segunda-feira, 29 de março de 2021

O colecionador das almas sobradas

 


A Bagé, em Porto Alegre, seria uma rua igual a todas as outras do bairro Petrópolis. Seria, não fosse o número 81. Ele é o pedaço de caos na ordem cósmica da Bagé. O triângulo no meio da fileira de quadrados. O protesto bruto à sociedade de consumo, descartável e implacável. O número 81 da rua Bagé é a toca de um homem pequeno, não mais de metro e meio de altura, mirrado como um suspiro. É a toca de Oscar Kulemkamp. Lá dentro, há fragmentos de uma Porto Alegre inteira.
Ninguém sabe dizer quando foi que Oscar Kulemkamp iniciou sua resistência. O fato é que dia após dia ele peregrina pelas ruas de Porto Alegre. Começou resgatando banquinhos amputados e lhes devolvendo as pernas. Acabou tomando para si a missão de juntar os pedaços da cidade. Vai de lixeira em lixeira, até onde alcança, recolhendo nacos de pau e de canos, ventiladores estragados, vasos quebrados, brinquedos abandonados. Tarefa árdua, porque ele é um só combatente contra um exército de 1,3 milhão de pessoas que todos os dias botam fora as sobras de suas vidas.
Oscar Kulemkamp apropriou-se dessas vidas jogadas fora. E salvou-as do aterro sanitário do esquecimento. Foi assim que o chalé de madeira onde criou os sete filhos se transformou numa toca. Retalhos de existência foram tomando conta das peças da casa. Quando o interior ficou abarrotado, começou a ocupar o quintal, o corredor, os fundos. Quando todos os espaços foram preenchidos, passou a pendurar nos galhos dos cinamomos, dos abacateiros. Depois das árvores foi a vez da calçada. O casulo de Oscar Kulemkamp não parou mais de crescer. Agora as janelas já estão cobertas de obsolescências e ele só penetra na casa esgueirando-se por um túnel de restos.
Não fosse reinventar o mundo, Oscar Kulemkamp seria dono apenas de uma vida que partiu. Como a mulher, quatro anos atrás. E uma filha, de câncer. Garçom a maior parte de seus 85 anos, as mesas que serviu já não existem. São nomes do passado, quase pó, como o Restaurante Sherazade. Histórias não mais contadas, ruas que já se foram, personagens que só povoam os cemitérios.
Ele emerge de seu túnel sem tempo como uma toupeira miúda. Veste roupas pobres, puídas e encardidas pela poeira dos dias. Está mais surdo do que porta de igreja, como ele diz. E não fosse recolher restos de existências alheias, teria somente os dois filhos que compartilham de sua caverna – um que vive nas trevas e jamais sai de casa, outro que às vezes o ameaça de morte. Os quatro filhos que casaram e não compreendem a sua obsessão. E os dois gatos que travam infindáveis batalhas com o esquadrão de ratos que persegue o rastro do antigo habitante da Bagé.
Oscar Kulemkamp teceu sua colcha de retalhos com a vida dos outros. Com o refugo da vida dos outros. Cartões que jamais foram enviados a ele. “Rezei tanto para ficar com você nesse Natal.” Manuais de objetos que nunca lhe pertenceram. “Atenção: este televisor reúne várias inovações. Para entendê-lo e aproveitar todos os seus recursos é indispensável que o primeiro passo seja ler o manual de instruções.” Encomendas que nunca fez. “Trabalhos pagos com cheques só serão entregues após a compensação dos mesmos.” Identidades alheias, carteiras de profissões que nunca serão suas. Páginas de revistas, panfletos, santinhos. Quadro de uma família real, gravura de neve. Até mesmo um pedaço de papel escrito “Sou feliz!”. Bolas de Natal de uma árvore que não brilhou no seu dezembro.
No esconderijo de Oscar Kulemkamp, os balões murchos do aniversário de uma criança que não conheceu decoram todos os dias de sua vida. Um enfeite feito de palitos de picolé por um filho – e mais tarde abandonado pela mãe que o recebeu – foi acomodado no armário da sala. As bonecas tortas, quebradas, esbodegadas foram enfileiradas. E as meninas rejeitadas que sorriem das fotografias, penduradas como netas queridas.
Os vizinhos se assustam com aquele casulo que cresce sem parar, aquelas sombras metade árvores metade lixo que avançam sobre a rua. Uma moradora pediu providências ao Departamento Municipal de Limpeza Urbana, que carregou parte do tesouro de Oscar Kulemkamp. Tão desesperado ele ficou que mais ninguém teve coragem de ensaiar o protesto. Um vizinho compreensivo já deixou de prontidão a mangueira, para que no dia em que tudo aquilo virar chamas consiga pelo menos salvar o homem engastado em sua caverna. Então ele poderá iniciar novamente a sua jornada sem fim para salvar os pedaços da cidade.
Quando surge lá de dentro, desconfiado e sorridente, Oscar Kulemkamp já vai explicando que um dia, um dia em breve, vai levar tudo aquilo para construir uma casa na praia. Uma Pasárgada onde bonecas cansadas, fotografias de crianças que já se deixou de amar e cartões de aniversário que se foram não virem lixo. Um mundo onde nem coisas nem pessoas sejam descartáveis. Onde nada nem ninguém fique obsoleto depois de velho, quebrado ou torto. Um mundo onde todos tenham igual valor. E a nenhum seja dado uma lixeira por destino.
O número 81 da rua Bagé é o castelo de um homem que inventou um mundo sem sobras. Dando valor ao que não tinha, Oscar Kulemkamp deu valor a si mesmo. Colecionando vidas jogadas fora, Oscar Kulemkamp salvou a sua. Talvez seja esse o mistério do número 81. E talvez por isso seja tão assustador.

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

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