Estacionado na porta do homem da tesoura,
reparava seus cortes. Tudo eu olhava devagar para bem imaginar. Sua
mão firme retalhava os caminhos riscados sobre a casimira ou linho.
O destino da tesoura era traçado. No meu caminhar não havia amparo.
Nunca o alfaiate torturava o tecido para depois perguntar-se: para
quê? Em princípio, os pedaços de panos lembravam mapas de tantos
países: Itália, França, Cuba, Grécia, Portugal. Depois, a agulha
alinhavava as fronteiras e o paletó mostrava-se completo. A ponta
fina da agulha vazava o ar e amarrava, com perfeito amor, os
estranhos pedaços. Suspeitava que o mundo não fora riscado antes de
cumprir-se. Suspeitar é negar-se à certeza.
Mas também passarinho é uma vírgula
pontuando o céu. Eu ensaiava ler as perguntas que preenchiam o azul
vazio e os pássaros virgulavam. Descobri ser uma língua estrangeira
a voz dos pássaros, e embaraçava-me. Então, subvertia respostas
para tapear meu desconsolo. Não ter resposta é confirmar-se
ausente. Viver exige perguntas e eu, mudo, não sabia responder.
Também pela superfície profunda da pele
a memória se faz palavra. No roçar do frio as lembranças das mãos
do amor desanuviam-se. Na água morna que enxágua o corpo nasce um
desejo de desnascer. É atravessando os poros que sua voz, em música,
alcança meus ouvidos. O aço frio da faca afiada encrespa-me da
carne à alma.
A mãe colhia singelos buquês de flores
e sepultava aos pés de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Imagem de
gesso, colada com grude de polvilho — de muito tombar — na quina
do quarto. Às vezes, uma vela permanecia acesa, sem pecado para
queimar-se.
Comemorava-se uma graça ainda por
chegar. Só as rosas não se intrometiam nessa indesvendável
promessa. Desconheço o motivo, se pavor do espinho ou da dor. Agora,
com sua ferida cicatrizada, ela nos deixou entre rosas, já sem medo
dos espinhos, sem respirar o perfume, sem reparar nas cores.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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