De São Paulo recebi uma carta de
Fernanda Montenegro. Telefonei-lhe pedindo licença para publicá-la.
Foi dada:
“Clarice
É com emoção que lhe escrevo pois tudo
o que você propõe tem sempre essa explosão dolorosa. É uma
angústia terrivelmente feminina, dolorosa, abafada, educada,
desesperada e guardada.
Ao ler meu nome, escrito por você,
recebi um choque não por vaidade mas por comunhão. Ando muito
deprimida, o que não é comum. Atualmente em São Paulo se
representa de arma no bolso. Polícia nas portas dos teatros.
Telefonemas ameaçam o terror para cada um de nós em nossas casas de
gente de teatro. É o nosso mundo.
E o nosso mundo, Clarice?
Não este, pelas circunstâncias
obrigatoriamente político, polêmico, contundente. Mas aquele mundo
de que nos fala Tchekhov: onde repousaremos, onde nos
descontrairemos? Ai, Clarice, a nossa geração não o verá. Quando
eu tinha quinze anos pensava alucinadamente que minha geração
desfaria o nó. Nossa geração falhou, numa melancolia de ‘canção
sem palavra’, tão comum no século XIX. O amor no século XXI é a
justiça social. E Cristo que nos entenda.
Estamos aprendendo a lição seguinte:
amor é ter. Na miséria não está a salvação.
Quem não tem, não dá. Quem tem fome
não tem dignidade (Brecht). Clarice, estou pedindo desculpas por
este palavrório todo. Mas deixe que eu mantenha com você esta
sintonia dolorosa dos que percebem alguns mundos, não apenas este ou
aquele, porém até mesmo aquele outro, embora linearmente – como é
o caso.
Nossa geração sofre da frustração do
repouso. É isso, Clarice? A luta que fizermos, não o faremos pra
nós. E temos uma pena enorme de nós por isso. É assim que explico
pra mim estas frases que você põe no seu artigo: ‘Eu que dei pra
mentir. E com isso estou dizendo uma verdade. Mas mentir já não era
sem tempo. Engano a quem devo enganar, e, como sei que estou
enganando, digo por dentro verdades duras.’ A luta, a que me refiro
lá no alto, seria aquela luta bíblica, a grande luta, a que engloba
tudo.
Voltando às ‘verdades duras’ de que
você fala: na minha profissão o enganar é a minha verdade. É isso
mesmo, Clarice, como profissão. Mas na minha intimidade toda
particular, sinto, sem enganos, que nossa geração está começando
a comungar com a barata. A nossa barata (Fernanda se refere a um
livro meu). Nós sabemos o que significa esta comunhão, Clarice.
Juro que não vou afastá-la de mim, a barata. Eu o farei. Preciso já
organicamente fazê-lo. Dê-me a calma e a luz de um momento de
repouso interior, só um momento.
Com intensa comoção.
Fernanda”
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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