Cedo,
uma manhã, Leslie e Winifred vieram buscar Nando na camioneta que
haviam alugado.
— É
indispensável — disse Leslie — que você venha visitar conosco o
Engenho de Nossa Senhora do O. É uma coisa que você não conhece.
Vocês, aliás, aí no mosteiro. Não sei como d. Anselmo pode
despender tanta e tão boa energia desobstruindo túneis quando nos
campos em torno nasce um mundo inteiro sem qualquer intervenção da
Santa Madre Igreja.
— A
Igreja, em primeiro lugar, se empenha no seu parto permanente —
disse Nando.
Era
difícil conversar na camioneta em marcha. Os bárbaros, foi pensando
Nando, pensam que fazem, fazem e pronto. As ideias em aventura pela
história crescem lentas. Tranquilas batatas grelando na terra escura
e fresca. Primeiro, maior nação latina. Segundo, maior nação
católica. Terceiro, única nação que ainda possui inocentes
recriados sine labe originale. Imperium Sine Fine aqui.
Augusto-Montoya e Cristo. Batata.
— Vamos
conversar com os foreiros
— disse
Leslie ao chegarem. — Eu vou à casa da mocinha, a Maria do Egito —
disse Winifred. — Vê se não sermoniza o Nando demais.
Leslie
despediu Winifred com um gesto impaciente.
— Venha
comigo, Nando — disse ele. — O desamparo não é apenas social. É
religioso também. Você não encontra um padre aqui, preocupado com
essa gente. Os doentes em geral morrem sem extrema-unção. Ou morrem
de sair da cama para irem em busca de padre que lhes dê a
extrema-unção.
— Mas
o engenho tem sua capela — disse Nando apontando-a. — Há três
anos sem padre — disse Leslie.
— E
sem nenhuma lei. Essa gente, a quem nem o Estado nem a Igreja jamais
deram coisa alguma, está sendo trabalhada pela Sociedade Agrícola e
Pecuária dos Plantadores, que é em grande parte obra de Januário.
A Sociedade os arregimentou para apoiarem com um desfile a
candidatura de um prefeito que promete socorrer os camponeses. Pois
os camponeses desceram e foram dispersos aos trancos e coronhadas
pela polícia. Voltaram para suas casas, meio tontos de medo e de
pancada, mas a polícia insistiu na perseguição, veio mais tarde
varejar as choupanas, prendendo os mais valentes, os mais dignos.
Prendendo e de novo batendo. Os jornais deram três linhas ao caso.
Leslie
acenou para um camponês.
— Lázaro,
venha cá.
— Sim,
seu Lelo — disse Lázaro.
— Conta
aqui ao padre Nando, lá do mosteiro, como é que te trataram na
polícia.
— Ah,
eu guardei a cara do sargento que me cuspiu em cima. Aquele eu corto
de peixeira um dia. Os que me bateram ainda vai. Mas foi por nada,
seu padre. Eu sou homem temente a Deus e nunca tinha tido
conhecimento de polícia. Mas o sargento me cuspiu. Feito eu fosse
uma poça d’água na rua que a gente cospe assim de desafogo, pra
ver se acerta. Eu corto ele, seu padre.
— Você
não deve lutar com as mesmas armas — disse Nando. — Lute pelos
seus direitos mas perdoe quem lhe ofendeu pessoalmente.
Impaciente,
vermelho, pronunciando os nomes de qualquer jeito Leslie demonstrava
conhecimento íntimo da situação.
— Conta
aqui ao padre Nando, Nequinho — disse Leslie —, a história da
desonra de tua filha pelo capataz.
— Eu
conto mas Jesus Cristo já me falou. Já me esclareceu para corrigir
os malfeitos. Bença, padre.
— Deus
te abençoe — disse Nando. — Desgraçaram tua menina?
— Quase
na cara da gente. Aquele porco. Não tinha dez braças da casa de
farinha. Houve até quem escutou um grito da menina antes dele tapar
a boca dela. Grito pertinho. E depois a gente ainda ouvia o galope do
cavalo dele quando Maria do Egito já estava na porta de casa toda
molhada de lágrima e com o sanguinho ainda quente no vestido dela.
Nando
fez o sinal da cruz, num momento de genuíno horror.
— Que
Deus perdoe este monstro. Você deu parte dele, Nequinho?
— Deu
— disse Leslie — mas ainda não aconteceu coisa nenhuma. O
capataz é o braço direito do senhor de engenho, que deve ter achado
a história compreensível, até corriqueira. E são os dois que
chamam a polícia para prender os que se filiaram à Sociedade dos
Plantadores e quiseram prestigiar com sua passeata o candidato
esquerdista. E só prestigiar, porque votar não podem, pela lei
brasileira. Você sabe ler e escrever, Nequinho?
— Sei
não senhor — disse Nequinho. — Mas sei ouvir. E o Senhor me
falou.
— É
preciso estudar os meios, Nando, de efetivamente informar o Estado e
o país do que acontece nesses engenhos.
— Sem
dúvida — disse Nando — e tenho certeza de que as reportagens que
você e Winifred vão fazer terão a maior repercussão.
— Mas
vocês, brasileiros, é que precisam fazer alguma coisa a respeito —
disse Leslie. — Que é que vocês vão fazer?
Que
chatos, Senhor, esses estrangeiros com sua eterna pergunta! Fazer o
quê? Primeiro as bases espirituais, a correção de erros
históricos. Fazer, fazer! Objetividade. Índio-minério. Y en
toda la villa de San Pablo no habrá más de uno a dos que no vayan a
cautivar índios con tanta libertad como se fuera minas de oro y
plata. Haciendo vidas de brutos sin acordarse de sus casas y de sus
mujeres legítimas.
— É
essa a moça? — disse Nando ao chegar com Leslie à choupana de
Nequinho.
— Sim
— disse Winifred. — Pobrezinha.
— Só
mesmo a morte desse homem poderia consolar uma família humilhada e
ofendida assim — disse Leslie. — É incrível que isto aconteça
em nossos dias.
— O
pior — disse Winifred — é que o Nequinho parece que ficou meio
doido. Diz coisas terríveis à filha.
Cada
uma sentada no seu banco ao pé da mesa tosca, mãe e filha estavam
mudas. As outras crianças de Nequinho brincavam pelos cantos, mas
mãe e filha tinham sido visitadas pela tragédia. Estavam de nojo.
— Deus
que ajude a gente, seu padre — disse a mãe a Nando. — Só mesmo
Deus Nosso Senhor. O pai de Maria do Egito não fala mais com sua
filha.
— Não
fala com a moça por quê? — disse Leslie.
— Vai
aguardar até a lua trazer o sangue natural de Maria do Egito —
disse a velha. — Falou que se a semente do capataz Belmiro tiver
barrado o sangue dela ele mata Maria do Egito e o capataz Belmiro.
— Eu
vou conversar com seu pai, minha filha — disse Nando a Maria do
Egito.
A
menina meneou afirmativamente a cabeça. Abúlica. Teria uns
dezesseis anos, pensou Nando. Negro cabelo espichado de índia. Em
pouco estaria desbotada, baia como as caboclas mais velhas. Como
estava agora ainda podia ter sido mãe de heróis nos Povos de João
Batista, Nicolau, Luís Gonzaga, Lourenço, Miguel, Borja e Ângelo.
Nequinho
assomou à porta. Nando travou do braço dele e o foi levando para
fora, seguido de Leslie.
— Você
sabe, Nequinho, que nem em todo o resto da vida dela tua filha Maria
vai precisar mais de você do que agora? — disse Nando.
— Deus
já me falou o que é que eu tenho que obrar no caso de Maria do
Egito — disse Nequinho. — Ele me falou na noite do estupro dela.
— E
o que foi que Deus te disse?
— Ele
falou: se a sustância que o Belmiro deixou no ventre da Maria
começar a virar gente tu sacrifica o Belmiro e a sucessão do
Belmiro no ventre da Maria. Tenho que matar a filha e o genro que o
diabo me mandou.
— Deus
não pode ter dado um conselho criminoso a você — disse Nando. —
Foi sua própria e justa cólera contra Belmiro que falou, Deus já
sabe se Maria do Egito vai ou não vai ficar grávida de Belmiro. E
se ela ficar, cumpra-se a vontade de Deus.
— Deus
não pode ter essa vontade não senhor, com seu perdão e sua bênção
— disse Nequinho. — E foi a voz dele que me falou.
— Pois
Deus me mandou aqui hoje — disse Nando — para desfazer essa
medonha intriga do demônio. Se Maria do Egito tiver filho, o filho
será do mosteiro. Nós mesmos criamos a criança se for menino e
daremos a criança às freiras se for menina.
Nequinho
abaixou a cabeça.
— Não
tinha dez braças da casa de farinha — disse Nequinho. — Pra todo
o mundo conhecer o fato. Sanguinho novo no vestido amarelo. Mais
dois, três dias a gente sabe se Deus perdoou. É tempo do outro
sangue.
— Pois
então você não está vendo — disse Nando — que Deus não ia
querer que você matasse sua própria filha, e filha que está
sofrendo tanto?
— Então
por que é que ele me falou? — disse Nequinho.
— Deus
não manda matar, manda amar, manda perdoar. Você não vê que não
pode ter sido a voz de Deus? Deus mandou Abraão sacrificar o filho
dele, mas susteve o braço de Abraão. Deus queria apenas
experimentar a fé de Abraão — disse Nando.
— Se
o Senhor travar do meu braço eu também não sacrifico Maria do
Egito — disse Nequinho. — Até antes disso eu posso ter o sinal.
Se Deus derramar o sangue do ventre dela na lua certa está falado
comigo.
Nando
ficou um instante atônito.
— Nequinho,
eu compreendo teu sofrimento de pai e esta loucura que o sofrimento
te dá. Mas Deus disse “Não matarás!”. Se matares tem prisão
dos homens e tem inferno de Deus.
Nequinho
olhou Nando longamente.
— Com
sua bênção e com sua permissão — disse Nequinho. — É a
primeira vez que seu padre vem por estas bandas, não é?
— Sim
— disse Nando.
Nequinho
virou as costas e foi andando. Leslie botou a mão no ombro de Nando.
— Eles
se habituaram a falar diretamente com Deus — disse Leslie. — Sem
intermediários.
Winifred
se acercou. Vinha com ela, e parou ao seu lado, um camponês
cabisbaixo, chapéu de palha de carnaúba enterrado até os
sobrolhos.
— Vamos
embora, minha gente. Estou cansada. Quedê a chave da camioneta?
Leslie
não gostou da interrupção.
— Calma
— disse. — Cansados estamos todos. O que é que deu em você,
Winifred?
Mas
ao fitar a mulher que se limitou a mover os olhos na direção do
camponês, Leslie compreendeu.
— Bem,
é melhor a gente ir mesmo. Basta a cada dia o mal que nele se
contém. O cabra aí quer carona, não quer?
— Quer
sim. E ele está bem no nosso caminho.
Foram
andando na direção do carro e Nando disse:
— Antes
de mais nada vamos à polícia. Esse tal Belmiro precisa ser preso
sem perda de tempo. Se houver um mínimo de justiça é provável que
Nequinho abandone sua terrível obstinação.
Em
voz baixa, que só mesmo as pessoas ao seu redor podiam ouvir, mas
carregada de paixão, o camponês que chegara com Winifred falou:
— À
polícia já fui. Levei o advogado da nossa Sociedade. Já tentei até
prender com minhas próprias mãos esse monstro, Belmiro, mas o dr.
Beltrão deu “férias” ao capataz. Diz que não sabe para onde
ele foi. O caso parou na estaca zero.
Nando
tinha começado a se voltar com assombro para o camponês mas Leslie
lhe apertou o braço. Olhando melhor, Nando reconheceu Januário sob
o disfarce. Entraram na camioneta, Nando e Januário no banco de
trás, Leslie e Winifred na frente. Quando o carro deu a partida
Januário disse:
— Belmiro
eles não prendem, mas a mim prendem por “agitação” se me
encontram no Senhora do O. Os canalhas! A gente tem de acabar
derrubando tudo isto na marra, como quer o Levindo.
Januário
tirou o chapéu de palha. Seu rosto pequeno mas de traços bem
acentuados parecia cortado em pedra. Amassada pelo chapéu, até a
cabeleira de Januário, em geral esvoaçante, achatara-se contra a
cabeça em cachos metálicos, feito um capacete. As costeletas do
cabelo vinham morrer em cima de masseteres tão contraídos que
tornavam quadrada a cara. Nando se lembrou com um arrepio da arma de
Hosana. Januário parecia prestes a detonar a qualquer momento.
— Há
outros meios — disse Nando.
— O
engraçado é que quando se fala em violência no Brasil é como se a
gente pudesse decidir contra ou a favor da violência quando a
verdade é como diz o Levindo: eles escolheram a violência há muito
tempo. A violência de Belmiro não é dele só. A violência contra
mim é do sistema inteiro.
— O
mal da violência — disse Leslie — é que depois há tudo a
refazer. E a gente corre o risco de vencer sem convencer. Aliás,
quem mais pode ajudar uma reforma não violenta no campo brasileiro é
a Igreja.
— Ah,
isto é um fato — disse Januário. — Eu já estive com o
arcebispo, com d. Anselmo, com d. Ambrósio. Se ao menos a Igreja nos
benzesse as armas!
— Para
disfarçar a violência? — disse Nando.
— Para
ajuizar quando a violência se torna justa — disse Januário —,
inevitável.
— A
palavra dos Evangelhos é outra — disse Nando.
— Ah,
isto não — disse Januário.
— E
a espada que Cristo trouxe?
Ai,
gemeu Nando consigo mesmo, lá vem São Mateus, 10,34. Das 36.450
palavras de Jesus registradas no Evangelho nenhumas são talvez
citadas com mais frequência e mais em falso. Jesus podia pensar
apenas no Reino do seu divino Pai porque o Reino deste mundo,
imperfeito como sempre será, chegava no seu tempo de vida à
perfeição augusta. Seu Pai celeste preparara Roma como quem arruma
um régio berço. O mundo mundano vivia à sombra da águia que um
dia se colocaria à sombra sobrenatural da pomba do Espírito Santo.
Virgílio ouvira o som dos passos que começavam a palmilhar o solo
da história e estava assinalado para levar um dia o poeta de Deus à
presença de Matilde, Lúcia, Beatriz.
Antonio
Callado, in Quarup
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