sábado, 29 de fevereiro de 2020

Amigo era o braço, e o aço!

Ilustração: Rodrigo Rosa

Mire veja! naqueles dias, na ocasião, devem de ter acontecido coisas meio importantes, que eu não notava, não surpreendi em mim. Mesmo hoje não atino com o que foram. Mas, no justo momento, me lembrei em madrugada daquele nome! de Siruiz. Refiro que perguntei ao Garanço, por aquele rapaz Siruiz, que cantava cousas que a sombra delas em meu coração decerto já estava. O que eu queria saber não era próprio do Siruiz, mas da moça virgem, moça branca, perguntada, e dos pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar um igual. Mas o Garanço já tinha respondido! ― Eh, eh, ô... O Siruiz já morreu. Morreu morto no tiroteio, entre o Morcêgo e o Suassuapara, passado para cá o Pacuí... Do choque com que ouvi essa confirmação de notícia, fui arriando para um desânimo. Como se assim ele tivesse falado! Siruiz? Mas não foram vocês mesmos que mataram?... Eu, não. Nessa vez, eu tinha restado longe por fora, na Pedra-Branca, não vi combate. Como era que eu podia? O Garanço tomava rapé. Era um sujeito de intenções muito parvas. Perguntou se o Siruiz não seria meu amigo, meu parente. ― Quem sabe se era... ― eu respondi, de toleima. O Garanço, vi que não gostou. Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos. Nem eu quis indagar o mais, certo estava de que ele Garanço não sabia nada do que tivesse valor. Mas eu guardava triste de cór a canção recantada. E Siruiz tinha morrido. Então me instruiram na outra, que era cantiga de se viajar e cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida!

Olerereêe, baiana...
Eu ia e não vou mais:
Eu faço que vou lá dentro, oh baiana, e volto do meio pra trás...

O senhor aprende? Eu entôo mal. Não por boca de ruindade, lá como quem diz. Sou ruim não, sou homem de gostar dos outros, quando não me aperreiam; sou de tolerar. Não tenho a caixeta da raiva aberta. Rixava com nenhum, ali, aceitava o regime, na miudez das normas. Vai, daí, comigo erraram. Um , errou. Um pai-jagunço chamado Antenor, acho que era coração-de-jesusense, começou a temperar conversa, sagaz de fiúza, notei. Ele era homem chegado ao Hermógenes ― se sabia dessa parte. De diz em diz, rodeava a questão. Queria saber que apreço eu tinha por Joca Ramiro, por Titão Passos, os outros todos. Se eu conhecia Sô Candelário, que estava por chegar? O giro dos assuntos ― ele me tenteava a fala. Notei. E, devagar, vinha querendo deixar em mim uma má vazante: me largar em dúvida. Não era? Aquilo eu inteligenciava. Esse Antenor, sempre louvando e vivando Joca Ramiro, acabou por me dar a entender, curtamente, o em conseguinte: que Joca Ramiro talvez fazia mal em estar tanto tempo por longe, alguns de bofe ruim já calculavam que ele estivesse abandonando seu pessoal, em horas de tanta guerra; que Joca Ramiro era rico, dono de muitas posses em terras, e se arranchava passando bem em casas de grandes fazendeiros e políticos, deles recebia dinheiro de munição e paga! seô Sul de Oliveira, coronel Caetano Cordeiro, doutor Mirabô de Melo. Que era que eu achava?
Eu escutei. Respondi? Ah, ah. Sou lá para achar nenhuma coisa. Não tinha nascido no ôntem, cedo tomei experiência de homens por homens. Disse só que decerto Joca Ramiro estava formando gente e meios para vir em ajuda de nós, jagunços em lei, e nesse meio-tempo punha toda confiança no Hermógenes, em Titão Passos, João Goanhá ― fortes no fato valor e na lealdade. Gabei o Hermógenes, principal; bispei. Com isso, aquele Antenor concordou. A bem dizer, aprovou o quanto eu disse. Mas realçou mais altamente a fama do Hermógenes, e do Ricardão, também ― esses dois seriam os chefes de encher a mão, em paz regalada mas por igual nos combates. Esse sujeito Antenor sabia coçar queixo de cobra e semear sal em roças verdes. Vulto perigoso, nas ações ― o Garanço me preveniu, com a boa noção vinda de sua redondice de atinar. Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo. Aquele Antenor já tinha depositado em mim o anuvio de uma má ideia! disideia, a que por minhas costas logo escorreu, traiçoeirinha como um rabo de gota de orvalho. Que explicação dou ao senhor? Acreditar, no que ele tinha suso dito, não acreditei. Mas em mim, para mim, aquilo tudo era ― era assim como um lugar com mau-cheiro, no campo, uma árvore! lugar fedido, onde é que alguma jaratataca acuou, por se defender do latido dos cachorros. E grande aviso, naquele dia, eu tinha recebido; mas menos do que ouvi, real, do que do que eu tinha de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu acho que, quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar o castigo, mas só para se ter consolo legal, depois que o castigo passou e veio. Aviso? Rompe, ferro!
Cacei Diadorim. Mas eu estreava umas ânsias. Como fosse, falei, do novo e do velho; mal foi que falei: em zanga ― desrazoadamente ― e de primeira entrada. Acho que, por via disso, Diadorim não deu a devida estimação às minhas palavras. Alheio, eh. Só ojerizado em estilos ele esteve, um raio de momento, foi de ouvir que alguém pudesse duvidar do proceder de Joca Ramiro: Joca Ramiro era um imperador em três alturas! Joca Ramiro sabia o se ser, governava; nem o nome dele não podia atôa se babujar. E aqueles outros: o Hermógenes, Ricardão? Sem Joca Ramiro, eles num átimo se desaprumavam, deste mundo desapareciam ― valiam o que pulga pula. O Hermógenes? Certo, um bom jagunço, cabo-de-turma; mas desmerecido de situação política, sem tino nem prosápia. E o Ricardão, rico, dono de fazendas, somente vivia pensando em lucros, querendo dinheiro e ajuntando. Diadorim, do Ricardão era que ele gostava menos: ― Ele é bruto comercial... ― disse, e fechou a boca forte, feito fosse cuspir.
Eu então disse, pelo conseguinte: ― A bom e bem, Diadorim. Mas, se é ou se não é, por que é que não vamos levar informação sutil a Joca Ramiro, para o enfim? Aí, refalei muito, ao tanto que escondi minha raiva. Quem sabe Joca Ramiro, na lei da caminhação, não estava esquecido de conhecer os homens, deixando de farear o mudar do tempo? Viesse, Joca Ramiro podia detalhar o pôdre do são, recontar seus brabos entre as mãos e os dedos. Podia, devia de mandar embora aquele monstro do Hermógenes. Se sendo etcétera, se carecesse ― eh, uái: se matava!... Diadorim pôs muito os olhos em mim, vi que com um espanto reprovador, não me achasse capaz de estipular tanta maldade sem escrúpulo. Mau não sou. Cobra? ― ele disse? Nem cobra serepente malina não é. Nasci devagar. Sou é muito cauteloso.
Mais em paz, comigo mais, Diadorim foi me desinfluindo. Ao que eu ainda não tinha prazo para entender o uso, que eu desconfiava de minha boca e da água e do copo, e que não sei em que mundo-de-lua eu entrava minhas ideias. O Hermógenes tinha seus defeitos, mas puxava por Joca Ramiro, fiel ― punia e terçava. Que, eu mais uns dias esperasse, e ia ver o ganho do sol nascer. Que eu não entendia de amizades, no sistema de jagunços. Amigo era o braço, e o aço!
Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim, é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto! é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou ― amigo ― é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é. Amigo meu era Diadorim; era o Fafafa, o Alaripe, Sesfrêdo. Ele não quis me escutar. Voltei da raiva.
Digo ao senhor! nem em Diadorim mesmo eu não firmava o pensar. Naqueles dias, então, eu não gostava dele? Em pardo. Gostava e não gostava. Sei, sei que, no meu, eu gostava, permanecente. Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e tem noite, versáveis, em amizade de amor.
Antes o que me atanazava, a mór ― disso crio razoável lembrança ― era o significado que eu não achava lá, no meio onde eu estava obrigado, naquele grau de gente. Mesmo repensando as palavras de Diadorim, eu apurava só este resto! que tudo era falso viver, deslealdades. Traição? Traição minha, fosse no que fosse. Quase tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição? Há-de-o, a alguém, a alguma coisa. E eu não tardei no meu querer: lá eu não podia mais ficar. Donde eu tinha vindo para ali, e por que causa, e, sem paga de prêço, me sujeitava àquilo? Eu ia-me embora. Tinha de ir embora. Estava arriscando minha vida, estragando minha mocidade. Sem rumo. Só Diadorim. Quem era assim para mim Diadorim? Não era, aquela ocasião, pelo próprio dito de estar perto dele, de conversar e mais ver. Mas era por não aguentar o ser: se de repente tivesse de ficar separado dele, pelo nunca mais. E mesmo forte era a minha gastura, por via do Hermógenes. Malagourado de ódio: que sempre surge mais cedo e às vezes dá certo, igual palpite de amor. Esse Hermógenes ― belzebú. Ele estava caranguejando lá. Nos soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu nunca soube tanto disso, como naquele tempo. O Hermógenes, homem que tirava seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros. Aí, arre, foi que de verdade eu acreditei que o inferno é mesmo possível. Só é possível o que em homem se vê, o que por homem passa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estava próximo de mim, vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisas muito duras. Nas larguezas do sono da gente.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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