., mas o rêveur
éveillé não lhe deu folga:
— Saio daqui mal-acostumado, vou ao
Nino’s, janto uns camarões, retiro-me despreocupado, pois já não
se pagam camarões no Brasil. Nisso corre o garçom ao meu encalço:
“Doutor, o senhor se esqueceu da nota!”. “Que nota?”,
respondo. “Eu sorri para você e para o restaurante, não é esse o
pagamento?” Ele abana a cabeça, desolado: “Continuamos cobrando
em cruzeiros, doutor. E olhe que nos hotéis do seu Tjurs já se
calcula em dólar”. Veja no que dá a ilusão do cafezinho grátis.
No entanto, ao ler o anúncio, eu já estava inclinado a não cobrar
de ninguém os meus serviços.
— E mudar-se para o hospício.
— Todos se mudariam para o hospício,
isto é, não haveria hospício, pois ninguém mais ia enlouquecer
por falta ou excesso de dinheiro. Você chama a isso de sociedade
utópica, eu chamo simplesmente de sociedade, nome que anda
falsificadíssimo. Societas generis humani, para gastar o meu
Cícero, que nem de graça cai mais no vestibular. Repare que não
estou pedindo nada de graça no sentido comum, de alguém dar a
outrem um par de sapatos para sentir-se superior e tirar diploma de
generoso. O que eu proponho (proponho é modo de dizer, ninguém me
escutaria se eu propusesse isso ao Ministério do Planejamento ou aos
fabricantes de geleia) é dar de graça as coisas, retirando valor às
coisas, e valorizando o ato de se desfazer delas. Todos passariam a
oferecer serviços e bens, de que todos se utilizariam sem recorrer a
financiamento, pé-de-meia, desfalque, insônia, úlcera duodenal,
enfarte, assalto, homicídio etc. O trabalho deixaria de ser motivo
de injustiça, e a produção deixaria de ser causa de guerra. No
começo, a gente faria cara feia, depois se acostumava com esse
esporte de oferecer sem cobrar, já que a outra parte, de receber sem
pagar, não causaria a menor dificuldade. Como isto não é possível
agora, e suspeito que não o será nos anos que possivelmente ainda
terei de vida, que é que vou fazer com este cafezinho grátis de
última hora?
— Beber, uai.
— Solução de mineiro, está se vendo.
Nada disso. Trouxe esta garrafinha e vou derramar nela o cafezinho,
para guardar como lembrança. É o sinal de um mundo como poderia ser
e não é. Pode beber o seu, que o meu ficará guardado no aparador
lá de casa. Levei trinta anos para conquistar este troféu. O mundo
não é de graça porque não quer. Ou por burrice.
Disse, derramou, e saiu, portando com
unção a garrafinha de café gratuito.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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