Fonte da imagem: MFRural
Depois da janta os homens se reuniam para
contar estórias e lorotas enquanto pitavam. A meninada se misturava.
Era debaixo de uma paineira enorme, barriguda, com um oco no tronco.
Eu imaginava que naquele oco deveriam viver criaturas encantadas que
só apareciam depois da meia-noite. Meia-noite era hora do medo,
sinistra. Por isso, à meia-noite, todo mundo tem de estar em casa,
com portas e janelas trancadas, na cama. Um menino afirmava,
categórico: “À meia-noite eles soltam a bicharada...” . Nunca
perguntei quem eram “eles”. Essas entidades noturnas foram também
objeto do pensamento de Jorge Luis Borges. Dedicou um dos seus
ensaios a uma dessas bestas que, em inglês, se chama “nightmare”,
palavra que traduzida literalmente é “égua da noite”, uma égua
que galopa durante a noite. Galopa onde? Nos sonhos. São os
pesadelos. Pesadelo é uma égua desembestada no sono.
A paineira ficava ao lado dos trilhos do
trem cujos marimbondos de fogo saíam da chaminé da maria-fumaça e
chamuscavam suas folhas e flores. Quando a paineira florescia e suas
flores caíam, nós, crianças, as transformávamos em exércitos de
soldados com penachos na cabeça.
Os serões masculinos eram um festival de
mentiras. E todo mundo sabia que era lorota. Mas ninguém desmentia.
Era falta de educação. O corpo, mesmo sabendo que é mentira, fica
todo arrepiado. Eu gostava de estar na roda dos mentirosos que
acreditavam nas mentiras. Só muito mais tarde compreendi que não se
tratava de um festival de lorotas. Tratava-se de uma oficina de
literatura. Porque literatura se faz com coisas que não existem. “O
que não existe é mais bonito.”
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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