Por causa do racismo estrutural, a
população negra tem menos condições de acesso a uma educação de
qualidade. Geralmente, quem passa em vestibulares concorridos para os
principais cursos nas melhores universidades públicas são pessoas
que estudaram em escolas particulares de elite, falam outros idiomas
e fizeram intercâmbio. E é justamente o racismo estrutural que
facilita o acesso desse grupo.
Esse debate não é sobre capacidade, mas
sobre oportunidades — e essa é a distinção que os defensores da
meritocracia parecem não fazer. Um garoto que precisa vender pastel
para ajudar na renda da família e outro que passa as tarde em aulas
de idiomas e de natação não partem do mesmo ponto. Não são
muitos os que podem se dar o luxo de cursar uma graduação sem
trabalhar ou ganhando apenas uma bolsa de estagiário. Eu mesma
entrei na Universidade Federal de São Paulo, cujo campus de ciências
humanas foi criado em 2007 graças a políticas públicas, aos 27
anos e com uma filha pequena, tendo que fazer malabarismos para
conseguir estudar.
Embora as desigualdades nas oportunidades
para negros e brancos ainda sejam enormes, políticas públicas
mostraram que têm potencial transformador na área. O caso das cotas
raciais é notável. Na época em que o debate sobre ações
afirmativas estava acalorado, um dos principais argumentos contrários
à implementação de cotas raciais nas universidades era “as
pessoas negras vão roubar a minha vaga”. Por trás dessa frase
está o fato de que pessoas brancas, por causa de seu privilégio
histórico, viam as vagas em universidades públicas como suas por
direito.
A primeira universidade a adotar as cotas
raciais no vestibular foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj), em 2003, seguida pela Universidade de Brasília (UnB), em
2004. As novas políticas públicas universitárias transformaram o
perfil dos alunos ingressantes: ao contrário do que muita gente
afirmava quando essas políticas começaram a ser implementadas, o
desempenho positivo de alunos cotistas trouxe grandes avanços para o
saber do país.
Pesquisas sobre os resultados dessas
políticas logo começaram a surgir, como a do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), em 2008, na qual se demonstrou que os
alunos cotistas de quatro universidades federais tinham desempenho
similar ou superior ao dos alunos não cotistas; e a da
Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, realizada em parceria
com universidades estaduais, a qual constatou que no período entre
2003 e 2016 a evasão universitária entre cotistas (26%) foi menor
se comparada com a de não cotistas (37%), além de apontar
desempenho similar entre ambos. Sobre outras políticas de acesso à
educação, destaca-se o estudo de Jacques Wainer, professor do
Instituto da Computação da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), e Tatiana Melguizo, professora associada da Universidade
do Sul da Califórnia, que, com base na análise dos resultados de
mais de 1 milhão de alunos que realizaram o Exame Nacional de
Desempenho dos Estudantes (Enade), entre 2012 e 2014, apontou que não
havia diferença entre as notas de beneficiários do programa Prouni
e as de outros estudantes. Diferente da política de cotas, o Prouni
é um convênio realizado entre universidades privadas e o governo
federal que permite às universidades abaterem impostos ao oferecer
bolsas integrais ou de 50% para alunos e alunas do programa — seja
por raça ou por renda —, desde que mantenham um desempenho
exemplar.
Muitas vezes, casos de pessoas negras que
enfrentam grandes dificuldades para obter um diploma ou passar em um
concurso público são romantizados. Entretanto, ainda que seja
bastante admirável que pessoas consigam superar grandes obstáculos,
naturalizar essas violências e usá-las como exemplos que
justifiquem estruturas desiguais é não só cruel, como também uma
inversão de valores. Não deveria ser normal que, para conquistar um
diploma, uma pessoa precise caminhar quinze quilômetros para chegar
à escola, estude com material didático achado no lixo ou que tenha
que abrir mão de almoçar para pagar um transporte.
A cultura do mérito, aliada a uma
política que desvaloriza a educação pública, é capaz de produzir
catástrofes. Hoje, em vez de combater a violência estrutural na
academia, a orientação de muitos chefes do Executivo brasileiro é
uniformizar as desigualdades, cortando políticas públicas
universitárias, como bolsas de estudo e cotas raciais e sociais.
Informe-se sobre as políticas públicas
de combate à desigualdade racial e pela promoção da diversidade.
Apoie e prestigie institutos de pesquisa e de desenvolvimento de
políticas. Apoie candidatos que defendem políticas públicas
efetivas e transformadoras.
A lei de cotas para universidades
federais, promulgada em 2012, representou uma grande vitória. Uma
pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes) com base em dados de 2018
mostrou que, nessas instituições, a maioria dos estudantes é negra
(51,2%), 64,7% cursaram o ensino médio em escolas públicas e 70,2%
vêm de famílias com renda mensal per capita de até um salário
mínimo e meio. Infelizmente o mercado de trabalho ainda não reflete
essa mudança.
Djamila Ribeiro, in Pequeno Manual Antirracista
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