O
Peugeot parou na esquina do posto de gasolina. Ali acabava o asfalto
e começava a rua de terra. Era como a fronteira do mundo com outro
mundo. Dali em diante, seria a pé. Precaución, compaiero, havia
dito El Gitano na noite anterior, enquanto terminávamos o café.
O
chofer gordo e queimado de sol puxou um lenço do bolso e sem tirar o
cigarro da boca secou a testa, o queixo e o nariz. Depois olhou o
taxímetro, que marcava dezoito e quarenta, e disse: Veinte. Estendi
duas notas de dez e uma de cinco e disse: Gracias. Ele resmungou
alguma coisa que não entendi. Desci do carro.
Fiquei
parado na estrada, bem ali, na fronteira entre o asfalto e a estrada
de terra batida, vendo como ele manobrava sem nenhuma perícia e
levàva o Peugeot amarelo de volta para o asfalto e desaparecia logo
depois. Cruzar a fronteira entre os dois mundos pelo lado direito do
posto de gasolina, entrar na primeira ruela à direita, caminhar
quatro quarteirões, parar, acender um cigarro, continuar, agora à
esquerda por outra ruela de terra, seguir até encontrar um bar
chamado La Suzanita, assim mesmo, com z. Alguém estará lá, disse
El Gitano, que era de pouco falar. — Ele vai estar lá? — Quizá.
Es posible. Todo es posible. — Quero saber. Devo saber. — Quizá.
El
Gitano esvaziou a xícara de café, tocou a ponta do bigode com o
dedo, acendeu um cigarro e não disse nada. Era mesmo de pouco falar.
Muito pouco. Na verdade, eu não gostava dele. Ficou me olhando um
tempinho, eu me sentia meio ridículo e um pouco irritado, e enfim
ele disse: Una y cuarto. E depois completou: Más vale que no te
retrases. Eu tinha chegado cinco minutos atrasado ao encontro daquela
noite. Olhei para ele e disse em voz baixa: Vete a la mierda.
Eu
pensava no homem que iria encontrar e na última vez em que havíamos
estado juntos, uns dois meses antes, quando as coisas eram diferentes
e todos repartiam promessas nas quais acreditavam. Não levava
relógio, mas o chofer do Peugeot garantira que faltavam quinze para
a uma quando me deixara logo ali atrás, na fronteira entre o asfalto
e o chão de terra, no posto de gasolina.
O
sol de outubro começou a arder em minha cara quando virei à direita
e continuou ardendo nas duas quadras seguintes, e ainda quando parei
e acendi o cigarro fora de hora. Olhei para trás, um menino vinha
pela rua, e nada mais. O menino passou por mim olhando minhas calças
desbotadas. Essa gente nunca diz nada: são pobres e calados. As
janelas estavam fechadas e vi que logo adiante havia um pequeno Fiat
600 debaixo de uma árvore. A rua estava morta, como todo o resto.
Na
esquina seguinte virei à esquerda, continuei andando, o sol ardia na
nuca, uma, três, cinco quadras, será que vou chegar na hora?, e
apertei o passo, o bar deveria estar perto, mas tenho tempo, pensei,
tenho tempo, se ele estiver lá e eu chegar atrasado vai ser
desagradável, e andei mais rápido ainda e vi, na outra esquina, a
placa da Coca-Cola anunciando enfim o La Suzanita.
Eram
duas portas abertas para a calçada de cimento coberta de poeira da
rua de terra, e uma camionete empoeirada na esquina seguinte e eu
adivinhava gente escondida, na vigia, nas redondezas.
Duas
portas abertas e lá dentro, ninguém: três mesas de ferro, um
balcão, prateleiras com latas e garrafas, cartaz de cigarros. Fiquei
esperando.
De
repente, atrás do balcão surgiu um garoto de uns quinze anos. Eu
disse buenas tentando arrastar cada letra para dar um ar de
preguiçosa familiaridade e serenidade, mas ele não respondeu.
Um
rádio velho chiava o noticiário da uma, e o garoto olhou para uma
mesa no canto. Acompanhei seu olhar: na mesa, uma garrafa solitária
de cerveja Corona entre dois copos vazios, como à minha espera e de
mais alguém, e só. Sentei, enchi um copo.
Enquanto
eu bebia a cerveja o garoto sumiu por uma portinha estreita entre as
prateleiras e fiquei sozinho. O rádio continuava chiando os
resultados do regional de futebol e anunciou que era uma e meia.
Pensei: “Não vai vir”. As ruas de terra continuavam num silêncio
de noite alta debaixo de um sol sem piedade. Fiquei pensando em como
fazer para retomar o contato, agora que o sindicato tinha sido
fechado e a vida era outra. Eu havia vindo de muito longe, e
precisava levar de volta informações que só ele poderia me dar, em
troca de informações que só eu poderia dar a ele. Era um encontro
crucial, tinha sido cuidadosamente combinado, com todas as precauções
e mais algumas. Quinze minutos de atraso, e ele não atrasava nunca.
Quinze minutos era o tempo que teríamos para o nosso encontro.
De
repente, atrás do balcão, surgiu o ruído de pés leves que se
arrastavam. Olhei, havia uma moça de uns vinte anos, misteriosamente
bela e serena. Eu murmurei buenas outra vez, e outra vez foi em vão.
Ela olhou para a rua e desapareceu pela portinha entre as
prateleiras, para surgir de novo em seguida e fazer um gesto aflito
para que eu me aproximasse. Olhei para a rua, tudo continuava igual.
Contornei o balcão, entrei pela mesma portinha entre as prateleiras.
Ela me olhava com olhos assustados. Vi um minúsculo colar de
gotículas sobre seus lábios. Era uma menina sombria e bonita. Havia
uma certa fúria em seus olhos. Fiquei olhando para ela, esperando
alguma palavra, algum sinal. Ela me olhava com uma agonia juvenil
enquanto buscava palavras. O silêncio pareceu durar meia-vida, até
que ela disse, com voz serena: — Sucedió algo.
O
resto veio num jorro: não ia haver encontro, eu tinha de voltar para
o hotel da cidade e esperar até às dez da manhã do dia seguinte.
Se ninguém me procurasse, deveria voltar imediatamente para a
capital e buscar abrigo até que tudo tornasse a se acalmar. Depois,
indicou-me uma porta que dava para o quintal, dizendo que além do
quintal havia outra ruela, e que eu deveria caminhar rápido até o
posto de gasolina, onde um táxi estava à minha espera para me levar
de volta para a cidade.
Ela
era esguia, tinha uma aflição nos gestos que contrariava a
serenidade da voz e o brilho parado dos olhos. Tocou levemente minha
mão, como numa despedida; depois, num arrebato sem explicação, me
abraçou, antes de me empurrar na direção da porta.
Havia
outro Peugeot no posto de gasolina. O motorista era um jovem de pele
curtida de sol. Não disse nada quando entrei, apenas arrancou numa
velocidade de relâmpago, e assim prosseguiu por quilômetros até a
cidade. Parou a três quarteirões do hotel. Não perguntei quanto
devia. Desci o mais rápido que pude. Ele apenas sussurrou: Suerte.
Cuidado.
Cheguei
ao hotel pouco antes das três e quinze da tarde, me estendi na cama
e dormi.
Quando
acordei era noite. Persegui na televisão o noticiário das oito, e
fiquei sabendo: ele tinha sido pego pouco depois das duas, naquele
mesmo subúrbio operário, muito perto de onde eu estivera. Com ele,
na mesma casa, havia mais três homens e uma moça. Um dos homens era
El Gitano: reconheci seu rosto numa velha foto sem nome do arquivo
policial. O noticiário dizia que tentaram resistir e que foram todos
mortos no tiroteio, inclusive a moça. Dizia que ela era filha dele.
Dizia também que no meio da tarde a polícia havia localizado um bar
que servia de ponto de reunião, e que no bar estava um garoto. O
garoto fora levado preso. Dizia tudo isso o noticiário das oito.
No
dia seguinte, depois de uma noite sem sono e atravessada de memória,
fúria e medo, desci logo cedo e comprei os jornais. A notícia
estava em todos, com mais estardalhaço que informação.
Um
dos jornais trazia uma foto da moça. Era realmente bonita. Tinha
dezenove anos.
Às
dez e meia paguei o hotel e fui para o aeroporto. Enquanto esperava o
voo joguei fora os jornais. Antes, e sem que nunca tenha tido tempo
de entender por que, rasguei cuidadosamente da página a foto da
moça, dobrei-a pela metade e guardei na carteira. O nome dela era
Suzanita, e nunca entendi o que me levou a querer levar a foto
comigo.
Eu
sabia que era um dos próximos de uma lista sem fim. Queria apenas
chegar de volta à capital, avisar os companheiros, buscar abrigo e
pensar no que poderia ser feito.
Uma
semana depois, quando fui preso, a fotografia continuava na minha
carteira.
Eu
consegui me manter à tona até o momento em que um deles resolveu
examinar de novo minha carteira. Até ali, eu estava indo bem — até
perguntarem se eu sabia quem era a moça. Um deles fez a pergunta com
toda calma, enquanto os outros sorriam.
Eu
disse apenas que era uma moça que tinha conhecido numa cidade do
interior. Foi então que o inferno começou.
Eric
Nepomuceno, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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