quinta-feira, 27 de junho de 2019

Herói juvenil

Que fim levou o Roger Vadim? Não é uma preocupação trivial. É que aquela geração que ficou adulta, ou coisa parecida, no mesmo momento em que Brigitte Bardot revelava o seu popô ao mundo, viveu, desde então, uma certa confusão intelectual. Sabíamos que alguma coisa importante tinha nos acontecido no novo cinema francês, mas sempre imaginamos que fosse algo sério, uma proposta de engajamento pela arte, a idéia de que a segunda sessão do Ópera era não uma perda de tempo, mas um aprendizado para a luta possível. Resnais, Godard, talvez Chabrol, mas jamais Vadim, um juvenil e um inconseqüente. E hoje, mais velhos e safados, descobrimos que o que estava nos acontecendo de importante era mesmo o popô da Brigitte. Vadim é que era o cara. Levamos muitos anos para reconhecer esta admiração secreta. E hoje nos perguntamos, com remorso acumulado: que fim levou o nosso herói?
A Brigitte era virgem quando casou com o Vadim. Dado histórico. E Vadim transformou a sua esguia virgem provinciana no símbolo mundial do sexo sem culpa. Brigitte foi a primeira magrinha. Com ela, Vadim deflorou todas as convenções do erotismo no cinema. A tradição literária de Candide, da ingenuidade solta num mundo pecaminoso, Vadim substituiu pelo ideal juvenil da sensualidade sem pecado e sem castigo. Com Brigitte, ao contrário de Candide, a inocência vencia porque atacava primeiro. A inocência predatória, com o popô de fora, irresistível. Nenhum filme político teve tanta influência nos costumes do mundo, ou foi mais divertido.
Jane Fonda também era virgem quando encontrou Vadim, pelo menos simbolicamente. Jovem americana, poucas ideias, mas grandes pernas, tentando a Europa. Saiu do casamento com Vadim com uma filha e uma consciência social, mas aposto que ele, hoje, quando pensa nela, deve se lembrar só das pernas. Quem mais? Meu Deus, Catherine Deneuve. A que, segundo o José Onofre, está sempre com ar de gripada, mas que mesmo assim nenhum intelectual de esquerda jogaria fora. Ele a teve também. E a Annette Stroyberg. E — ouço a plateia do Ópera exultando no escuro, lá se vão muitos anos de respeito e inveja — nenhuma jamais se queixou!
Que fim levou esse cara? Retirou-se para a vida contemplativa, o campo, alguns cachorros e suas memórias? Ficou impotente e agora só tem prazer flagelando velhas camponesas? Trabalha para a televisão? Ou nós estamos só mal informados e ele continua fazendo filmes que nunca chegam ao Brasil? Vadim nunca foi um grande diretor. É um herói cultural reabilitado porque sabia, muito antes do que qualquer um de nós, que para ser um intelectual, hoje em dia, basta parecer um intelectual. Duas ou três ideias e uma gola rulê, se tanto. Ninguém vai checar as suas credenciais. Todas as veleidades intelectuais de Vadim ele satisfez em alguns filmes profundos na superfície e, no fundo, superficiais, mas redimidos pelo seu vigor juvenil, pelo seu gosto em fazer cinema. Tinham a aparência de algo muito importante, não era preciso mais nada. Na época nós exigíamos mais do cinema do que uma superfície atraente. Hoje sabemos que o cinema de Vadim era só um pretexto para dormir com a atriz, e isso nos parece uma grande conquista cultural, e um consolo. Pois se não mudamos o mundo nem com luta nem com arte — pois se nem saímos de Porto Alegre — podemos dizer que não queríamos mudar nada mesmo. Queríamos é dormir com a Brigitte. Vadim nos realizou a todos.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquetes com os deuses

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