Esta é a história de uma mulher que
cometeu um crime que a humanidade não perdoa. Recusou-se a ser
vítima. Eva Rodrigues preenchia todos os requisitos para a sentença.
Era mulher: coitada. Era negra: coitada. Era pobre: coitada. Ainda
não era tudo. Eva nasceu de um parto sofrido. Teve paralisia
cerebral. O corpo todo tremia, ela derrubava a comida, caminhava mal,
era toda ela um desajeito. À Eva, o mundo reservava apenas um
destino: o de ser coitada. Eva poderia estender a mão e pedir
esmolas. E receberia olhares de profunda pena. Em troca da moeda,
devolveria ao doador o alívio não apenas da caridade, mas o outro,
secreto: a garantia de que a deformidade, assim como a loucura, está
sempre no outro.
Eva rebelou-se. Decidiu que não seria
coitada. Que o mundo se virasse com isso. Que o mundo achasse outras
vítimas para preencher seu horror. Este foi o crime de Eva. Pelo
qual jamais a perdoaram. Como não puderam lhe imprimir na testa o
rótulo de coitada, a marcaram com outro. Como ela, a deformada, como
ela, a deficiente, como ela, a defeituosa, ousava renegar a mão da
caridade, irmã da pena, prima da hipocrisia? Como ousava ela, a
anormal, encarar de igual para igual os normais? Parecia até que a
exibição do corpo torto de Eva revelava a alma torta do outro.
Parecia até que a falha exposta de Eva devassava a falha oculta do
outro. Como ousava Eva, justo Eva, ser imperfeita em um mundo onde se
paga fortunas para que todos sejam igualmente perfeitos? Como ousava
Eva ser diferente em um mundo onde a igualdade das ideias é a única
garantia de segurança? Como ousava Eva vencer pelo espírito no
mundo da aparência?
Ah, quanta pretensão a de Eva. Quanto
perigo ofereceu Eva quando decidiu que não seria coitada. De vítima,
Eva virou culpada.
É preciso contar como Eva insurgiu-se.
Antes de revelar como a castigaram. Eva não sabe se foi nos risos
que a perseguiam, nas imitações que dela faziam, se foi no anúncio
de que seu destino era ficar amontoada num canto. De preferência em
silêncio. Só sabe que decidiu que não se submeteria. Que
reinventaria seu destino. Reinventaria a si mesma.
O primeiro ato de rebeldia foi entrar na
escola. Conseguiu aos nove anos, no lugar onde nasceu, em Restinga
Seca, na região central do Rio Grande. Suas mãos não obedeciam,
eram dois membros convulsos que Eva não dominava. Eva usou toda a
força de que dispunha para que a mão esquerda segurasse a direita.
Uma mão retorcida sobre a outra, dores horrendas pelo esforço, Eva
escreveu pela primeira vez. O atrito da mão dobrada sobre o papel
deixou os dedos em carne viva. Os primeiros cadernos tinham letras
ensanguentadas, palavras feridas. Os primeiros cadernos de Eva foram
escritos a sangue.
Eva descobriu nesse momento que era capaz
de reescrever seu destino. E, logo à primeira ousadia, já recebeu o
primeiro castigo. Mesmo com as melhores notas, foi obrigada a repetir
o ano. A professora não aceitava, não compreendia que Eva
conseguisse escrever. Eva repetiu e prometeu que repetiria quantas
vezes fosse necessário até que a professora, o mundo, entendesse
que jamais desistiria. Que os venceria, nem que fosse pelo cansaço.
Que pedissem tudo a ela, menos o impossível. Que pedissem tudo a
ela, menos que ficasse no seu lugar.
Logo Eva aprendeu que a independência é
areia movediça. Território a ser tomado e retomado dia após dia.
Aos 17 anos, diante dos oito irmãos, dos pais analfabetos,
agricultores sem terra, deu o primeiro grito:
– Chega! Eu não sou coitada disso,
coitada daquilo. Se eu derramar comida para comer, deixem que eu
derrame. Se eu derrubar as coisas quando eu pegar, deixem que eu
derrube. Se eu cair, deixem que eu me levante.
Eva mudou-se para Porto Alegre.
Empregou-se como doméstica e terminou o ensino médio. Suas mãos,
assim como sua alma, eram escalavradas por cicatrizes. Mas já não
sangravam.
Eva ingressou na universidade, mas não
podia pagar. Por duas vezes lhe negaram o crédito educativo. Pediu
transferência para uma mais barata. Eva sonhava em ser educadora.
Queria ensinar como se podia escrever com as mãos em chagas. E fazer
das mãos retorcidas asas. Mas muitas eram as almas disformes que se
colocariam entre Eva e o mundo. A luta estava recém no começo e
provavelmente não terá fim.
Ela ouviu e ouviu. Como vai escrever no
quadro-negro tremendo desse jeito? Como vai ensinar com uma letra tão
feia? Não vê que só vai incomodar? Não entende que entre você e
uma menina normal vão escolher a normal? O que você quer? Vai
passar a vida olhando para um diploma na parede? Eva ouviu tudo isso
de uma educadora. Eva ouviu tudo isso na faculdade. Apenas para
comprovar que a ignorância está onde menos se espera. Eva, a
deficiente física, respondeu à deficiente de alma:
– Em primeiro lugar, eu não vou
desistir. Em segundo, a vida é um risco. Não só para mim. Mas para
todo mundo.
Eva demorou a descobrir por que sua
tremedeira ameaçava tanto aqueles seres impávidos. Qual era a
ofensa de sua fragilidade. Foi vilipendiada de todas as formas
conhecidas e outras inventadas só para ela. Primeiro, impediram que
fizesse estágio. Depois, só poderia fazê-lo numa escola de
deficientes. Em seguida, decidiram que tinha de ser durante o dia
porque sabiam que nesse horário ela trabalhava para pagar as contas.
Por fim, como Eva não desistisse, desistiram eles de a impedir.
Quando o nome de Eva foi pronunciado na
formatura, todos levantaram, gritaram, aplaudiram. Eva não ouviu.
Todos os seus sentidos estavam concentrados em não cair. Atravessar
aquele palco sem tropeçar era a metáfora de sua vida. Eva não
cairia. Não ali. E Eva não caiu.
Finalmente conseguiu ocupar as salas de
aula como educadora. Foram pelo menos três escolas. E em cada uma
algo se passou. Quando descobriam que Eva não era coitada, que
empregá-la não era um ato de caridade, tudo mudava. Quando
descobriam que Eva era capaz, que era preciso competir com a sua
mente, não com seus tremores, tudo se alterava. A comiseração do
início transmutava-se em ódio. Quem essa aleijada pensa que é? Foi
o que Eva ouviu e escutou. E assim Eva foi expulsa do mundo que mal
havia tocado.
Eva não desistiu. Como não desistirá.
Prestou concurso em 1994 para servente no extinto Tribunal de Alçada.
Pensou que os olhos vendados da Justiça não a julgariam por sua
deformidade. Fez concurso em sala especial, como deficiente. Foi
aprovada em nono lugar. A nomeação chegou a ser publicada. Mas
vejam só, Eva foi reprovada pelo neurologista. Porque tremia as
mãos, porque derramaria os cafezinhos.
Uma assinatura encerrou o capítulo de
uma vida. Eva ingressou na Justiça. A defensora pública não
compareceu ao julgamento alegando não ter sido avisada. Eva
continuou. O processo está hoje no Supremo Tribunal Federal. Eva
voltou a trabalhar como doméstica.
Eva é mulher, negra e pobre. Eva treme
as mãos. Tudo isso até aceitam. O que não lhe perdoam é ter se
recusado a ser coitada. O que não perdoam a Eva é, sendo mulher,
negra, pobre e deficiente física, ter completado a universidade. E
neste país. Todas as fichas eram contra ela e, ainda assim, Eva
ousou vencer a aposta. Por isso a condenaram. Atenção para as
palavras de Eva:
– A cada vez que me derrubarem eu vou
levantar com mais força. Não quero saber de derrota. Derrota nunca
esteve nos meus planos. E coitado é quem me chama.
A vida é pródiga em paradoxos. O de Eva
é que a odeiam porque não podem sentir pena dela. E o do mundo é
que as piores deformações são as invisíveis.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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