Há dias, em certo jantar naquela
cobertura da Zona Sul, um convidado pediu a palavra, e tal foi a
surpresa que ninguém se mexeu para recusá-la. É de lembrar que há
muito na Zona Sul desapareceu o hábito de usar da palavra à maneira
clássica: um falando e os demais reduzidos ao silêncio, ouvindo. Há
talvez meio século que se instituiu a conversa generalizada, isto é,
todos falando ao mesmo tempo, com a voz ou com o garfo, pois comer é
também maneira eficiente de comunicar-se: o apetite chama o apetite,
e os apetites porfiam no diálogo manducativo. Esta segunda técnica
de comunicação é, mesmo, a preferida.
Não se lhe tendo recusado a palavra, ela
também não lhe foi concedida, pois o espanto dominava as
fisionomias e os talheres. À falta de sim ou não, peremptório, o
homem tomou a palavra resolutamente, e disse que ia agradecer.
Agradecer o quê? perguntou a si mesmo. E a si mesmo respondeu, como
o saudoso ministro Ataulfo de Paiva: tudo. E prosseguiu:
— Tudo é para agradecer, a começar
pelo fato de estarmos aqui reunidos, degustando o excelentíssimo
arroz com castanha-de-caju, digno da mesa dos deuses, como outro
igual ainda não comi, e creio que todos os presentes jurarão o
mesmo. Gozar da amizade de Baby e Lulu Fontamaro é uma felicidade
para o coração e para o paladar.
Mas, se estamos aqui reunidos, papando o
bom arroz do casal, obviamente é porque emplacamos mais este setenta
e um, e se emplacamos, é forçoso agradecer o emplacamento. Já
imaginaram se todos nós houvéssemos tomado a barca de Caronte antes
desta noite amena sob as estrelas, pois até estrelas Lulu e Baby
providenciaram neste dezembro de chuva? Que desolação reinaria
nesta casa, que abandono, que gélidas imagens de finitude — mas
nem quero insistir, rendo graças à vida e à sua conservação, à
maravilhosa circunstância de termos vencido todos os elementos que
conspiravam contra a nossa permanência em nossos respectivos
domicílios, gabinetes, escritórios, empregos e mesmo desempregos,
pois há quem viva disto, e viva bem.
Agradecer à vida é agradecer inclusive
os seus males, porque nos pouparam ou só de leve nos atingiram com
sua farpa. Nossas gripes não se entenebreceram em pneumonias duplas;
nossos embaraços gástricos e/ou financeiros não nos derrubaram.
Passo os olhos em torno desta mesa florida (que soberbo arranjo de
flores você conseguiu com sua criatividade, Baby!) e não vejo
nenhum aleijado. Se alguém aqui usa perna mecânica, eu o felicito,
pois absolutamente não se percebe, e noto nos convivas uma aérea
leveza de Nureyev. Graças! graças sejam dadas à vida, em sua
plenitude às vezes contraditória, mas, no fundo, dialética,
perfazendo a síntese expressa nesta gratíssima reunião!
Agradeço ao charuto do nosso amigo
Nivaldo, que, ao acendê-lo antes de terminado o jantar, e soprando
baforadas junto às faces pulcras de Jeanete Taborda, nem por isto
eleva o índice de poluição ambiente na Guanabara, pois como este
índice já chegou ao máximo, pretensão inútil seria tentar
aumentá-lo. Eis uma demonstração objetiva que devemos ao Nivaldo
(obrigado, companheiro), ao mesmo tempo em que cabe agradecimento
especial ao referido índice de poluição, de vez que ele comprovou
a fortaleza de nossos organismos, resistentes a tudo. Enfrentaremos
sorridentes os futuros flagelos sociais que se desencadearem sobre
nossas cabeças, uma vez que o homem provou ser sempre superior a
qualquer flagelo na história, sem embargo das baixas sofridas na
sempiterna peleja.
Agradeço à língua portuguesa por me
haver obsequiado com esta palavra sempiterna, que suponho pronunciada
pela primeira vez na Zona Sul, onde se diz que tudo é passageiro, as
situações não duram mais que uma estação de praia ou um drink no
Country, e amanhã já é ontem. Agradeço às guerras não
declaradas, ou declaradíssimas, no Vietnã, no Camboja, no Oriente
Médio, no Paquistão Oriental, por absurdo que pareça meu ponto de
vista: elas estimulam o estudo da geografia através de notações
concretas, dão matéria a correspondentes, fotógrafos e
comentaristas internacionais, e assegurando a continuidade dos
debates acadêmicos na ONU, garantem trabalho infindável às
delegações. Eu quisera estar lá (na ONU, não na guerra) em
pessoa, mas, como nem sempre as aspirações elevadas são factíveis,
dar-me-ei por satisfeito (e agradecerei) se o governo se lembrar de
meu filho Joanito para assessor de qualquer coisa naquela Assembleia.
Ele é habilitado.
Em suma, agradeço. De coração. A tudo.
Seria impossível minudenciar as gratidões, pois chegamos à
sobremesa, e quero agradecer desde logo esta espetacular musse de
manga gelada, nunca outra igual saboreamos antes, ou não é de
manga? ah, é de pêssego, pois eu afirmo do mesmo modo que…
Aí faltou luz, e o homem acrescentou:
— Agradeço à Light: ela não falha
nunca nestas horas.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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