Falar de um poeta na primeira página de
um jornal comporta um risco: é preciso fazer um discurso “público”,
sublinhar a visão do mundo e da história, o ensinamento moral
implícito em sua poesia; tudo aquilo que se diz é verdadeiro, mas
depois nos damos conta de que poderia ser igualmente verdade para um
outro poeta, que o acento inconfundível daqueles versos permanece
fora do discurso. Tratemos portanto de manter-nos o mais próximo
possível da essência da poesia de Montale ao explicar como hoje as
exéquias desse poeta tão pouco inclinado a qualquer oficialidade,
tão distante da imagem do “vate nacional” sejam um acontecimento
em que o país inteiro se reconhece. (Fato tão mais singular dado
que as grandes fés proclamadas pela Itália de seu tempo jamais o
incluíram entre seus adeptos, ou melhor, ele não economizou o
próprio sarcasmo contra todo “clérigo vermelho ou negro”.)
Gostaria de dizer em primeiro lugar: os
versos de Montale são inconfundíveis pela precisão e
impossibilidade de substituir a expressão verbal, o ritmo, a imagem
evocada; “il lampo che candisce/ alberi e muri e li sorprende in
quella/ eternità d’istante” [o relâmpago que cristaliza/
árvores e paredes e os surpreende naquela/ eternidade do instante].
Não falo da riqueza e versatilidade dos meios verbais, dote que
também outros poetas nossos tiveram em grau elevadíssimo, e que se
assemelha muitas vezes a uma veia copiosa e redundante, isto é, a
tudo o que está mais longe de Montale. Montale não desperdiça
nunca os golpes, joga a expressão insubstituível no momento justo e
a isola em sua unicidade. “Turbati/ discendevamo tra i vepri./ Nei
miei paesi a quell’ora/ cominciano a fischiare le lepri”
[Perturbados/ descíamos entre os espinheiros./ Na minha terra àquela
hora/ começam a assoviar as lebres].
Vou direto ao que interessa: numa época
de palavras genéricas e abstratas, palavras boas para todos os usos,
palavras que servem para não pensar e não dizer, uma peste da
linguagem que transborda do público para o privado, Montale foi o
poeta da exatidão, da escolha lexical motivada; da segurança
terminológica visando capturar a unicidade da experiência.
“S’accesi su pomi cotogni,/ un punto, una cocciniglia,/ si udì
inalberarsi alla striglia/ il poney, e poi vinse il sogno”
[Acendeu-se sobre marmelos,/ um ponto, uma joaninha,/ ouviu-se
empinar contra a almofaça/ o pônei, e depois venceu o sonho].
Mas essa precisão para nos dizer o quê?
Montale nos fala de um mundo turbilhonante, movido por um vento de
destruição, sem um terreno sólido onde apoiar os pés, com o único
recurso de uma moral individual suspensa à beira do abismo. É o
mundo da Primeira e da Segunda Guerra Mundial; talvez também da
Terceira. Ou quem sabe a Primeira ainda permaneça fora do quadro (na
cinemateca de nossa memória histórica, sobre os fotogramas já meio
desbotados da Primeira Guerra Mundial movem-se como subtítulos os
versos descarnados de Ungaretti) e é a precariedade do mundo que se
apresenta aos olhares dos jovens no primeiro pós-guerra que serve de
fundo para os Ossi di seppia [Ossos de sépia], como será a
espera de uma nova catástrofe o clima das Occasioni
[Ocasiões], e a sua realização e as suas cinzas o tema da Bufera
[A tempestade]. La bufera é o livro mais bonito que saiu da
Segunda Guerra Mundial e, mesmo quando fala de outra coisa, é
daquilo que fala. Tudo já está ali implícito, inclusive nossas
ansiedades posteriores, até as de hoje: a catástrofe atômica (“e
un ombroso Lucifero scenderà su una proda/ del Tamigi, del Hudsoh,
della Senna/ scuotendo l’ali di bitume simi-mozze dalla fatica, a
dirti: è l’ora” [e um sombrio Lúcifer descerá/ do Tâmisa, do
Hudson, do Sena/ sacudindo asas de betume semidecepadas pela fadiga,
para dizer-nos: é a hora]) e o horror dos campos de concentração
passados e futuros (“Il sogno del prigioniero”).
Mas não são as representações diretas
e as alegorias declaradas o que pretendo colocar em primeiro plano:
essa nossa condição histórica é vista enquanto condição
cósmica; também as menores presenças da natureza na observação
cotidiana do poeta se configuram como vórtices. São o ritmo do
verso, a prosódia, a sintaxe que levam em si esse movimento, do
princípio ao fim de seus três grandes livros. “I turbini
sollevano la polvere/ sui tetti, a mulinelli, e sugli spiazzi/
deserti, ove i cavalli incappucciati/ annusano la terra, fermi
innanzi/ ai vetri luccicanti degli alberghi” [Os pés de vento
levantam a poeira/ sobre os tetos, em redemoinhos e nas clareiras/
desertos, onde os cavalos encapuzados/ cheiram a terra parados em
frente/ dos vidros rebrilhantes dos hotéis].
Falei de moral individual para resistir
ao fim do mundo histórico ou cósmico que pode cancelar de um
momento para outro a lábil pegada do gênero humano; mas é preciso
dizer que em Montale, mesmo distante de qualquer comunhão sincera e
de qualquer impulso de solidariedade, está sempre presente a
interdependência de cada pessoa com a vida dos outros. “Occorrono
troppe vite per farne una” [São necessárias muitas vidas para
fazer uma outra] é a conclusão memorável de uma poesia das
Occasioni, em que a sombra do milhafre a voar dá o sentido do
destruir-se e refazer-se que conforma toda continuidade biológica e
histórica. Mas a ajuda que pode vir da natureza ou dos homens não
consiste numa ilusão unicamente quando um riacho muito fino que
aflora “dove solo/ morde l’arsura e la desolazione” [onde só/
morde a aridez e a desolação]; somente remontando os rios até que
se tornem delicados como cabelos é que a enguia encontra o lugar
seguro para procriar; é só “num fio de piedade” que podem matar
a sede os porcos-espinhos do monte Amiata.
Esse difícil heroísmo escavado na
interioridade, na aridez e na precariedade do existir, esse heroísmo
de anti-heróis é a resposta que Montale deu ao problema da poesia
de sua geração: como escrever versos depois (e contra) D’Annunzio
(e depois de Carducci, e depois de Pascoli ou pelo menos de uma certa
imagem de Pascoli), o problema que Ungaretti resolveu com a
fulguração da palavra pura e Saba com a recuperação de uma
sinceridade interior que compreendia também o pathos, o afeto, a
sensualidade: aquelas características do humano que o homem
montaliano recusava ou considerava indizíveis.
Não existe mensagem de consolação ou
de encorajamento em Montale caso não se aceite a consciência do
universo hostil e avaro: é nessa rota árdua que o discurso dele
continua o de Leopardi, embora suas vozes ressoem bastante diversas.
Assim como, confrontado com o de Leopardi, o ateísmo de Montale é
mais problemático, atravessado por tentações contínuas de um
sobrenatural logo corroído pelo ceticismo de fundo. Se Leopardi
dissolve as consolações da filosofia das Luzes, as propostas de
consolação que são oferecidas a Montale são aquelas dos
irracionalismos contemporâneos que ele pouco a pouco avalia e deixa
cair com uma sacudida de ombros, reduzindo sempre a superfície da
rocha sobre a qual se apoiam seus pés, o escolho ao qual se agarra a
sua obstinação de náufrago.
Um de seus temas, que com os anos se
torna cada vez mais frequente, é o modo com que os mortos estão
presentes em nós, a unicidade de cada pessoa que não nos
conformamos em perder: “il gesto d’una/ vita che non è un’altra
ma se stessa” [o gesto de uma/ vida que não é uma outra mas ela
mesma]. São versos de uma poesia em memória da mãe, onde voltam os
pássaros, uma paisagem em declive, os mortos: o repertório das
imagens positivas de sua poesia. Não poderíamos dar agora à sua
lembrança melhor moldura que esta: “Ora che il coro delle
corturnici/ ti blandisce nel sonno eterno, rotta/ felice schiera in
fuga verso i clivi/ vendemmiati del Mesco…” [Ora que o coro das
codornizes/ te acaricia no sono eterno, roto/ feliz bando em fuga
rumo às encostas/ vindimadas do Mesco…].
E continuar a ler “dentro” de seus
livros. Certamente isso lhe garantirá a sobrevivência, pois quanto
mais lidos e relidos, seus poemas capturam ao abrir da página e não
se exaurem jamais.
Italo Calvino, in Por que ler os clássicos
Nenhum comentário:
Postar um comentário