Eu
sou um poeta e sinto-me feliz pelo fato de a poesia atuar como
estrela inspiradora para um encontro desta natureza. A poesia prova
assim não ser apenas um gênero literário, mas um olhar revelador
de mistérios e uma sabedoria resgatadora da nossa profunda
humanidade. A poesia é um modo de ler o mundo e escrever nele um
outro mundo. Buscar iluminação na voz de um poeta já é um
primeiro quebrar de armadilhas. Este Congresso da COLE está
começando bem antes mesmo de iniciar os seus trabalhos.
Compete-nos
desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário.
Todos queremos um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito
pouco de mundo. A isso chamaram de utopia. Sabendo que esta palavra
contém já uma cilada. A palavra “utopia”, que vem do grego,
quer dizer o “não-lugar” (em contraponto com o lugar concreto
que é o nosso mundo real). Mas eu não estaria fazendo poesia se
dissesse que, nas condições de hoje, aconteceu uma curiosa
inversão: o chamado mundo real é aquele que se apresenta como um
verdadeiro não-lugar, um lugar vazio onde cabemos apenas como ilusão
virtual. Não sei se poderemos chamar de lugar ao território onde
vivemos uma vida que nunca chega a ser nossa e que, cada vez mais,
nos surge como uma vida pouco viva.
Como
primeira reação, o mote deste congresso sugeriu-me realidades
quotidianas muito concretas e transportou-me para o meu próprio
país, onde subsistem milhares de minas deixadas pela guerra civil.
Sou biólogo, trabalho nas zonas rurais e não há vez nenhuma que
não seja assaltado pelo receio de pisar o chão. As minas
antipessoais são produzidas por países que se reclamam da
civilização e dos direitos humanos. Algumas destas nações
proclamam-se mesmo campeãs na luta contra o terrorismo e as armas de
destruição em massa. Mas recusaram-se sempre a assinar o acordo
para o banimento desta insidiosa forma de terrorismo que todos os
dias mutila e mata mulheres, crianças e homens inocentes nos países
pobres.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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