Wilson
Bueno escreveu ficções – arriscadas ficções – que não eram
bem suas. Eram suas: mas sempre narradas em línguas alheias. Com sua
alma de experimentalista, Wilson se escondia a cada novo livro à
sombra de narradores imprevisíveis. Mais ainda: era como se a
própria noção de autoria, em sua escrita, entrasse em pane. E o
próprio Autor, ele, Wilson Bueno, se transfigurasse – se matasse.
Sempre procurei, aflito, pedaços de sua voz em seus relatos. Nunca
os encontrei.
Tivemos,
é verdade, uma amizade instável, que terminou em um grande
desencontro. Mas não era o que me afligia – embora afligisse
também. A cada novo livro, por mais que eu me entusiasmasse,
sentia-me obrigado a lhe perguntar: “Gostei, gostei muito, Wilson,
mas onde está você?”. Estive, até sua morte brutal, em maio de
2010, à espera de uma ficção que o trouxesse de corpo inteiro;
dono (ainda que aos pedaços) de seu próprio estilo; em plena (ainda
que precária) posse de si.
Em
sua novela mais festejada, Mar paraguayo (Iluminuras, 1992),
Wilson Bueno incorpora um portunhol forte, temperado com essências
do guarani, estranha língua retalhada que, nele, caía como um manto
impecável. Em Amar-te a ti nem sei se com carícias (Planeta,
2004), simula um manuscrito do século XIX, com sua linguagem
pedante, timbre antigo, pose solene. Como um médium que incorporasse
vozes alheias emprestando-lhes o corpo para uma falsa ressurreição,
Wilson tornou-se um inspirado inventor. Estranho inventor, porém,
que parecia sempre ausente de suas invenções.
Agora
que está morto, e em um doloroso movimento inverso no qual, já
afastada de seu corpo físico, sua voz enfim se ergue, ele nos deixa
o livro que dele sempre esperei. Um romance em que não se oferece
como porta-voz ou representante, mas no qual, mesmo se reinventando,
Wilson se desnuda. E dessa forma, como ele mesmo escreve, “sobrevive
a si mesmo”. Em Mano, a noite está velha (Planeta),
ouvimos, enfim, sua voz verdadeira ainda que inventada – porque a
ficção, como portunhol, é também uma experiência de fronteira.
Era essa segunda margem, essa banda “paraguaia” que agora se
apresenta, o pedaço que nos faltava para vê-lo melhor. Ela ressoa
agora entre a náusea e a alegria, entre a agonia e o prazer, ali
onde se esconde o Wilson inteiro.
Não
posso omitir a ideia repugnante: Wilson precisou morrer, brutalmente
assassinado, para que agora, desprovido de um corpo, possa abandonar
a posição de “cavalo”, ou de embaixador, para falar, enfim, em
seu próprio nome. Para sustentar, finalmente, a voz única que
ressoa, comovente, naquele que, afora todas as corajosas aventuras
experimentais do passado, é de longe seu livro mais importante.
O
romance guarda, além disso, um incômodo tom premonitório –
anúncio da morte hedionda que o esperou, pelas mãos de um
indiferente assassino, na noite de 31 de maio de 2010. Trata-se de
uma longa conversa com o Além, representado pelo irmão morto. O
escritor teve, de fato, um irmão, só um, que faleceu antes dele. As
informações que esse narrador, Frederico, nos dá a respeito de si
não nos convencem. Não passam de um disfarce mal-ajambrado que, só
a muito custo, encobre a face do escritor.
Ali
está um corpo – um narrador, um Autor? – que fala com alguém
que já não está ali. Mais uma vez, o jogo entre presença e
ausência, entre vida e morte; a existência por um fio em cujo
deserto Wilson, um homem dado a emoções fortes e amores
fulminantes, mas também dono de um humor ferino e de uma elegância
nobre, apreciava se instalar.
Só
agora, morto, enfim ele nos fala. Há uma referência insistente a
certo Bolaño – que só pode ser Roberto Bolaño, o escritor
chileno, falecido em julho de 2003; o autor de 2666, outro
romance póstumo, editado em 2004. Bolaño nele trabalhou durante
seus cinco últimos anos de vida, enquanto esperava um transplante de
fígado. Sem saber que fazia isto (ou, de alguma forma secreta,
sabendo?), Wilson meses a fio o imitou, debruçado sobre seu Mano,
na mesma posição de espera e despedida. Há, também, certa Hilda –
que só pode ser Hilda Hilst, a escritora falecida em 2004 (mesmo ano
em que 2666, com Bolaño já morto, o traz de volta); e de
quem Wilson foi caloroso amigo e com quem, pela via do precário,
sentia grande afinidade.
Preciso
deixar de lado as referências pessoais, refrear-me para voltar ao
livro, que leio entre a dor e a alegria. É, sem dúvida, um livro de
despedida – e aqui o caráter premonitório se torna assustador. Em
Frederico, narrador de pensamento vacilante, persiste a sombra de
Wilson: a solidão insistente e intransponível; o culto religioso da
Mãe (assim mesmo, com maiúscula), cuja morte atravessa – com a
força de uma faca – todo o relato. Há, ainda, um garoto morto,
Maicon, cuja beleza se perde em visões confusas, que deságuam em um
cemitério de província. E sobram cães desdentados, gatos obesos,
pássaros atordoados, muitos bichos; sempre, os bichos (mas aqui
estou eu de volta ao horror do real!) que – com sua miséria
silenciosa – tanto fizeram Wilson sofrer.
E
persiste, mais que tudo, a imagem viril (ainda que às vezes
feminina) do sobrevivente, que ultrapassou a juventude, que
sobreviveu a tempos de chumbo e que sobrevivia, como um herói
esquivo e problemático, ao presente. Sobrevivente, sobretudo, de
sonhos futuros que nunca (e isso da morte não se pode cobrar) se
realizaram. “Estou aqui, sim, eu sou o sobrevivente”, Wilson diz,
pela voz de Frederico, com todas as letras, com toda a clareza.
“Antes de mais nada, sobrevivente de mim mesmo”, ele insiste.
A
poucos passos do fecho, o retrato assombroso que Frederico apresenta
de si evoca, ainda, um Wilson exposto, horas depois de sua morte
brutal, não nas elegantes páginas literárias, mas no sangue das
seções de polícia. Wilson anteviu Wilson? “Cato meus restos pela
sala. É assim como se eu fosse um boneco de pano do qual se retirou
todo o enchimento. Sobraram braços e pernas desengonçados, a cara
já sem forma, só uns olhinhos de botão, e o sorriso, rasgado,
meia-lua de feltro vermelho.” Haverá antecipação mais arrepiante
de seu injusto destino?
José
Castello, in Sábados inquietos
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