sábado, 29 de fevereiro de 2020
Horror
Com
os seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR é uma
palavra de cabelos em pé, assustada da própria significação.
Mário
Quintana, in Sapato florido
O abolicionismo
Aqueles
que alguma vez, em dias de luta, reclinaram na ternura do seio
materno a cabeça preocupada, e conservam no fundo d’alma, como
aroma de lírios extintos, essa reminiscência benigna, — esses
avaliem a consolação do pobre soldado de tantas lutas contra a
injustiça, sentindo hoje, entre duas separações, na fronte
experimentada pelo fogo estas carícias de mãe.
As
coroas que a glória bafeja, embriagam como o suco da vinha: as que o
interesse sobredoira, nodoam como o azinhavre do cobre; as que a
condescendência liberaliza, amesquinham como a proteção imerecida;
mas aquelas com que o ingênuo desvanecimento da pátria afaga a
dedicação obscura dos seus trabalhadores, sabem à sinceridade do
primeiro leite da vida, e ameigam o coração magoado com a doçura
dos beijos que nos perfumam o berço.
Por
entre as trevas que velam a face da nossa Bahia, a mãe forte de
tantos heróis, a antiga metrópole do espírito brasileiro, com pés
assentados na história do seu passado luminoso e a cabeça a
cintilar dos astros ainda não apagados na noite das suas tristezas,
como aquela imagem dos livros santos, calçada de lua e coroada de
estrelas, — as associações abolicionistas representam a plêiade
do futuro, nesse diadema de onde as baixezas da nossa política não
conseguiram desengastar as últimas gemas.
Pequeninas
são elas, e mal parece deslocarem-se, como tão pequeninos e imóveis
esses focos radiantes que descrevem órbitas infinitas pelo espaço
celeste; mas a verdade tão certa como a eterna estabilidade das leis
que regem o cosmo, é que esses núcleos de condensação e
irradiação patriótica assinalam hoje os nossos pontos de
orientação, no horizonte das coisas que estão por vir.
Pueril
engano realmente, senhores, o dos que veem no abolicionismo o termo
de uma aspiração satisfeita, A realidade é que ele exprime apenas
o fato inicial da nossa vida na liberdade, o ponto de partida de uma
trajetória sideral, que se desdobra incomensuravelmente no campo da
nossa visão histórica. Cegos os que supõem na abolição a
derradeira página de um livro encerrado, uma fórmula negativa, a
supressão de um mal vencido, o epitáfio de uma iniquidade secular.
O que ela é, pelo contrário, é um cântico de alvorada, o lema já
não misterioso de uma idade que começa, o medir das forças do
gigante que se desata. Imaginai Prometeu desencadeado, livre do
abutre, ensaiando pela escarpa da montanha os primeiros passos de sua
vitória contra a tirania suprema.
Nós
éramos um povo acorrentado a um cadáver: o cativeiro. O meio século
de nossa existência nacional demarca um período de infecção
sistemática do país pelas influências sociais e oficiais
interessadas na perpetuidade desse regímen de uma vida abraçada à
podridão tumular. Agora, que o tempo acabou de dissolver essa
aliança sinistra, vamos encetar a cura da septicemia cadavérica, do
envenenamento do vivo pelo morto; trabalho que nos impõe os mais
heroicos esforços de reação orgânica, e a que há de presidir o
signo redentor do abolicionismo.
Abolicionismo
é reforma sobre reforma; abolicionismo é reconstituição
fundamental da pátria; abolicionismo é organização radical do
futuro; abolicionismo é renascimento nacional. Não se há de
indicar por uma sepultura com uma inscrição tumular mas por um
berço com um horóscopo de luta.
Os
que fizeram esta campanha — não me refiro aos operários da última
hora, mas aos que se votaram a ela nos dias de dúvida, de sacrifício
e de perigo — esses assumiram para com a sua honra um compromisso,
que está por saldar-se: a eliminação progressiva das instituições
servis, quero dizer, das instituições que vieram pelo consórcio
com a escravidão, que se nutriram de seus vermes, e agora, extinto o
cativeiro negro, hão de conspirar tenazmente pela eternidade do
cativeiro branco.
Rui
Barbosa, in Antologia
Amigo era o braço, e o aço!
Ilustração: Rodrigo Rosa
Mire
veja! naqueles dias, na ocasião, devem de ter acontecido coisas meio
importantes, que eu não notava, não surpreendi em mim. Mesmo hoje
não atino com o que foram. Mas, no justo momento, me lembrei em
madrugada daquele nome! de Siruiz. Refiro que perguntei ao Garanço,
por aquele rapaz Siruiz, que cantava cousas que a sombra delas em meu
coração decerto já estava. O que eu queria saber não era próprio
do Siruiz, mas da moça virgem, moça branca, perguntada, e dos
pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar um igual. Mas o
Garanço já tinha respondido! ― Eh, eh, ô... O Siruiz já morreu.
Morreu morto no tiroteio, entre o Morcêgo e o Suassuapara, passado
para cá o Pacuí... Do choque com que ouvi essa confirmação de
notícia, fui arriando para um desânimo. Como se assim ele tivesse
falado! Siruiz? Mas não foram vocês mesmos que mataram?... Eu, não.
Nessa vez, eu tinha restado longe por fora, na Pedra-Branca, não vi
combate. Como era que eu podia? O Garanço tomava rapé. Era um
sujeito de intenções muito parvas. Perguntou se o Siruiz não seria
meu amigo, meu parente. ― Quem sabe se era... ― eu respondi, de
toleima. O Garanço, vi que não gostou. Viver perto das pessoas é
sempre dificultoso, na face dos olhos. Nem eu quis indagar o mais,
certo estava de que ele Garanço não sabia nada do que tivesse
valor. Mas eu guardava triste de cór a canção recantada. E Siruiz
tinha morrido. Então me instruiram na outra, que era cantiga de se
viajar e cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida!
Olerereêe,
baiana...
Eu
ia e não vou mais:
Eu
faço que vou lá dentro, oh baiana, e volto do meio pra trás...
O
senhor aprende? Eu entôo mal. Não por boca de ruindade, lá como
quem diz. Sou ruim não, sou homem de gostar dos outros, quando não
me aperreiam; sou de tolerar. Não tenho a caixeta da raiva aberta.
Rixava com nenhum, ali, aceitava o regime, na miudez das normas. Vai,
daí, comigo erraram. Um , errou. Um pai-jagunço chamado Antenor,
acho que era coração-de-jesusense, começou a temperar conversa,
sagaz de fiúza, notei. Ele era homem chegado ao Hermógenes ― se
sabia dessa parte. De diz em diz, rodeava a questão. Queria saber
que apreço eu tinha por Joca Ramiro, por Titão Passos, os outros
todos. Se eu conhecia Sô Candelário, que estava por chegar? O giro
dos assuntos ― ele me tenteava a fala. Notei. E, devagar, vinha
querendo deixar em mim uma má vazante: me largar em dúvida. Não
era? Aquilo eu inteligenciava. Esse Antenor, sempre louvando e
vivando Joca Ramiro, acabou por me dar a entender, curtamente, o em
conseguinte: que Joca Ramiro talvez fazia mal em estar tanto tempo
por longe, alguns de bofe ruim já calculavam que ele estivesse
abandonando seu pessoal, em horas de tanta guerra; que Joca Ramiro
era rico, dono de muitas posses em terras, e se arranchava passando
bem em casas de grandes fazendeiros e políticos, deles recebia
dinheiro de munição e paga! seô Sul de Oliveira, coronel Caetano
Cordeiro, doutor Mirabô de Melo. Que era que eu achava?
Eu
escutei. Respondi? Ah, ah. Sou lá para achar nenhuma coisa. Não
tinha nascido no ôntem, cedo tomei experiência de homens por
homens. Disse só que decerto Joca Ramiro estava formando gente e
meios para vir em ajuda de nós, jagunços em lei, e nesse meio-tempo
punha toda confiança no Hermógenes, em Titão Passos, João Goanhá
― fortes no fato valor e na lealdade. Gabei o Hermógenes,
principal; bispei. Com isso, aquele Antenor concordou. A bem dizer,
aprovou o quanto eu disse. Mas realçou mais altamente a fama do
Hermógenes, e do Ricardão, também ― esses dois seriam os chefes
de encher a mão, em paz regalada mas por igual nos combates. Esse
sujeito Antenor sabia coçar queixo de cobra e semear sal em roças
verdes. Vulto perigoso, nas ações ― o Garanço me preveniu, com a
boa noção vinda de sua redondice de atinar. Ações? O que eu vi,
sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra
pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.
Aquele Antenor já tinha depositado em mim o anuvio de uma má ideia!
disideia, a que por minhas costas logo escorreu, traiçoeirinha como
um rabo de gota de orvalho. Que explicação dou ao senhor?
Acreditar, no que ele tinha suso dito, não acreditei. Mas em mim,
para mim, aquilo tudo era ― era assim como um lugar com mau-cheiro,
no campo, uma árvore! lugar fedido, onde é que alguma jaratataca
acuou, por se defender do latido dos cachorros. E grande aviso,
naquele dia, eu tinha recebido; mas menos do que ouvi, real, do que
do que eu tinha de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu
acho que, quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar o
castigo, mas só para se ter consolo legal, depois que o castigo
passou e veio. Aviso? Rompe, ferro!
Cacei
Diadorim. Mas eu estreava umas ânsias. Como fosse, falei, do novo e
do velho; mal foi que falei: em zanga ― desrazoadamente ― e de
primeira entrada. Acho que, por via disso, Diadorim não deu a devida
estimação às minhas palavras. Alheio, eh. Só ojerizado em estilos
ele esteve, um raio de momento, foi de ouvir que alguém pudesse
duvidar do proceder de Joca Ramiro: Joca Ramiro era um imperador em
três alturas! Joca Ramiro sabia o se ser, governava; nem o nome dele
não podia atôa se babujar. E aqueles outros: o Hermógenes,
Ricardão? Sem Joca Ramiro, eles num átimo se desaprumavam, deste
mundo desapareciam ― valiam o que pulga pula. O Hermógenes? Certo,
um bom jagunço, cabo-de-turma; mas desmerecido de situação
política, sem tino nem prosápia. E o Ricardão, rico, dono de
fazendas, somente vivia pensando em lucros, querendo dinheiro e
ajuntando. Diadorim, do Ricardão era que ele gostava menos: ― Ele
é bruto comercial... ― disse, e fechou a boca forte, feito fosse
cuspir.
Eu
então disse, pelo conseguinte: ― A bom e bem, Diadorim. Mas, se é
ou se não é, por que é que não vamos levar informação sutil a
Joca Ramiro, para o enfim? Aí, refalei muito, ao tanto que escondi
minha raiva. Quem sabe Joca Ramiro, na lei da caminhação, não
estava esquecido de conhecer os homens, deixando de farear o mudar do
tempo? Viesse, Joca Ramiro podia detalhar o pôdre do são, recontar
seus brabos entre as mãos e os dedos. Podia, devia de mandar embora
aquele monstro do Hermógenes. Se sendo etcétera, se carecesse ―
eh, uái: se matava!... Diadorim pôs muito os olhos em mim, vi que
com um espanto reprovador, não me achasse capaz de estipular tanta
maldade sem escrúpulo. Mau não sou. Cobra? ― ele disse?
Nem cobra serepente malina não é. Nasci devagar. Sou é muito
cauteloso.
Mais
em paz, comigo mais, Diadorim foi me desinfluindo. Ao que eu ainda
não tinha prazo para entender o uso, que eu desconfiava de minha
boca e da água e do copo, e que não sei em que mundo-de-lua eu
entrava minhas ideias. O Hermógenes tinha seus defeitos, mas puxava
por Joca Ramiro, fiel ― punia e terçava. Que, eu mais uns dias
esperasse, e ia ver o ganho do sol nascer. Que eu não entendia de
amizades, no sistema de jagunços. Amigo era o braço, e o aço!
Amigo?
Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim, é diferente.
Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem
por este mundo, barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a
injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto! é a pessoa com
quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de
que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos
sacrifícios. Ou ― amigo ― é que a gente seja, mas sem precisar
de saber o por quê é que é. Amigo meu era Diadorim; era o Fafafa,
o Alaripe, Sesfrêdo. Ele não quis me escutar. Voltei da raiva.
Digo
ao senhor! nem em Diadorim mesmo eu não firmava o pensar. Naqueles
dias, então, eu não gostava dele? Em pardo. Gostava e não gostava.
Sei, sei que, no meu, eu gostava, permanecente. Mas a natureza da
gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e tem noite, versáveis,
em amizade de amor.
Antes
o que me atanazava, a mór ― disso crio razoável lembrança ―
era o significado que eu não achava lá, no meio onde eu estava
obrigado, naquele grau de gente. Mesmo repensando as palavras de
Diadorim, eu apurava só este resto! que tudo era falso viver,
deslealdades. Traição? Traição minha, fosse no que fosse. Quase
tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição?
Há-de-o, a alguém, a alguma coisa. E eu não tardei no meu querer:
lá eu não podia mais ficar. Donde eu tinha vindo para ali, e por
que causa, e, sem paga de prêço, me sujeitava àquilo? Eu ia-me
embora. Tinha de ir embora. Estava arriscando minha vida, estragando
minha mocidade. Sem rumo. Só Diadorim. Quem era assim para mim
Diadorim? Não era, aquela ocasião, pelo próprio dito de estar
perto dele, de conversar e mais ver. Mas era por não aguentar o ser:
se de repente tivesse de ficar separado dele, pelo nunca mais. E
mesmo forte era a minha gastura, por via do Hermógenes. Malagourado
de ódio: que sempre surge mais cedo e às vezes dá certo, igual
palpite de amor. Esse Hermógenes ― belzebú. Ele estava
caranguejando lá. Nos soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu
nunca soube tanto disso, como naquele tempo. O Hermógenes, homem que
tirava seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros. Aí,
arre, foi que de verdade eu acreditei que o inferno é mesmo
possível. Só é possível o que em homem se vê, o que por homem
passa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estava próximo de mim,
vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisas muito duras. Nas
larguezas do sono da gente.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
O papagaio premiado
O
I Concurso Nacional de Papagaios, realizado em Nova Brasília, no
estado do Pará, conferiu medalha de ouro ao candidato Crisóstomo,
que falava diversas línguas, entre elas o esperanto.
A
ave premiada pertencera a sujeitos de diferentes países, daí o seu
conhecimento de idiomas. Crisóstomo compareceu a congressos de
linguística, e suas intervenções eram gravadas para o ensino
audiovisual nas escolas.
Sua
pronúncia era invejada não só pelos psitacídeos como por
professores de línguas. Ganharia bom dinheiro se fosse ambicioso.
Não era. O produto de suas conferências revertia em benefício da
Associação dos Papagaios Mudos.
Crisóstomo
não resistiu, porém, ao convite para fundar novo partido político.
O que sabia em línguas faltava-lhe em arte política. Oradores
violentos, na Câmara, impunham-lhe silêncio. Renunciou o mandato e
recolheu-se ao asilo da associação beneficiada por ele, que o
recebeu com prevenção. E nunca mais falou, a não ser para pedir
desculpas.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
Como ensinar
Se
eu fosse ensinar a uma criança a arte da jardinagem, não começaria
com as lições das pás, enxadas e tesouras de podar. Eu a levaria a
passear por parques e jardins, mostraria flores e árvores, falaria
sobre suas maravilhosas simetrias e perfumes; a levaria a uma
livraria para que ela visse, nos livros de arte, jardins de outras
partes do mundo. Aí, seduzida pela beleza dos jardins, ela me
pediria para ensinar-lhe as lições das pás, enxadas e tesouras de
podar. Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música, não
começaria com partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as
melodias mais gostosas e lhe falaria sobre os instrumentos que fazem
a música. Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me
pediria que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas
escritas sobre cinco linhas. Porque as bolinhas pretas e as cinco
linhas são apenas ferramentas para a produção da beleza musical. A
experiência da beleza tem de vir antes. Se fosse ensinar a uma
criança a arte da leitura, não começaria com as letras e as
sílabas. Simplesmente leria as estórias mais fascinantes que a
fariam entrar no mundo encantado da fantasia. Aí então, com inveja
dos meus poderes mágicos, ela desejaria que eu lhe ensinasse o
segredo que transforma letras e sílabas em estórias. É muito
simples. O mundo de cada pessoa é muito pequeno. Os livros são a
porta para um mundo grande. Pela leitura vivemos experiências que
não foram nossas e então elas passam a ser nossas. Lemos a estória
de um grande amor e experimentamos as alegrias e dores de um grande
amor. Lemos estórias de batalhas e nos tornamos guerreiros de espada
na mão, sem os perigos das batalhas de verdade. Viajamos para o
passado e nos tornamos contemporâneos dos dinossauros. Viajamos para
o futuro e nos transportamos para mundos que não existem ainda.
Lemos as biografias de pessoas extraordinárias que lutaram por
causas bonitas e nos tornamos seus companheiros de lutas. Lendo,
fazemos turismo sem sair do lugar. E isso é muito bom.
Rubem
Alves, in Ostra feliz não faz pérola
Enigma
Com
olhos de abismo, ela sussurrou:
– Decifra-me
ou devoro-te.
Ele
não a decifrou.
Mas
anda muito feliz.
Tadeu
Renato, in Varandeando
Esboço de um sonho
Vem-lhe
de repente um grande desejo de ver seu tio e se apressa por ruelas
retorcidas e empinadas, que parecem se esforçar por afastá-lo da
velha mansão. Depois de muito andar (mas é como se tivesse os
sapatos grudados no chão) vê o pórtico e escuta vagamente o latido
de um cachorro, se aquilo for um cachorro. No momento de subir os
quatro degraus já gastos e quando estende a mão em direção à
aldrava, que é uma outra mão que aperta uma esfera de bronze, os
dedos da aldrava se mexem, primeiro o mínimo e pouco a pouco os
outros, que vão soltando interminavelmente a bola de bronze. A bola
cai como se fosse feita de penas, ricocheteia sem ruído no umbral e
pula à altura de seu peito, mas agora é uma aranha preta e gorda.
Ele a repele com uma pancada frenética e nesse instante a porta se
abre: o tio está de pé, sorrindo sem expressão, como se há tempos
estivesse esperando atrás da porta fechada. Trocam algumas frases
que parecem preparadas, um xadrez elástico. “Agora eu tenho que
responder...” “Agora ele vai dizer...” E tudo acontece
exatamente assim. Eles já estão num aposento brilhantemente
iluminado, o tio puxa cigarros enrolados em papel prateado e lhe
oferece um. Procura os fósforos durante muito tempo, mas na casa
toda não há fósforos nem fogo de espécie alguma; não podem
acender os cigarros, o tio parece aflito para que a visita acabe, e
por fim há uma confusa despedida num corredor cheio de caixotes
abertos pela metade e onde mal sobra lugar para uma pessoa se mexer.
Ao
sair da casa, sabe que não deve olhar para trás, porque... Só sabe
isso, mas sabe, e se retira rapidamente, com os olhos fixos no fundo
da rua. Pouco a pouco começa a sentir-se mais aliviado. Quando chega
em casa está tão exausto que deita logo, quase sem se despir. Então
sonha que está no Tigre e que passa o dia todo remando, com sua
noiva, e comendo salsichas no parque Nuevo Toro.
Júlio
Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas
A perigosa aventura de escrever
“Minhas
intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em
palavras.” Isso eu escrevi uma vez. Mas está errado, pois que, ao
escrever, grudada e colada, está a intuição. É perigoso porque
nunca se sabe o que virá — se se for sincero. Pode vir o aviso de
uma destruição, de uma autodestruição por meio de palavras. Podem
vir lembranças que jamais se queria vê-las à tona. O clima pode se
tornar apocalíptico. O coração tem que estar puro para que a
intuição venha. E quando, meu Deus, pode-se dizer que o coração
está puro? Porque é difícil apurar a pureza: às vezes no amor
ilícito está toda a pureza do corpo e alma, não abençoado por um
padre, mas abençoado pelo próprio amor. E tudo isso pode-se chegar
a ver — e ter visto é irrevogável. Não se brinca com a intuição,
não se brinca com o escrever: a caça pode ferir mortalmente o
caçador.
Clarice
Lispector,
in Crônicas para
jovens: de escrita e vida
José Leonardo
Aparecia
aos sábados na feira, sob um vasto chapéu, aprumado na carona
bojuda, numa complicação de alforjes, látegos e bagagens. Foi o
sujeito mais digno que já vi. Sério, de uma seriedade imóvel e de
estátua, os grandes olhos claros cheios de franqueza.
Conservo
a impressão de que José Leonardo, sem se apressar, fazia tudo
direito: funcionava como um relógio, as rodas movendo-se regulares,
os ponteiros indicando certo número de deveres.
Os
negociantes festejavam-no e disputavam-no. O irmão, Antônio Freire,
não ligava importância a obrigações: vivia na rua, pedindo aqui e
ali o que precisava. Toda a gente o atendia. José Leonardo pagava
sem regatear, fingia não perceber aquelas descaídas, e os
bodegueiros inventavam contas, sangravam-no.
Não
sei como esse homem se aproximou de mim. A seriedade e o silêncio
deviam afastar-nos. Trouxe-me presentes, ficamos amigos, levou-me ao
Pico, a fazenda que possuía a duas léguas da vila. De inverno a
verão, a campina alongava uma faixa de verdura na catinga. Longe, um
serrote se erguia a prumo, esquisito muro de pedra rematado por unia
ponta com aparência de árvore morta. Daí, o nome da propriedade.
Corria de lá um fio de água, que não engrossava nem se reduzia.
Canalizado na valeta, domesticado na bica de madeira, despejava no
cocho que apodrecia debaixo de um pé de jitó, excelente banheiro.
Lembro-me do meu primeiro banho. No calor, o jacto frio nos
acariciava. Seu Filipe Fenício esfregava-se com sabão e estava cor
de alfenim.
Sacudia
uma parte do corpo, como se quisesse despregá-la. Mergulhando no
tanque raso, resfolegava como um bicho. Erguia-se, livre da espuma,
limpo e fresco. Os bigodes longos derramavam-se, brancos, os pelos da
barriga emaranhavam-se, brancos também, e surpreendiam-me. Eu não
supunha que existissem pessoas tão cabeludas.
Do
cocho a água se derramava, corria solta na várzea, regava o
canavial, de canas enormes, único por aqueles sítios. Finda a
umidade, o sertão ia surgindo, a princípio vacilante e morno,
povoado de ouricuris e cajueiros chinfrins, depois seco e amarelo,
coberto de cactos, ossadas e seixos. Aí se arrastavam as criaturas
famintas e sujas que vendiam na feira cestos de imbu e caça miúda.
Em tempo de escassez viviam disso, e como a escassez era frequente,
emigravam, finavam-se na miséria. Uma ou outra cabana, chiqueiros de
cabras morrinhentas, badalar triste de chocalho.
Nas
minhas viagens ao Pico, arrumado à garupa do cavalo de José
Leonardo, eu bocejava no mormaço, olhando a planície crestada,
buscando uma folhagem de juazeiro. De repente, fartura e sombra,
inalteráveis, que tinham dado ao pequeno proprietário aquela
serenidade. Realmente José Leonardo não dependia. Os fazendeiros da
região submetiam-se a alternativas: anos de abundância e anos de
penúria. Às vezes a terra produzia em excesso, outras vezes não
produzia nada. Dissipação, mesquinharia. E contra isso qualquer
esforço era inútil.
José
Leonardo não conhecia lucros desmedidos nem prejuízos. Dedicava-se
a uma indústria segura, diferente da dos vizinhos, Não criava gado
— e o Pico estava isento da lama e das moscas dos currais. Vestia
pano em casa e no trabalho, coisa espantosa. Em geral só os
habitantes da rua usavam tecido. Os matutos se encouravam, mexiam-se
como tatus. Pelas redondezas para bem dizer não havia lavoura além
da sovina plantação feita nas vazantes dos açudes e nas margens
gretadas dos rios periódicos. Os surrões de milho e feijão, em
casa de meu avô, procediam da mata, distante. Os homens ferravam,
capavam, ordenhavam, retalhavam mantas de carne, curtiam, fabricavam
látegos e cordas; as mulheres enchiam potes de leite, mudavam-no em
coalhada e em queijo.
No
Pico não se percebia o cheiro do sangue nem a podridão das
bicheiras. E ocupações desconhecidas logo me impressionaram. Fiquei
tempo esquecido na engenhoca, admirando bois encangados, a mover-se
em redor de um eixo, a cana a triturar-se em moendas de pau, o caldo
a esguichar numa calha que despejava na primeira tacha do
assentamento. Daí se baldeava a outras, em cuias presas em varas. E
da terceira um melado vermelho passava às formas, que deixavam no
chão coberto de bagaço uma chusma de rapaduras.
Nunca
me havia ocorrido que as rapaduras fossem consequência de trabalho
humano. Encaixadas, nas bodegas, não pareciam exigir tantos
preparos.
Aquilo
era uma diversão curiosa. Bonitas, cor de ouro, empilhavam-se ainda
quentes. E desejei permanecer ali, ao calor da fornalha, vendo a cana
esmagar-se, o líquido borbulhar nas talhas, engrossar,
solidificar-se.
À
noite, na casa-grande, dançavam e cantavam. O luar feria pedrinhas
alvas nos caminhos. Achei que uma delas brilhava mais que as outras —
e José Leonardo obrigou-me a aceitá-la. Conservei alguns anos a
preciosidade que faiscava na treva. Num canto de parede, como brasa
perdida no borralho, avivava, em horas de aborrecimento e dor,
aquelas recordações — a faixa do canavial, água empapando a
várzea, bois mansos pezunhando na engenhoca, o mel a ferver nas
tachas, danças, cantigas, a plumagem viva das araras. E iluminava a
figura que se ia distanciando no passado, fria, digna, tranquila.
Bondade diferente das bondades comuns. Não nos atraía, mas
inspirava confiança, vencia o desgraçado acanhamento que me
embrulhava a língua, escurecia a vista, gelava as mãos.
Fiz
numerosas perguntas a José Leonardo, e ele nunca se espantou. Às
vezes hesitava, procurava-me na cara o sentido da frase obscura. E a
informação vinha, natural e paciente. Sem me haver impressionado em
demasia, esse homem deixou-me lembrança que se estirou e me dispôs
a sentimentos benévolos.
Mudei-me,
fui viver na cidade. A pedra faiscante sumiu-se — e o meu quarto,
rezadas as orações, apagado o candeeiro de querosene, escureceu.
Mas a imagem serena me acompanhou. Fixou-se na parede, à noite,
perto das litografias de santos, compreensiva e generosa, sem tentar
corrigir-me, sem dar-me os conselhos que sempre me aperrearam e não
serviram para nada.
Graciliano
Ramos, in Infância
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020
A mediocridade trava o talento
Não
se tem ideia como abunda a mediocridade. (...) São pessoas como
essas que travam sempre, em todos os lados, a máquina acionada
pelos homens de talento. Os homens superiores são por natureza
inovadores. Quando surgem deparam com o disparate e a mediocridade
por todos os lados (ela que tudo domina e que se manifesta em tudo o
que se faz). O seu impulso natural é assentar tudo de novo em
terreno sólido e experimentar caminhos novos, para fugir a essa
vulgaridade e parvoíce. Se por acaso eles triunfam e acabam por
levar a melhor sobre a rotina, têm de ser ver a contas, por seu
turno, com os incapazes - que fazem ponto de honra da cópia
grosseira dos seus processos e estragam tudo o que lhes vem às mãos.
Depois
deste primeiro movimento, que leva os inovadores a saírem das sendas
já traçadas, segue-se quase sempre outro que os faz, no fim da sua
carreira, conter o indiscreto entusiasmo que vai sempre demasiado
longe e que, pelo exagero, arruína o que inventaram. Ao se darem
conta do triste uso que é feito das inovações que eles lançaram
no mundo, começam a elogiar aquilo que, afinal, graças a eles, foi
ultrapassado. Talvez haja neles como que um secreto impulso de
egoísmo, que os leva a tiranizar a tal ponto os seus contemporâneos
e a considerar que só eles podem determinar o que deve ou não ser
criticado. É a sua quota-parte de mediocridade; esta fraqueza fá-los
por vezes desempenhar um papel ridículo e indigno da consideração
a que conquistaram direito.
Eugène
Delacroix, in
Diário
As coisas
Arte: Martha Barros
Assim
é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois
é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos
errados de cor caíam no mar.
A
voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos
apertavam mangues.
Vendo
que havia na terra
Dependimentos
demais
E
tarefas muitas —
Os
homens começaram a roer unhas.
Ficou
certo pois não
Que
as moscas iriam iluminar
O
silêncio das coisas anônimas.
Porém,
vendo o Homem
Que
as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio
das coisas anônimas —
Passaram
essa tarefa para os poetas.
Manoel
de Barros
Tranquilidade de espírito
“Depende
de ti levar uma vida livre de constrangimentos, em completa
tranquilidade de espírito, ainda que todos gritem contra ti o que
quiserem e mesmo que as feras despedacem essa massa que cresce em
torno de ti. Que impede tua inteligência, em meio a tudo isso, de
conservar-se calma e atilada em seus julgamentos sobre o que a cerca
e de estar sempre pronta a tirar proveito daquilo que encontra? De
tal modo que, como julgamento, possa dizer à coisa que observa: ‘Em
essência és isto, embora a opinião possa fazer-te diferente’; e
como faculdade de utilizar o que acontece possa dizer ao que
acontece: ‘Eu te procurava; para mim o presente é sempre matéria
para a faculdade racional e associativa e, em geral, para a
habilidade do homem ou do deus’. Pois tudo que acontece tem alguma
afinidade com esse deus ou com o homem e nem é novo nem difícil de
manejar, mas conhecido e fácil de ser trabalhado.”
Marco
Aurélio, in Meditações
Reconstituições de Banksy, na vida real, por Nick Stern
Vejam
as brilhantes recriações reais de Banksy do fotógrafo britânico
Nick Stern, que reside em
Los Angeles. O olho afiado do fotógrafo por detalhes e admiração
fotográfica pelo famoso artista de rua está de volta com onze novas
adições à coleção cada vez maior de imagens de sua série You
Are Not Banksy. Stern, com
suas criações, continua a atualizar
tridimensionalmente o controverso comentário de Banksy.
Do
soldado criança com artilharia adulta à mão, carregada com giz de
cera no lugar de balas, a um policial corrupto cheirando seu vício
do chão arenoso, Stern consegue capturar cada imagem icônica,
satírica e politicamente dirigida. Suas encenações são quase
idênticas em cor, figurino, forma e figura às obras originais de
grafite estampadas. Um divertido jogo de espectador surge da
justaposição das obras de Banksy e Stern, onde o espectador
encontra alegria em comparar os dois e em reconhecer a atenção
verdadeiramente notável do fotógrafo aos detalhes.
Fonte: acesse aqui.
A linguagem cortante
“Uma
linguagem que corte o fôlego. Rasante, talhante, cortante. Essa deve
ser a linguagem do poeta. Linguagem de aços exatos, de relâmpagos
afiados, de agudos incansáveis, de navalhas reluzentes. Uma
dentadura que triture o eu-tu-ele-nós-vós-eles. Um vento de punhais
que desonre as famílias, os templos, as bibliotecas, os cárceres,
os bordéis, os colégios, os manicômios, as fábricas, as
academias, os cartórios, as delegacias, os bancos, as amizades, as
tabernas, a revolução, a caridade, a justiça, as crenças, os
erros, a esperança, as verdades... a verdade!”
Octávio
Paz, poeta mexicano
Lavoura Arcaica - 18
Foi
este o instante: ela transpôs a soleira, me contornando pelo lado
como se contornasse um lenho erguido à sua frente, impassível,
seco, altamente inflamável; não me mexi, continuei o madeiro tenso,
sentindo contudo seus passos dementes atrás de mim, adivinhando uma
pasta escura turvando seus olhos, mas a sombra indecisa foi aos
poucos descrevendo movimentos desenvoltos, perdendo-se logo no túnel
do corredor: fechei a porta, tinha puxado a linha, sabendo que ela,
em algum lugar da casa, imóvel, de asas arriadas, se encontraria
esmagada sob o peso de um destino forte; ali mesmo, junto da porta,
tirei sapatos e meias, e sentindo meus pés descalços na umidade do
assoalho senti também meu corpo de repente obsceno, surgiu,
virulento, um osso da minha carne, eu tinha esporas nos meus
calcanhares, que crista mais sanguínea, que paixão desassombrada,
que espasmos pressupostos! afundei no corredor pisando numa
passadeira de perigo, um tremor benigno me sacudia inteiro, mas
nenhum ruído nos meus passos, nenhum estilhaço, nenhum gemido no
assoalho, logo me detendo onde tinha de me deter, estava escrito: ela
estava lá, deitada na palha, os braços largados ao longo do corpo,
podendo alcançar o céu pela janela, mas seus olhos estavam fechados
como os olhos fechados de um morto, e eu ainda me pergunto agora como
montei minha força no galope daquele risco, eu tinha meus pelos
ruivos e um monte de palha enxuta à minha frente, mas não se
questiona na aresta de um instante o destino dos nossos passos,
bastava que eu soubesse que o instante que passa, passa
definitivamente, e foi numa vertigem que me estirei queimando ao lado
dela, me joguei inteiro numa só flecha, tinha veneno na ponta desta
haste, e embalando nos braços a decisão de não mais adiar a vida,
agarrei-lhe a mão num ímpeto ousado, mas a mão que eu amassava
dentro da minha estava em repouso, não tinha verbo naquela palma,
nenhuma inquietação, não tinha alma aquela asa, era um pássaro
morto que eu apertava na mão, e me vendo assim perdido de repente,
sem saber em que atalho eu, e em que outro atalho a minha fé, nós
dois que até ali éramos um só, vi com espanto que meu continente
se bifurcava, que precariedade nesta separação, quanta incerteza,
quantas mãos, que punhados de cabelos, acabei gritando minha parte
alucinada, levantei nos lábios esquisitos uma prece alta, cheia de
febre, que jamais eu tinha feito um dia, um milagre, um milagre, meu
Deus, eu pedia, um milagre e eu na minha descrença Te devolvo a
existência, me concede viver esta paixão singular fui suplicando
enquanto a polpa feroz dos meus dedos tentava revitalizar a polpa
fria dos dedos dela, que esta mão respire como a minha, ó Deus, e
eu em paga deste sopro voarei me deitando ternamente sobre Teu corpo,
e com meus dedos aplicados removerei o anzol de ouro que Te fisgou um
dia a boca, limpando depois com rigor Teu rosto machucado, afastando
com cuidado as teias de aranha que cobriram a luz antiga dos Teus
olhos; não me esquecerei das Tuas sublimes narinas, deixando-as tão
livres para que venhas a respirar sem saber que respiras; removerei
também o pó corrupto que sufocou Tua cabeleira telúrica, catando
zelosamente os piolhos que riscaram trilhas no Teu couro; limparei
Tuas unhas escuras nas minhas unhas, colherei, uma a uma, as
libélulas que desovam no Teu púbis, lavarei Teus pés em água azul
recendendo a alfazema, e, com meus olhos afetivos, sem me tardar,
irei remendando a carne aberta no meio dos Teus dedos; Te insuflarei
ainda o ar quente dos meus pulmões e, quando o vaso mais delgado
vier a correr, Tu verás então Tua pele rota e chupada encher-se de
açúcar e Tua boca dura e escancarada transformar-se num pomo
maduro; e uma penugem macia ressurgirá com graça no lugar dos
antigos pelos do Teu corpo, e também no lugar das Tuas velhas axilas
de cheiro exuberante, e caracóis incipientes e meigos na planície
do Teu púbis, e uma penugem de criança há de crescer junto ao halo
doce do Teu ânus sempre túmido de vinho; e tudo isso ressurgirá em
Ti num corpo adolescente do mesmo milagre que as penas lisas e
sedosas dos pássaros depois da muda e a brotação das folhas novas
e cintilantes das árvores na primavera; e logo um vento brando há
de devolver o gesto soberano dos Teus cabelos, havendo júbilo e
louçania nesta expansão; Te vestirei então de cetim branco com
largas palas guarnecidas de galões dourados, ajustando nos Teus
dedos anéis cujas pedras guardam os olhares de todos os profetas, e
braceletes de ferro para Teus punhos e um ramo de oliveira para Tua
nobre fronte; resinas silvestres escorrerão pelo Teu corpo fresco e
limpo, punhados de estrelas cobrirão Tua cabeça de menino como se
estivesses sobre um andor de chão de lírios; e alimentos tenros Te
serão servidos em folhas de parreira, e uvas e laranjas e romãs
frescas, e, de pomares mais distantes, colhidas da memória dos meus
genitores, as frutas secas, os figos e o mel das tâmaras, e a Tua
glória então nunca terá sido maior em toda a Tua história! que
dubiedade, que ambiguidade já sinto nesta mão, alguma alma quem
sabe pulsa neste gesso enfermo, algum fôlego, alguma cicatriz
vindoura já rememora sua dor de agora; um milagre, meu Deus, e eu Te
devolvo a vida e em Teu nome sacrificarei uma ovelha do rebanho do
meu pai, entre as que estiverem pascendo na madrugada azulada, uma
nova e orvalhada, de corpo rijo e ágil e muito agreste; arregaçarei
os braços, reúno faca e cordas, amarro, duas a duas, suas tenras
patas, imobilizando a rês assustada debaixo dos meus pés; minha mão
esquerda se prenderá aos botões que despontam no lugar dos cornos,
torcendo suavemente a cabeça para cima até descobrir a área pura
do pescoço, e com a direita, grave, desfecho o golpe, abrindo-lhe a
garganta, liberando balidos, liberando num jorro escuro e violento o
sangue grosso; tomarei a ovelha ainda fremente nos meus braços,
faço-a pendente de borco de uma verga, deixando ao chão a seiva
substanciosa que corre dos tubos decepados; entrarei na sua pele um
caniço resoluto que comporte, duro e resistente, um sopro forte,
aplicando nele meus lábios e soprando como meu velho tio soprava a
flauta, enchendo-a de uma antiga canção desesperada, estufando seu
tamanho como só a morte de três dias estufa os animais; e esfolada,
e rasgado o seu ventre de cima até embaixo, haverá uma intimidade
de mãos e vísceras, de sangues e virtudes, visgos e preceitos, de
velas exasperadas carpindo óleos sacros e muitas outras águas, para
que a Tua fome obscena seja também revitalizada; um milagre, um
milagre, eu ainda suplicava em fogo quando senti assim de repente que
a mão anêmica que eu apertava era um súbito coração de pássaro,
pequeno e morno, um verbo vermelho e insano já se agitando na minha
palma! cheio de tremuras, cegado de muros tão caiados, esmaguei a
água dos meus olhos e disse sempre em febre Deus existe e em Teu
nome imolarei um animal para nos provermos de carne assada, e
decantaremos numerosos vinhos capitosos, e nos embriagaremos depois
como dois meninos, e subiremos escarpas de pés descalços (que
tropel de anjos, que acordes de cítaras, já ouço cascos repicando
sinos!) e, de mãos dadas, iremos juntos incendiar o mundo!
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
Poesia, tempo e espaço
“Pudessem
as palavras do poeta ser casa e outro corpo, ser lugar e caminho,
companhia e prova tão simples da existência divina. Pudessem
aquelas palavras ser de levar sobre a cabeça, contra a chuva e
contra o frio, e servissem para levar à boca e engolir, a matar
todas as fomes, ou servissem de beber, a matar todas as sedes. Os
poemas, dizia o meu pai, podem ser completos como muito do tempo e do
espaço. Podem ser verdadeiramente lugares dentro dos quais passamos
a viver.”
Valter Hugo Mãe, in A
desumanização
Presentes
Um homem parou na beira de uma mulher e
atirou uma pedra para dentro dela.
4
anos depois a mulher disse: eu amo pedras.
4
anos depois o homem disse: quero minhas pedras de volta.
A
mulher deixou-se operar.
O
homem embrulhou as pedras em papel de seda vermelho e deu-as de
presente à mulher.
A
mulher deu de presente ao homem a conta do hospital.
O
homem deu de presente à mulher de 1 a 2 filhos.
Os
filhos deram de presente ao casal 1,6 kg de alegria.
O
casal, de alegria, pulou da janela.
A
repartição de enterros deu de presente aos filhos um caixão duplo.
Os
filhos deram de presente aos seus filhos a história de seus alegres
pais.
Um
filho deu ao outro filho uma lágrima.
O
filho chorou-se todo e afogou-se no choro.
120
anos depois uma mulher parou na beira de um homem e
atirou
uma pedra para dentro dele.
O
homem disse: não gosto de pedras.
A
mulher tentou com um pedaço de pau.
A
felicidade deles tornou-se insuportavelmente bela.
Aglaja
Veteranyi (Tradução de Fabiana Macchi)
A língua é um ato político
“A
língua nunca foi e nunca é, em tempo algum, um terreno apolítico,
pois ela não pode ser separada daquilo que uma pessoa faz com a
outra. Ela sempre vive no caso específico, cada vez é preciso estar
à espreita para arrancar-lhe o seu intento. Nessa indissociabilidade
da ação ela se torna legítima ou inaceitável, bonita ou feia,
também se pode dizer: boa ou má. Em cada língua, isto é, em cada
modo de falar estão fincados outros olhos.”
Herta Muller, in
O rei se inclina e mata
O dobrão
Gregory Peck como Capitão Ahab no filme Moby Dick, de 1956 |
Já
foi descrita a maneira pela qual Ahab andava pelo tombadilho
superior, dando voltas regulares nos dois extremos, na bitácula e no
mastro principal; mas, na multiplicidade de outras coisas que pedem
um relato, não foi dito que, nesses passeios, às vezes, Ahab,
mergulhado em si mesmo, costumava deter-se em cada um desses pontos e
ficar parado ali a olhar de modo estranho para o objeto específico
que tinha diante de si. Quando parava diante da bitácula, com o
olhar fixo na agulha pontiaguda da bússola, o seu olhar parecia o
arremesso de um dardo com a intensidade pontiaguda da sua
determinação; e quando, ao retomar o passeio, detinha-se outra vez
diante do mastro principal, então, o mesmo olhar fixo se concentrava
na moeda de ouro ali fixada, e ele mantinha o mesmo aspecto de
resolução férrea, só que marcado por uma espécie de desejo, se
não esperançoso, turbulento.
Mas,
certa manhã, voltando-se na direção do dobrão, Ahab pareceu
sentir-se atraído como nunca antes pelas figuras e inscrições
estranhas gravadas na moeda, como se tentasse interpretar para si,
pela primeira vez, de um modo monomaníaco, algum significado oculto.
Certos significados ocultam-se em todas as coisas, caso contrário
todas as coisas teriam pouco valor, e o próprio mundo seria apenas
um zero vazio, bom para ser vendido como a carga de uma carroça,
como se faz nas colinas perto de Boston, para aterrar algum pântano
da Via Láctea.
Mas
esse dobrão era de ouro puro e bruto, extraído de algum lugar no
coração de colinas maravilhosas, onde, ao ocidente e ao oriente,
correm sobre as areias douradas as águas de vários Pactolos. Embora
estivesse preso na ferrugem dos parafusos de ferro e no azinhavre dos
pregos de cobre, ainda conservava intacto o brilho de outrora de
Quito. E ainda que estivesse no meio de uma tripulação perversa,
passando a toda hora por pessoas perversas, e nas noites
intermináveis envolto pelas trevas densas que poderiam encobrir uma
aproximação furtiva, toda aurora encontrava o dobrão onde o poente
o tinha deixado. Pois estava separado e santificado para um fim
aterrorizante; e, por mais libertinos que os marinheiros fossem,
todos o reverenciavam como o talismã da baleia branca. Por vezes,
conversavam sobre ele nas cansativas vigílias à noite, imaginando
quem seria o proprietário no final, e se este viveria o bastante
para gastá-lo.
Mas
essas magníficas moedas de ouro da América do Sul são medalhas do
sol e símbolos dos trópicos. As suas palmeiras, as alpacas e os
vulcões; os discos solares e as estrelas; as eclípticas, as
cornucópias, e as bandeiras magníficas tremulando estão gravadas
em luxuriosa abundância, de tal modo que o ouro precioso parece
quase derivar uma riqueza ulterior e glórias acentuadas ao ser
cunhado em moedas tão fantasiosas, tão espanholas, tão poéticas.
Quis
a sorte que o dobrão do Pequod fosse um exemplo riquíssimo
dessas coisas. Na sua borda circular trazia escrito REPUBLICA DEL
ECUADOR: QUITO. Portanto, essa moeda reluzente procedia de um país
situado na metade do mundo, sob a linha do grande Equador, da qual
emprestava o nome, e tinha sido cunhada no meio dos Andes, naquele
clima invariável que não conhece o outono. Rodeada por aquelas
letras via-se a imagem de três picos dos Andes e, sobre o primeiro,
uma flama; uma torre, sobre o segundo; sobre o terceiro pico, um galo
que cantava; um segmento do zodíaco dividido ficava arqueado sobre
os três, com os signos representados de modo cabalístico, e o sol,
princípio básico, entrando no ponto do equinócio em Libra.
Diante
dessa moeda equatorial, Ahab, não sem ser notado pelos outros, ficou
parado naquele momento.
“Há
sempre uma coisa egoísta nos picos das montanhas e nas torres, e em
todas as outras coisas grandes e elevadas; vê só – três picos,
tão orgulhosos quanto Lúcifer. A torre firme, assim é Ahab; o
vulcão, assim é Ahab; a ave corajosa, indômita e vitoriosa, assim
é Ahab; todos são Ahab; esse ouro redondo é apenas a imagem de um
globo redondo, que, como uma bola de cristal, espelha para todo e
qualquer homem apenas o seu próprio eu misterioso. Muito esforço e
poucos ganhos para os que pedem ao mundo que lhes dê uma explicação;
o mundo não pode explicar-se. Penso que esse sol em forma de moeda
tem um rosto vermelho; mas vê! Sim, está entrando no signo das
tempestades, no equinócio! Mas seis meses atrás saiu do equinócio
anterior em Áries! De tempestade em tempestade! Que assim seja,
então. Parido com dores, é certo que o homem viva com sofrimento e
morra em agonia! Que assim seja, então! Eis um bom material para o
infortúnio. Que assim seja, então!”
“Nenhum
dedo de fada pode ter gravado esse ouro, mas as garras do diabo devem
ter deixado suas impressões desde ontem”, murmurou Starbuck para
si mesmo, apoiando-se na amurada. “O velho parece estar lendo a
inscrição terrível de Baltasar. Nunca observei a moeda em detalhe.
Ele desce; vou examiná-la. Um vale sombrio entre três picos
poderosos quase tocando o céu, parece quase um símbolo terreno e
simples da Trindade. Assim, nesse vale da Morte, Deus nos cerca; e
sobre a nossa tristeza o sol da Justiça resplandece como um farol e
como uma esperança. Ao abaixarmos os olhos, o vale sombrio mostra
seu solo bolorento, mas, ao levantá-los, o sol fulgurante vem ao
nosso encontro para nos alegrar. Mas, oh, o sol não é imóvel e se
quiséssemos obter algum consolo à meia-noite debalde olharíamos
para o alto! A moeda fala com sabedoria, doçura e verdade, mas com
tristeza comigo. Vou deixá-la para que a Verdade não me perturbe
falsamente.”
“Eis
o velho Grão-Mogol”, Stubb soliloquiou, próximo à refinaria,
“que acaba de examiná-la; e lá vai Starbuck depois de ter feito o
mesmo, ambos com caras que daqui eu diria terem nove braças de
comprimento. Tudo por causa de uma moeda de ouro que eu não olharia
por muito tempo antes de gastar se a tivesse em Negro Hill ou em
Corlaer’s Hook. Hum! Na minha simples e insignificante opinião,
acho isso esquisito. Já vi dobrões em outras viagens, os dobrões
da velha Espanha, os dobrões do Peru, os dobrões do Chile, os
dobrões da Bolívia, os dobrões de Popayán, junto com muitas
dobras e outras moedas de ouro, e réis de prata, muitos réis de
prata e quartos de réis de prata de Portugal. O que haverá nesse
dobrão do Equador que é tão irresistivelmente maravilhoso? Pela
Golconda! Deixa-me ir vêlo uma vez. Puxa! Tem mesmo signos e
maravilhas! É o que o velho Bowditch no seu Epítome chama de
Zodíaco, e meu almanaque lá embaixo também. Vou buscar o
almanaque! E, como ouvi dizer que os demônios podem ser chamados com
a aritmética de Daboll, vou tentar encontrar um sentido nestas
coisas estranhas com o calendário de Massachusetts. Eis o livro.
Vamos ver. Signos e maravilhas, e o sol sempre entre eles. Hum, hum,
hum; ei-los – aí estão – lá se vão – todos vivos: Carneiro,
ou Áries; Taurus, ou Touro; e Jimini! Aqui está Gemini, ou Gêmeos.
Bem, o sol gira ali no meio. Sim, aqui na moeda está atravessando a
porta entre duas das doze salas que formam uma roda. Livro! Fica aí;
a verdade é que vocês, livros, devem saber qual é o seu lugar.
Vocês nos dão apenas as palavras e os fatos, mas nós provemos os
pensamentos. Esta é a minha parca experiência, com respeito ao
calendário de Massachusetts, ao navegador de Bowditch e à
aritmética de Daboll. Signos e maravilhas, hein? Que pena se não
houver nada de maravilhoso nos signos, nem de significativo nas
maravilhas! Há um indício em algum lugar; espere um pouco; psiu –
ouça! Por Jove, ei-lo! Veja, Dobrão, o seu zodíaco é a vida do
homem em um só capítulo: e agora vou lê-la, direto do livro.
Venha, Almanaque! Para começar: eis Carneiro, ou Áries – cão
devasso, ele nos gera; depois Taurus, ou Touro – ele nos dá o
primeiro golpe; depois Gemini, ou Gêmeos – ou seja, a virtude e o
vício; experimentamos a Virtude quando chega o Caranguejo, Câncer,
e nos leva para trás; aqui, partindo da Virtude, Leo, um Leão que
ruge, está deitado no caminho – ele morde feroz, por vezes, e dá
umas patadas certeiras; escapamos e saudamos Virgo, a Virgem! É o
nosso primeiro amor; casamo-nos, pensamos que seremos felizes para
sempre, quando de pronto vem Libra, ou Balança – a felicidade é
pesada, o peso é pouco; enquanto estamos tristes por isso, meu Deus,
damos um pulo repentino quando Scorpio, ou Escorpião, nos dá uma
ferroada pelas costas; estamos tratando da ferida quando de súbito
flechas nos cercam por todos os lados; o Arqueiro, ou Sagitário,
está se divertindo. Quando tiramos as flechas, sai da frente, chega
o aríete Cabra, Capricórnio, a toda a velocidade, vem correndo, e
somos jogados de cabeça para baixo; quando o Carregador de Água, ou
Aquário, verte todo o seu dilúvio e nos afoga; e para concluir, com
Pisces, ou Peixes, nós dormimos. Eis um sermão escrito nas alturas,
onde o sol aparece todos os anos, e, contudo, sai dele vivo e
vigoroso. Lá em cima, alegre, passa por labutas e dificuldades,
enquanto cá embaixo o alegre Stubb faz o mesmo. Oh, que mundo alegre
para vocês! Adeus, Dobrão! Mas espera aí! Lá vem King-Post; vou
me esconder atrás da refinaria, agora, e ouvir o que ele tem a
dizer. Isso! Ele está diante da moeda, já dirá algo. Isso, isso,
está começando.”
“Não
vejo nada aqui, salvo uma coisa redonda feita de ouro, e quem avistar
uma certa baleia receberá essa coisa redonda. Pois então, por que é
que todo mundo fica olhando? Vale dezesseis dólares, é verdade;
cada charuto custa dois centavos, isso dá novecentos e sessenta
charutos. Não fumo cachimbos imundos como Stubb, mas gosto de
charutos, e aqui tem novecentos e sessenta, e por isso Flask está
subindo agora para observar.”
“Devo
chamar a isto de sabedoria ou de bobagem? Se for sabedoria, tem
aspecto de bobagem; mas, se for mesmo uma bobagem, tem certa
sabedoria. Basta! Aí vem o nosso velho homem da ilha de Man – deve
ter sido um cocheiro de carros fúnebres, isto é, antes de vir para
o mar. Está indo para a bolina à frente do dobrão; puxa, deu a
volta do outro lado do mastro; ora, tem uma ferradura pregada daquele
lado; está voltando de novo agora; o que é isso? Veja! Está
murmurando – a voz se parece com a de uma velha máquina de café
quebrada. Preste atenção e escute!”
“Se
a Baleia Branca for avistada, isso acontecerá dentro de um mês e um
dia, quando o sol estiver em um desses signos. Estudei os signos e
conheço as figuras; a bruxa velha de Copenhague ensinou-me quatro
décadas atrás. Ora, em que signo estará o sol nessa ocasião? No
signo da ferradura, pois está ali, do lado contrário do ouro. E o
que é o signo da ferradura? O leão é o signo da ferradura – o
leão que ruge e devora. Navio, meu velho navio! A minha cabeça
velha estremece ao pensar em ti!”
“Existe
uma outra versão, mas é o mesmo texto. Todos os tipos de homens em
um só tipo de mundo, bem se vê. Esconder-me, outra vez! Aí vem
Queequeg – todo tatuado –, parece com os próprios signos do
Zodíaco. O que diz o Canibal? Pela minha vida, ele está comparando
os sinais; está olhando para o seu fêmur; acho que pensa que o sol
fica na coxa, ou na panturrilha, ou nas tripas, como as velhas do
campo falam sobre a Astronomia do Cirurgião. Por Jove, achou alguma
coisa perto da sua coxa – acho que é Sagitário, o Arqueiro. Não,
ele não sabe o que pensar do dobrão, confunde-o como um botão
velho das calças de um rei. Mas para o lado, outra vez! Aí vem o
demônio-fantasma, Fedallah, com a cauda enrolada como sempre, e com
estopa na ponta dos sapatos como sempre. O que diz, com aquele olhar
que tem? Ah, só faz um sinal para o sinal e se curva; tem um sol na
moeda – adorador do fogo, sem dúvida. Oh! Mais e mais. Ali vem Pip
– coitado! Se tivesse morrido, ou eu, sinto quase horror ao vê-lo.
Ele também está a observar esses intérpretes – eu inclusive –,
e, veja, vai ler com o rosto sobrenatural de um idiota. Vai para o
lado outra vez e escuta o que ele diz. Escuta!”
“Eu
olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”
“Pela
minha alma, ele anda estudando a gramática de Murray! Aperfeiçoando
o espírito, coitado! Mas o que diz agora – psiu!”
“Eu
olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”
“Ora,
está decorando – psiu! Outra vez!”
“Eu
olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”
“Isso
é engraçado.”
“E
eu, tu, e ele; e nós, vós, e eles, somos todos morcegos; e eu sou
um corvo, especialmente quando fico de pé no alto desse pinheiro
aqui. Crau! Crau! Crau! Crau! Crau! Crau! Não sou um corvo? Cadê o
espantalho? Está ali, dois ossos enfiados em uma calça velha, e
mais dois colocados nas mangas de um casaco velho.”
“Será
que está falando de mim? – lisonjeiro! – coitado! – eu poderia
me enforcar. De qualquer modo, por enquanto, vou deixar essa
proximidade com Pip. O resto ainda consigo aguentar, pois estão
lúcidos, mas esse aí está muito louco para a minha sanidade.
Assim, assim, deixo-o a murmurar.”
“Este
dobrão aqui é o umbigo do navio, e todos estão em chamas para
soltá-lo. Mas, se soltarem o umbigo, qual será a consequência? Mas
também, se ele ficar aqui a coisa também ficará feia, pois quando
há alguma coisa pregada no mastro é sinal que as coisas vão mal.
Ha, ha! Velho Ahab! A Baleia Branca vai pregar você! Isso é um
pinheiro. O meu pai, no condado de Tolland, certa vez cortou um
pinheiro e encontrou um anel de prata que cresceu junto com ele, uma
aliança de um velho negro. Como foi parar ali? Também vão
perguntar o mesmo na ressurreição, quando vierem buscar esse mastro
velho e encontrarem o dobrão preso, com ostras incrustadas na sua
casca áspera. Oh, o ouro! O ouro precioso, precioso! – o miserável
verde guardará você em breve! Deus vai entre os mundos colhendo
amoras. Cozinheiro! Ó, cozinheiro! Estamos fritos! Jenny! ei, ei,
ei, ei, ei, Jenny, Jenny! Faz logo o teu pão!”
Herman
Melville, in Moby Dick
terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
Contrastes
Oi
eu sou Uğur. Eu moro na Turquia, que por acaso está localizada ao
lado de uma das regiões mais perigosas do mundo moderno. O contraste
entre esses territórios reflete dois mundos diferentes para mim, e
isso me inspirou a retratar isso no meu trabalho.
Eu desejo um futuro pacífico.
Fonte: acesse aqui.
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