sábado, 29 de fevereiro de 2020

O abolicionismo

Aqueles que alguma vez, em dias de luta, reclinaram na ternura do seio materno a cabeça preocupada, e conservam no fundo d’alma, como aroma de lírios extintos, essa reminiscência benigna, — esses avaliem a consolação do pobre soldado de tantas lutas contra a injustiça, sentindo hoje, entre duas separações, na fronte experimentada pelo fogo estas carícias de mãe.
As coroas que a glória bafeja, embriagam como o suco da vinha: as que o interesse sobredoira, nodoam como o azinhavre do cobre; as que a condescendência liberaliza, amesquinham como a proteção imerecida; mas aquelas com que o ingênuo desvanecimento da pátria afaga a dedicação obscura dos seus trabalhadores, sabem à sinceridade do primeiro leite da vida, e ameigam o coração magoado com a doçura dos beijos que nos perfumam o berço.
Por entre as trevas que velam a face da nossa Bahia, a mãe forte de tantos heróis, a antiga metrópole do espírito brasileiro, com pés assentados na história do seu passado luminoso e a cabeça a cintilar dos astros ainda não apagados na noite das suas tristezas, como aquela imagem dos livros santos, calçada de lua e coroada de estrelas, — as associações abolicionistas representam a plêiade do futuro, nesse diadema de onde as baixezas da nossa política não conseguiram desengastar as últimas gemas.
Pequeninas são elas, e mal parece deslocarem-se, como tão pequeninos e imóveis esses focos radiantes que descrevem órbitas infinitas pelo espaço celeste; mas a verdade tão certa como a eterna estabilidade das leis que regem o cosmo, é que esses núcleos de condensação e irradiação patriótica assinalam hoje os nossos pontos de orientação, no horizonte das coisas que estão por vir.
Pueril engano realmente, senhores, o dos que veem no abolicionismo o termo de uma aspiração satisfeita, A realidade é que ele exprime apenas o fato inicial da nossa vida na liberdade, o ponto de partida de uma trajetória sideral, que se desdobra incomensuravelmente no campo da nossa visão histórica. Cegos os que supõem na abolição a derradeira página de um livro encerrado, uma fórmula negativa, a supressão de um mal vencido, o epitáfio de uma iniquidade secular. O que ela é, pelo contrário, é um cântico de alvorada, o lema já não misterioso de uma idade que começa, o medir das forças do gigante que se desata. Imaginai Prometeu desencadeado, livre do abutre, ensaiando pela escarpa da montanha os primeiros passos de sua vitória contra a tirania suprema.
Nós éramos um povo acorrentado a um cadáver: o cativeiro. O meio século de nossa existência nacional demarca um período de infecção sistemática do país pelas influências sociais e oficiais interessadas na perpetuidade desse regímen de uma vida abraçada à podridão tumular. Agora, que o tempo acabou de dissolver essa aliança sinistra, vamos encetar a cura da septicemia cadavérica, do envenenamento do vivo pelo morto; trabalho que nos impõe os mais heroicos esforços de reação orgânica, e a que há de presidir o signo redentor do abolicionismo.
Abolicionismo é reforma sobre reforma; abolicionismo é reconstituição fundamental da pátria; abolicionismo é organização radical do futuro; abolicionismo é renascimento nacional. Não se há de indicar por uma sepultura com uma inscrição tumular mas por um berço com um horóscopo de luta.
Os que fizeram esta campanha — não me refiro aos operários da última hora, mas aos que se votaram a ela nos dias de dúvida, de sacrifício e de perigo — esses assumiram para com a sua honra um compromisso, que está por saldar-se: a eliminação progressiva das instituições servis, quero dizer, das instituições que vieram pelo consórcio com a escravidão, que se nutriram de seus vermes, e agora, extinto o cativeiro negro, hão de conspirar tenazmente pela eternidade do cativeiro branco.
Rui Barbosa, in Antologia

Nenhum comentário:

Postar um comentário