segunda-feira, 29 de março de 2021

A agulha

Na manhã seguinte, o mar ainda não apaziguado rolava em ondas longas e vagarosas, de um volume enorme, e empenhadas em meio aos borbotões do rastro do Pequod empurravam-no adiante como as mãos espalmadas de um gigante. A brisa forte e galharda era tão abundante que céu e ar se afiguravam imensas velas enfunadas; o mundo inteiro avançava ao vento. Encoberto em plena luz matinal, o sol invisível só se reconhecia pela intensidade irradiada de seu posto; de onde seus raios de baioneta partiam às medas. Adornos, como os dos reis e rainhas coroados da Babilônia, reinavam sobre tudo. O mar era como uma copela de ouro fundido, que, jorrando, salta com luz e calor.
Longamente impondo-se um silêncio encantado, Ahab permaneceu a distância; e sempre que o gurupés do navio, que jogava da popa à proa, afundava, ele se virava para olhar os raios brilhantes do sol que surgiam à frente; e, quando o navio mergulhava pela popa, virava-se para trás para ver o lugar do sol à retaguarda e como os mesmos raios amarelos se fundiam com o rastro incontornável.
Ha, ha, meu navio! Tu bem poderias ser tomado pela carruagem marítima do sol. Ho, ho! Vós, nações perante minha proa, eu vos trago o sol! Aparelhai-vos sempre mais, ondas distantes! Olá! Um tandem, eu dirijo o mar!”
Mas de repente, freado por um pensamento contrário, correu em direção ao leme, exigindo roucamente saber qual era a direção do navio.
Lés-sudeste, senhor”, disse o timoneiro assustado. “Mentes!”, acertando-lhe com o punho cerrado. “Rumo leste a essa hora da manhã com o sol à ré?”
Diante disso, todos os marinheiros ficaram confusos; pois o fenômeno então observado por Ahab escapara inexplicavelmente a todos; mas a própria evidência incompreensível deve ter sido a causa.
Avançando com a cabeça a meio palmo da bitácula, Ahab deu uma olhada nas bússolas; seu braço levantado tombou devagar; por um instante, pareceu a ponto de cambalear. De pé atrás dele, Starbuck olhou e, oh!, as duas bússolas indicavam leste e era certo que o Pequod estava navegando para oeste.
Mas, antes que o primeiro alarme tumultuoso chegasse ao meio da tripulação, o velho, com um riso seco, exclamou, “Entendi! Já aconteceu antes. Senhor Starbuck, o estrondo de ontem alterou as nossas bússolas – isso é tudo. Suponho que já ouviste falar disso antes”.
Sim, mas nunca antes me tinha acontecido, senhor”, disse o pálido oficial, com ar sombrio.
Aqui é necessário dizer que acidentes como esse ocorreram mais de uma vez com navios no transcurso de uma tempestade violenta. A energia magnética que se desenvolve na agulha de marear é, como todos sabem, essencialmente da mesma natureza da eletricidade do céu; portanto, não é de se estranhar que tais coisas aconteçam. Nos casos em que o raio de fato atingiu a embarcação, destruindo uma parte das vergas e do cordame, o efeito sobre a agulha foi por vezes ainda mais fatal; toda a força magnética da agulha ficou aniquilada, de tal modo que o aço, antes magnético, ficou tão útil quanto a agulha de tricô de uma velha senhora. Mas, seja como for, a agulha, por si mesma, nunca mais recupera a força original, assim estragada ou perdida; e, se as bússolas da bitácula são afetadas, o mesmo acontece às outras que se encontram a bordo; mesmo que a mais baixa delas esteja inserida na sobrequilha.
Deliberadamente de pé em frente à bitácula e olhando para as bússolas desreguladas, o velho, com a ponta da mão estendida na direção exata do sol e convencido de que as agulhas estavam exatamente invertidas, ordenou aos gritos que a rota do navio fosse alterada. As vergas foram colocadas com dificuldade; e mais uma vez o Pequod lançou sua proa intrépida ao vento contrário, pois o suposto vento favorável era mera trapaça.
Nesse ínterim, quaisquer que fossem seus pensamentos secretos, Starbuck nada disse, mas com calma expediu as ordens requeridas; enquanto Stubb e Flask – que em certa medida pareciam compartilhar de seus sentimentos – também aquiesceram sem um murmúrio. Quanto aos marinheiros, embora alguns deles resmungassem em voz baixa, seu medo de Ahab era maior que seu medo do Destino. Mas, como sempre se dera antes, os arpoadores pagãos permaneceram inabaláveis; ou, se abalados, apenas por um certo magnetismo injetado em seus corações amáveis pelo coração inflexível de Ahab.
Durante algum tempo o velho caminhou pelo convés em devaneios circulares. Mas, escorregando por acaso com o salto de marfim, viu os tubos de cobre esmagados do quadrante que no dia anterior atirara ao convés.
Tu, pobre e orgulhoso contemplador do céu e piloto do sol! Ontem eu te destruí, e hoje as bússolas quiseram destruir a mim. Bem, bem! Mas Ahab é ainda o senhor do ímã. Senhor Starbuck – uma lança sem o cabo; um pilão; e a menor agulha de coser velas. Rápido!”
Atreladas, talvez, ao impulso que ditava a ação que estava por fazer, havia certas razões de prudência, cujo objetivo seria reanimar o moral da tripulação com um gesto de sutil habilidade, num caso tão assombroso como o das agulhas invertidas. Ademais, o velho bem sabia que pilotar por agulhas desreguladas, embora fosse canhestramente praticável, não era coisa que marinheiros supersticiosos aceitassem sem alguns sobressaltos e maus presságios.
Homens”, disse ele, olhando fixamente para a tripulação, enquanto o oficial lhe entregava as coisas que pedira, “meus homens, o trovão inverteu as agulhas do velho Ahab; mas com esse pedacinho de aço Ahab pode fazer uma à sua maneira, que nos orientará tão bem quanto qualquer outra.”
Olhares desconcertados de admiração servil foram trocados entre os marinheiros, enquanto escutavam essas palavras; e com olhos fascinados aguardaram a tal mágica que se seguiria. Mas Starbuck olhou para longe.
Com um golpe de pilão Ahab tirou a cabeça de aço da lança e então, entregando a longa haste de ferro ao oficial, pediu-lhe que a segurasse reta, sem tocar no convés. Em seguida, depois de golpear repetidas vezes a extremidade superior da haste de ferro, colocou em cima do pilão a agulha cega e, com menos força, bateu ali diversas vezes, com o oficial ainda segurando a haste como antes. Então, fazendo alguns movimentos estranhos com ela – talvez indispensáveis para magnetizar o aço, ou com a simples intenção de aumentar o assombro da tripulação –, pediu um fio de linho; e, movendo-se para a bitácula, retirou as duas agulhas invertidas de lá e suspendeu horizontalmente a agulha de vela pelo meio, sobre uma das rosas-dos-ventos da bússola. De início o aço deu várias voltas, tremendo e vibrando nas duas extremidades; mas, por fim, fixou-se em seu lugar, quando Ahab, que esperava ansioso por esse resultado, se afastou ostensivamente da bitácula e, apontando-a com o braço esticado, exclamou – “Vede com os vossos olhos se Ahab não é o senhor do ímã! O sol está a leste e a bússola jura isso!”.
Um após o outro, eles espiaram, pois nada senão seus próprios olhos poderiam persuadir uma ignorância como a deles, e, um após o outro, retiraram-se furtivamente.
Com os olhos flamejantes de desprezo e triunfo, vocês então encontrariam Ahab em todo o seu orgulho fatal.

Herman Melville, in Moby Dick

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