O hospedeiro é o senhor dos estranhos.
Esta é a história e a não história do
mundo, desde o início até hoje, e foi com essa frase que tudo
começou e não com “no princípio era o verbo” ou “no
princípio Deus criou os céus e a terra”.
No princípio havia um habitante. De uma
caverna, palhoça, cabana, estalagem, casa, castelo, mansarda,
mansão, vivenda, moradia, domicílio, residência, armazém,
estabelecimento, mercado, igreja, mosteiro, convento, templo,
fazenda, chácara, sítio, entreposto, prédio, mercearia, edifício,
estância, pousada, um abrigo. Veio alguém, um desconhecido, e
bateu, pedindo pouso, comida e agasalho. Um habitante olhou
desconfiado para o estranho, fez uma cara feia, uma careta, e bateu
nele com um pau. A história ficou estagnada.
Outro habitante não teve medo. Abriu a
porta, deu-lhe de comer sua melhor comida, mesmo pouca, cedeu-lhe a
cama, o que tinha, uma coberta, uma manta e aproximou-o do fogo,
aquecendo-o, para que, no dia seguinte, ele pudesse continuar a
jornada. Não lhe perguntou a procedência nem o destino. Acolheu-o.
Assim teve início a viagem do tempo pelo
espaço e a história das trocas, das línguas e das promessas,
porque, depois que aquele estranho tinha se estabelecido em algum
canto, foi ele a hospedar um outro estranho que lhe veio pedir
guarida.
Hospedar é o gesto mais sagrado da
humanidade. Para filósofos como Lévinas e Derrida e para um poeta
como Edmond Jabés, a hospitalidade está acima da responsabilidade e
da liberdade, porque as contém.
Host e guest, anfitrião e
visitante, em inglês, têm a mesma origem, porque são a mesma
coisa, apenas em lugares casualmente alternados. Ambos são estranhos
um ao outro, embora aquele que hospeda já pertença a uma
comunidade, enquanto quem pede abrigo vem de fora. Hospedar é trazer
para dentro o que vem de fora, é tornar menos estranho o
estrangeiro. Para Derrida, o hospedeiro deve fazer com que o hóspede
se sinta como se fosse ele o anfitrião.
Estrangeiro, ou estranho, que são
sinônimos, são os que não pertencem. O estrangeiro é vindo de um
lugar a que pertencia para outro que ainda desconhece, e essa é a
condição mais solitária possível, especialmente se não houve
escolha. O o estrangeiro. Para Derrida, o hospedeiro deve fazer com
que o hóspede se sinta como se fosse ele o anfitrião. Estrangeiro,
ou estranho, que são sinônimos, são os que não pertencem. O
estrangeiro é vindo de um lugar a que pertencia para outro que ainda
desconhece, e essa é a condição mais solitária possível,
especialmente se não houve escolha. O estrangeiro é tido como
perigoso e para ele, contra ele, criaram-se fronteiras. Por causa
dele, inventaram-se as ideias de dentro e de fora. Por causa dele,
associou-se o estrangeiro, o estranho, à ideia de louco, esquisito.
O estranho-louco é nada mais do que o que não está dentro. Ele
fala palavras que não entendo; faz coisas a que não estou
habituado. Ele me ameaça porque vem de fora. Estranho, em latim, é
o mesmo que alienado. Também de fora. Alienação é perda de
controle sobre alguma coisa ou sobre si mesmo; sinônimo de loucura e
apatia. Só o hospedeiro é capaz de trazer o alienado de volta para
um abrigo e indicar-lhe a estrada, para que ele reconquiste o
controle sobre si.
Na Albânia, como conta Ismail Kadaré no
seu Abril despedaçado, é-se obrigado a hospedar até mesmo o
assassino do filho do hospedeiro e servi-lo com a melhor panela da
casa, o melhor prato, a melhor porção. Quem transgride as regras da
boa hospedagem estará sujeito a maldições e vingança. Aquele que
não hospeda é o hostil, e o local que não hospeda é inóspito.
Hostil é aquele que quer manter as fronteiras, fazer com que o de
fora sinta-se permanentemente nessa condição e pense que é seu
destino ser de fora e que a ideia de dentro só cabe ao hospedeiro
hostil, o que teve a sorte e o acaso de estar dentro.
Diante da hostilidade, acabam-se os
presentes e acaba-se também o tempo presente, que é o tempo da
hospedagem, quando as coisas se dão. Dar-se ou acontecer, ocorrer, é
fazer o presente existir. O agora é a hospedagem do ser no tempo,
que nos recebe sem nada nos perguntar. Somos todos hóspedes do
tempo, adentrando-o, mas sempre, de alguma forma, dele alienados,
nele viajando temporariamente, por vezes mais dentro, outras mais
fora. Ao recebermos um hóspede, cedendo-lhe abrigo e pousada,
fazemos nós as vezes do tempo, concedendo-lhe efemeramente um
cadinho no espaço.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
Nenhum comentário:
Postar um comentário