— Estava pensando na linhita? —
perguntou Zorba com alguma hesitação.
— Em que queria você que eu pensasse?
— respondi-lhe rindo. — amanhã começamos o trabalho. Era
preciso fazer uns cálculos.
Zorba olhou-me com o canto do olho. Vi
que ele ainda uma vez me pesava, sem saber se devia acreditar ou não.
— E qual o resultado dos cálculos? —
perguntou de novo, aprofundando-se no assunto com prudência.
— Que dentro de três meses devemos
estar extraindo dez toneladas de linhita por dia para cobrir as
despesas.
Zorba olhou-me ainda, mas desta vez com
inquietação. Logo depois:
— E por que Diabos você foi para a
praia para fazer cálculos? — Desculpe-me, patrão, lhe pergunto
isso, mas é que não entendo. Eu, quando vou lidar com cifras, a
vontade que tenho é de abrir um buraco no cão e me enfiar nele,
para não ver nada em volta de mim. Se levanto os olhos e vejo o mar,
ou uma árvore, ou uma mulher, até uma velha, lá se vão os
cálculos e as porcarias das cifras desaparecendo a galope. Até
parecem que nascem asas neles!...
— A culpa é sua Zorba! — disse para
implicar. — você não tem é força para se concentrar.
— Não sei não, patrão. Isso depende.
Há casos em que nem o sábio Salomão... Veja, um dia passei numa
aldeia. Um velho de noventa anos estava plantando uma amendoeira.
“Ei, avozinho, disse eu. Estás plantando uma amendoeira?” e ele,
curvado com estava, vira-se e me diz: “meu filho, eu faço as
coisas como quem não vai morrer nunca.” E eu lhe respondo: “Pois
eu as faço com se estivesse para morrer a cada instante.” Quem de
nós tinha razão, patrão?
— É nessa que eu te pego — disse.
Calei-me duas trilhas igualmente íngremes
e ousadas podem levar ao mesmo cume. Agir como se a morte não
existisse e agir pensando na morte a cada instante é talvez a mesma
coisa. Mas quando Zorba me perguntou eu não sabia.
— E então? — perguntou Zorba com
malícia. — não se importe, patrão, não tem saída mesmo.
Falemos de outra coisa. Eu, neste momento, penso em almoçar, na
galinha, no arroz com canela, e meu cérebro solta fumaça como o
arroz. Amanhã, a linhita estará diante de nós; e o nosso
pensamento será linhita. Nada de mais medidas, certo?
Entramos na aldeia. As mulheres estava
sentadas às portas das casas e tagarelavam; os velhos, apoiados em
seus bastões, estavam quietos. Sob uma romãzeira carregada de
frutos uma velha encarquilhada catava algumas coisas do neto. Diante
do café estava um velho espigado, o rosto severo e concentrado,
nariz aquilino, ar de grão-senhor; era Mavrandoni, o notável da
aldeia, que nos havia alugado a mina de linhita. Havia passado na
véspera na casa de Madame Hortência para nos levar para sua casa.
— É uma vergonha para nós que vocês
fiquem no albergue, como se não houvessem pessoas para recebê-los.
Era austero, e media suas palavras.
Havíamos recusado. Ele ressentiu-se, mas não insistiu.
— Fiz meu dever — declarou ao sair. —
vocês são livres.
Logo depois enviou-nos dois queijos, uma
cesta de romãs, um prato com uvas secas e figos e uma jarra de raki.
— Saudações da parte do capitão
Mavrandoni! — disse o criado, descarregando o burrico — pouca
coisa, mandou dizer, mas de coração.
Cumprimentamos o notável abundantemente,
com palavras cordiais.
— Longa vida a vocês — respondeu
ele, colocando sua mão ao peito. E calou-se.
— Ele não gosta muito de falar —
murmurou Zorba: — é um homem fechado.
— Orgulhoso — disse eu. — gosto
dele.
Estávamos chegando. As narinas de Zorba
palpitavam alegremente. Madame Hortência, assim que nos viu à
entrada, deu um grito e voltou à cozinha.
Zorba preparou a mesa no pátio, sob a
latada aberta e já sem folhas. Cortou grandes pedaços de pão,
trouxe o vinho, botou os pratos e talheres. Voltou-se, olhou-me
maliciosamente e apontou-me a mesa: havia posto lugar para três!
— Morou, patrão? — soprou-me.
— Morei — respondi. — morei sim,
velho debochado.
— São as galinhas velhas que fazem as
boas canjas — disse ele passando a língua nos lábios. — disso
eu entendo.
Movimentava-se, ágil, e seus olhos
dardejavam enquanto cantarolava velhas cantigas de amor.
— Isso é que é vida, patrão. Boa
vida. Veja, nesse momento estou me comportando como se fosse morrer
agora. E apresso-me a comer a galinha antes que me quebrem o pito.
— À mesa! — ordenou Madame
Hortência.
Ergueu a terrina e veio colocá-la diante
de nós. Mas ficou de boca aberta: havia visto os três lugares.
Vermelha de prazer, olhou para Zorba com seus pequenos olhos ácidos,
azuis, e tremelicou as pálpebras.
— Essa tem fogo — segredou-me Zorba.
Depois, com extrema polidez, voltou-se
para ela:
— Bela ninfa das ondas — disse-lhe, —
somos náufragos e o mar jogou-nos em teu reino. Digna-te a repartir
conosco nosso almoço, minha sereia!
A velha cantora abriu os braços e tornou
a fechá-los, como se quisesse envolver nós dois num abraço;
balançou-se graciosamente, passou por Zorba, por mim, e correu
cacarejando para seu quarto.
Logo depois voltou, trepidante,
rebolando-se com seu melhor vestido: um velho vestido de veludo
verde, gasto, enfeitado de cordões de cetim amarelo. O corpete
estava hospitaleiramente aberto, e no decote pendera uma rosa de
pano, puída. Na mão trazia a gaiola do papagaio, que pendurou numa
trave da latada.
Fizemos com que ela se sentasse ao meio,
Zorba à sua direita e eu à esquerda.
Atiramo-nos sobre o almoço. Um longo
momento passou sem que nenhum de nós dissesse palavra. Em cada um a
fera alimentava-se e embriagava-se com o vinho; a comida se
transformava depressa em sangue, o mundo ficava mais belo, a mulher a
nosso lado a cada instante parecia mais jovem, e suas rugas se
apagavam. O papagaio suspenso à nossa frente, roupa verde e colete
amarelo, debruçava-se para nos olhar e parecia hora um homenzinho
enfeitiçado ora a alma da velha cantora, vestida de verde e amarelo.
E sobre nossas cabeças a latada desfolhada se cobria de repente com
grandes cachos de uvas negras.
Zorba revirou os olhos e abriu os braços
como se quisesse abarcar com eles todo o mundo.
— O que se passa, patrão? — disse
ele, estupefato, — bebe-se um copo de vinho e o mundo perde o rumo.
E, assim mesmo, que coisa é a vida, patrão! Afinal, isso que pende
sobre sua cabeça são uvas? São anjos? Não consigo distinguir. Ou
então não é nada, e nada existe; nem galinha, nem sereia, nem
Creta? Fale, patrão, fale ou fico louco!
Zorba começava a ficar excitado. Tinha
terminado a galinha e olhava gulosamente para Madame Hortência. Seus
olhos se jogavam sobre ela, subiam e desciam, esgueiravam-se para
dentro de seu colo intumescido e apalpavam-na com as mãos. Os
pequeninos olhos de nossa boa senhora brilhavam também, pois gostava
de vinho, e havia tomado Deus quem sabe quantos copos. E o turbulento
demônio do vinho a havia levado de volta aos bons tempos.
Readquirida a ternura, alegre e expansiva, ela se levantou, trancou a
porta de fora para que os aldeões não a vissem — “os Bárbaros”
como ela os chamava — acendeu um cigarro e, com seu narizinho
arrebitado à francesa, pôs-se a soltar espirais de fumaça.