quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A paneira

Fonte da imagem: MFRural

Depois da janta os homens se reuniam para contar estórias e lorotas enquanto pitavam. A meninada se misturava. Era debaixo de uma paineira enorme, barriguda, com um oco no tronco. Eu imaginava que naquele oco deveriam viver criaturas encantadas que só apareciam depois da meia-noite. Meia-noite era hora do medo, sinistra. Por isso, à meia-noite, todo mundo tem de estar em casa, com portas e janelas trancadas, na cama. Um menino afirmava, categórico: “À meia-noite eles soltam a bicharada...” . Nunca perguntei quem eram “eles”. Essas entidades noturnas foram também objeto do pensamento de Jorge Luis Borges. Dedicou um dos seus ensaios a uma dessas bestas que, em inglês, se chama “nightmare”, palavra que traduzida literalmente é “égua da noite”, uma égua que galopa durante a noite. Galopa onde? Nos sonhos. São os pesadelos. Pesadelo é uma égua desembestada no sono.
A paineira ficava ao lado dos trilhos do trem cujos marimbondos de fogo saíam da chaminé da maria-fumaça e chamuscavam suas folhas e flores. Quando a paineira florescia e suas flores caíam, nós, crianças, as transformávamos em exércitos de soldados com penachos na cabeça.
Os serões masculinos eram um festival de mentiras. E todo mundo sabia que era lorota. Mas ninguém desmentia. Era falta de educação. O corpo, mesmo sabendo que é mentira, fica todo arrepiado. Eu gostava de estar na roda dos mentirosos que acreditavam nas mentiras. Só muito mais tarde compreendi que não se tratava de um festival de lorotas. Tratava-se de uma oficina de literatura. Porque literatura se faz com coisas que não existem. “O que não existe é mais bonito.”

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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