A Bagé, em Porto Alegre, seria uma rua
igual a todas as outras do bairro Petrópolis. Seria, não fosse o
número 81. Ele é o pedaço de caos na ordem cósmica da Bagé. O
triângulo no meio da fileira de quadrados. O protesto bruto à
sociedade de consumo, descartável e implacável. O número 81 da rua
Bagé é a toca de um homem pequeno, não mais de metro e meio de
altura, mirrado como um suspiro. É a toca de Oscar Kulemkamp. Lá
dentro, há fragmentos de uma Porto Alegre inteira.
Ninguém sabe dizer quando foi que Oscar
Kulemkamp iniciou sua resistência. O fato é que dia após dia ele
peregrina pelas ruas de Porto Alegre. Começou resgatando banquinhos
amputados e lhes devolvendo as pernas. Acabou tomando para si a
missão de juntar os pedaços da cidade. Vai de lixeira em lixeira,
até onde alcança, recolhendo nacos de pau e de canos, ventiladores
estragados, vasos quebrados, brinquedos abandonados. Tarefa árdua,
porque ele é um só combatente contra um exército de 1,3 milhão de
pessoas que todos os dias botam fora as sobras de suas vidas.
Oscar Kulemkamp apropriou-se dessas vidas
jogadas fora. E salvou-as do aterro sanitário do esquecimento. Foi
assim que o chalé de madeira onde criou os sete filhos se
transformou numa toca. Retalhos de existência foram tomando conta
das peças da casa. Quando o interior ficou abarrotado, começou a
ocupar o quintal, o corredor, os fundos. Quando todos os espaços
foram preenchidos, passou a pendurar nos galhos dos cinamomos, dos
abacateiros. Depois das árvores foi a vez da calçada. O casulo de
Oscar Kulemkamp não parou mais de crescer. Agora as janelas já
estão cobertas de obsolescências e ele só penetra na casa
esgueirando-se por um túnel de restos.
Não fosse reinventar o mundo, Oscar
Kulemkamp seria dono apenas de uma vida que partiu. Como a mulher,
quatro anos atrás. E uma filha, de câncer. Garçom a maior parte de
seus 85 anos, as mesas que serviu já não existem. São nomes do
passado, quase pó, como o Restaurante Sherazade. Histórias não
mais contadas, ruas que já se foram, personagens que só povoam os
cemitérios.
Ele emerge de seu túnel sem tempo como
uma toupeira miúda. Veste roupas pobres, puídas e encardidas pela
poeira dos dias. Está mais surdo do que porta de igreja, como ele
diz. E não fosse recolher restos de existências alheias, teria
somente os dois filhos que compartilham de sua caverna – um que
vive nas trevas e jamais sai de casa, outro que às vezes o ameaça
de morte. Os quatro filhos que casaram e não compreendem a sua
obsessão. E os dois gatos que travam infindáveis batalhas com o
esquadrão de ratos que persegue o rastro do antigo habitante da
Bagé.
Oscar Kulemkamp teceu sua colcha de
retalhos com a vida dos outros. Com o refugo da vida dos outros.
Cartões que jamais foram enviados a ele. “Rezei tanto para ficar
com você nesse Natal.” Manuais de objetos que nunca lhe
pertenceram. “Atenção: este televisor reúne várias inovações.
Para entendê-lo e aproveitar todos os seus recursos é indispensável
que o primeiro passo seja ler o manual de instruções.” Encomendas
que nunca fez. “Trabalhos pagos com cheques só serão entregues
após a compensação dos mesmos.” Identidades alheias, carteiras
de profissões que nunca serão suas. Páginas de revistas,
panfletos, santinhos. Quadro de uma família real, gravura de neve.
Até mesmo um pedaço de papel escrito “Sou feliz!”. Bolas de
Natal de uma árvore que não brilhou no seu dezembro.
No esconderijo de Oscar Kulemkamp, os
balões murchos do aniversário de uma criança que não conheceu
decoram todos os dias de sua vida. Um enfeite feito de palitos de
picolé por um filho – e mais tarde abandonado pela mãe que o
recebeu – foi acomodado no armário da sala. As bonecas tortas,
quebradas, esbodegadas foram enfileiradas. E as meninas rejeitadas
que sorriem das fotografias, penduradas como netas queridas.
Os vizinhos se assustam com aquele casulo
que cresce sem parar, aquelas sombras metade árvores metade lixo que
avançam sobre a rua. Uma moradora pediu providências ao
Departamento Municipal de Limpeza Urbana, que carregou parte do
tesouro de Oscar Kulemkamp. Tão desesperado ele ficou que mais
ninguém teve coragem de ensaiar o protesto. Um vizinho compreensivo
já deixou de prontidão a mangueira, para que no dia em que tudo
aquilo virar chamas consiga pelo menos salvar o homem engastado em
sua caverna. Então ele poderá iniciar novamente a sua jornada sem
fim para salvar os pedaços da cidade.
Quando surge lá de dentro, desconfiado e
sorridente, Oscar Kulemkamp já vai explicando que um dia, um dia em
breve, vai levar tudo aquilo para construir uma casa na praia. Uma
Pasárgada onde bonecas cansadas, fotografias de crianças que já se
deixou de amar e cartões de aniversário que se foram não virem
lixo. Um mundo onde nem coisas nem pessoas sejam descartáveis. Onde
nada nem ninguém fique obsoleto depois de velho, quebrado ou torto.
Um mundo onde todos tenham igual valor. E a nenhum seja dado uma
lixeira por destino.
O número 81 da rua Bagé é o castelo de
um homem que inventou um mundo sem sobras. Dando valor ao que não
tinha, Oscar Kulemkamp deu valor a si mesmo. Colecionando vidas
jogadas fora, Oscar Kulemkamp salvou a sua. Talvez seja esse o
mistério do número 81. E talvez por isso seja tão assustador.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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