quinta-feira, 27 de junho de 2019

Quebrar armadilhas (trecho)

Eu sou um poeta e sinto-me feliz pelo fato de a poesia atuar como estrela inspiradora para um encontro desta natureza. A poesia prova assim não ser apenas um gênero literário, mas um olhar revelador de mistérios e uma sabedoria resgatadora da nossa profunda humanidade. A poesia é um modo de ler o mundo e escrever nele um outro mundo. Buscar iluminação na voz de um poeta já é um primeiro quebrar de armadilhas. Este Congresso da COLE está começando bem antes mesmo de iniciar os seus trabalhos.
Compete-nos desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário. Todos queremos um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito pouco de mundo. A isso chamaram de utopia. Sabendo que esta palavra contém já uma cilada. A palavra “utopia”, que vem do grego, quer dizer o “não-lugar” (em contraponto com o lugar concreto que é o nosso mundo real). Mas eu não estaria fazendo poesia se dissesse que, nas condições de hoje, aconteceu uma curiosa inversão: o chamado mundo real é aquele que se apresenta como um verdadeiro não-lugar, um lugar vazio onde cabemos apenas como ilusão virtual. Não sei se poderemos chamar de lugar ao território onde vivemos uma vida que nunca chega a ser nossa e que, cada vez mais, nos surge como uma vida pouco viva.
Como primeira reação, o mote deste congresso sugeriu-me realidades quotidianas muito concretas e transportou-me para o meu próprio país, onde subsistem milhares de minas deixadas pela guerra civil. Sou biólogo, trabalho nas zonas rurais e não há vez nenhuma que não seja assaltado pelo receio de pisar o chão. As minas antipessoais são produzidas por países que se reclamam da civilização e dos direitos humanos. Algumas destas nações proclamam-se mesmo campeãs na luta contra o terrorismo e as armas de destruição em massa. Mas recusaram-se sempre a assinar o acordo para o banimento desta insidiosa forma de terrorismo que todos os dias mutila e mata mulheres, crianças e homens inocentes nos países pobres.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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