Aqueles
que alguma vez, em dias de luta, reclinaram na ternura do seio
materno a cabeça preocupada, e conservam no fundo d’alma, como
aroma de lírios extintos, essa reminiscência benigna, — esses
avaliem a consolação do pobre soldado de tantas lutas contra a
injustiça, sentindo hoje, entre duas separações, na fronte
experimentada pelo fogo estas carícias de mãe.
As
coroas que a glória bafeja, embriagam como o suco da vinha: as que o
interesse sobredoira, nodoam como o azinhavre do cobre; as que a
condescendência liberaliza, amesquinham como a proteção imerecida;
mas aquelas com que o ingênuo desvanecimento da pátria afaga a
dedicação obscura dos seus trabalhadores, sabem à sinceridade do
primeiro leite da vida, e ameigam o coração magoado com a doçura
dos beijos que nos perfumam o berço.
Por
entre as trevas que velam a face da nossa Bahia, a mãe forte de
tantos heróis, a antiga metrópole do espírito brasileiro, com pés
assentados na história do seu passado luminoso e a cabeça a
cintilar dos astros ainda não apagados na noite das suas tristezas,
como aquela imagem dos livros santos, calçada de lua e coroada de
estrelas, — as associações abolicionistas representam a plêiade
do futuro, nesse diadema de onde as baixezas da nossa política não
conseguiram desengastar as últimas gemas.
Pequeninas
são elas, e mal parece deslocarem-se, como tão pequeninos e imóveis
esses focos radiantes que descrevem órbitas infinitas pelo espaço
celeste; mas a verdade tão certa como a eterna estabilidade das leis
que regem o cosmo, é que esses núcleos de condensação e
irradiação patriótica assinalam hoje os nossos pontos de
orientação, no horizonte das coisas que estão por vir.
Pueril
engano realmente, senhores, o dos que veem no abolicionismo o termo
de uma aspiração satisfeita, A realidade é que ele exprime apenas
o fato inicial da nossa vida na liberdade, o ponto de partida de uma
trajetória sideral, que se desdobra incomensuravelmente no campo da
nossa visão histórica. Cegos os que supõem na abolição a
derradeira página de um livro encerrado, uma fórmula negativa, a
supressão de um mal vencido, o epitáfio de uma iniquidade secular.
O que ela é, pelo contrário, é um cântico de alvorada, o lema já
não misterioso de uma idade que começa, o medir das forças do
gigante que se desata. Imaginai Prometeu desencadeado, livre do
abutre, ensaiando pela escarpa da montanha os primeiros passos de sua
vitória contra a tirania suprema.
Nós
éramos um povo acorrentado a um cadáver: o cativeiro. O meio século
de nossa existência nacional demarca um período de infecção
sistemática do país pelas influências sociais e oficiais
interessadas na perpetuidade desse regímen de uma vida abraçada à
podridão tumular. Agora, que o tempo acabou de dissolver essa
aliança sinistra, vamos encetar a cura da septicemia cadavérica, do
envenenamento do vivo pelo morto; trabalho que nos impõe os mais
heroicos esforços de reação orgânica, e a que há de presidir o
signo redentor do abolicionismo.
Abolicionismo
é reforma sobre reforma; abolicionismo é reconstituição
fundamental da pátria; abolicionismo é organização radical do
futuro; abolicionismo é renascimento nacional. Não se há de
indicar por uma sepultura com uma inscrição tumular mas por um
berço com um horóscopo de luta.
Os
que fizeram esta campanha — não me refiro aos operários da última
hora, mas aos que se votaram a ela nos dias de dúvida, de sacrifício
e de perigo — esses assumiram para com a sua honra um compromisso,
que está por saldar-se: a eliminação progressiva das instituições
servis, quero dizer, das instituições que vieram pelo consórcio
com a escravidão, que se nutriram de seus vermes, e agora, extinto o
cativeiro negro, hão de conspirar tenazmente pela eternidade do
cativeiro branco.
Rui
Barbosa, in Antologia
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