Aparecia
aos sábados na feira, sob um vasto chapéu, aprumado na carona
bojuda, numa complicação de alforjes, látegos e bagagens. Foi o
sujeito mais digno que já vi. Sério, de uma seriedade imóvel e de
estátua, os grandes olhos claros cheios de franqueza.
Conservo
a impressão de que José Leonardo, sem se apressar, fazia tudo
direito: funcionava como um relógio, as rodas movendo-se regulares,
os ponteiros indicando certo número de deveres.
Os
negociantes festejavam-no e disputavam-no. O irmão, Antônio Freire,
não ligava importância a obrigações: vivia na rua, pedindo aqui e
ali o que precisava. Toda a gente o atendia. José Leonardo pagava
sem regatear, fingia não perceber aquelas descaídas, e os
bodegueiros inventavam contas, sangravam-no.
Não
sei como esse homem se aproximou de mim. A seriedade e o silêncio
deviam afastar-nos. Trouxe-me presentes, ficamos amigos, levou-me ao
Pico, a fazenda que possuía a duas léguas da vila. De inverno a
verão, a campina alongava uma faixa de verdura na catinga. Longe, um
serrote se erguia a prumo, esquisito muro de pedra rematado por unia
ponta com aparência de árvore morta. Daí, o nome da propriedade.
Corria de lá um fio de água, que não engrossava nem se reduzia.
Canalizado na valeta, domesticado na bica de madeira, despejava no
cocho que apodrecia debaixo de um pé de jitó, excelente banheiro.
Lembro-me do meu primeiro banho. No calor, o jacto frio nos
acariciava. Seu Filipe Fenício esfregava-se com sabão e estava cor
de alfenim.
Sacudia
uma parte do corpo, como se quisesse despregá-la. Mergulhando no
tanque raso, resfolegava como um bicho. Erguia-se, livre da espuma,
limpo e fresco. Os bigodes longos derramavam-se, brancos, os pelos da
barriga emaranhavam-se, brancos também, e surpreendiam-me. Eu não
supunha que existissem pessoas tão cabeludas.
Do
cocho a água se derramava, corria solta na várzea, regava o
canavial, de canas enormes, único por aqueles sítios. Finda a
umidade, o sertão ia surgindo, a princípio vacilante e morno,
povoado de ouricuris e cajueiros chinfrins, depois seco e amarelo,
coberto de cactos, ossadas e seixos. Aí se arrastavam as criaturas
famintas e sujas que vendiam na feira cestos de imbu e caça miúda.
Em tempo de escassez viviam disso, e como a escassez era frequente,
emigravam, finavam-se na miséria. Uma ou outra cabana, chiqueiros de
cabras morrinhentas, badalar triste de chocalho.
Nas
minhas viagens ao Pico, arrumado à garupa do cavalo de José
Leonardo, eu bocejava no mormaço, olhando a planície crestada,
buscando uma folhagem de juazeiro. De repente, fartura e sombra,
inalteráveis, que tinham dado ao pequeno proprietário aquela
serenidade. Realmente José Leonardo não dependia. Os fazendeiros da
região submetiam-se a alternativas: anos de abundância e anos de
penúria. Às vezes a terra produzia em excesso, outras vezes não
produzia nada. Dissipação, mesquinharia. E contra isso qualquer
esforço era inútil.
José
Leonardo não conhecia lucros desmedidos nem prejuízos. Dedicava-se
a uma indústria segura, diferente da dos vizinhos, Não criava gado
— e o Pico estava isento da lama e das moscas dos currais. Vestia
pano em casa e no trabalho, coisa espantosa. Em geral só os
habitantes da rua usavam tecido. Os matutos se encouravam, mexiam-se
como tatus. Pelas redondezas para bem dizer não havia lavoura além
da sovina plantação feita nas vazantes dos açudes e nas margens
gretadas dos rios periódicos. Os surrões de milho e feijão, em
casa de meu avô, procediam da mata, distante. Os homens ferravam,
capavam, ordenhavam, retalhavam mantas de carne, curtiam, fabricavam
látegos e cordas; as mulheres enchiam potes de leite, mudavam-no em
coalhada e em queijo.
No
Pico não se percebia o cheiro do sangue nem a podridão das
bicheiras. E ocupações desconhecidas logo me impressionaram. Fiquei
tempo esquecido na engenhoca, admirando bois encangados, a mover-se
em redor de um eixo, a cana a triturar-se em moendas de pau, o caldo
a esguichar numa calha que despejava na primeira tacha do
assentamento. Daí se baldeava a outras, em cuias presas em varas. E
da terceira um melado vermelho passava às formas, que deixavam no
chão coberto de bagaço uma chusma de rapaduras.
Nunca
me havia ocorrido que as rapaduras fossem consequência de trabalho
humano. Encaixadas, nas bodegas, não pareciam exigir tantos
preparos.
Aquilo
era uma diversão curiosa. Bonitas, cor de ouro, empilhavam-se ainda
quentes. E desejei permanecer ali, ao calor da fornalha, vendo a cana
esmagar-se, o líquido borbulhar nas talhas, engrossar,
solidificar-se.
À
noite, na casa-grande, dançavam e cantavam. O luar feria pedrinhas
alvas nos caminhos. Achei que uma delas brilhava mais que as outras —
e José Leonardo obrigou-me a aceitá-la. Conservei alguns anos a
preciosidade que faiscava na treva. Num canto de parede, como brasa
perdida no borralho, avivava, em horas de aborrecimento e dor,
aquelas recordações — a faixa do canavial, água empapando a
várzea, bois mansos pezunhando na engenhoca, o mel a ferver nas
tachas, danças, cantigas, a plumagem viva das araras. E iluminava a
figura que se ia distanciando no passado, fria, digna, tranquila.
Bondade diferente das bondades comuns. Não nos atraía, mas
inspirava confiança, vencia o desgraçado acanhamento que me
embrulhava a língua, escurecia a vista, gelava as mãos.
Fiz
numerosas perguntas a José Leonardo, e ele nunca se espantou. Às
vezes hesitava, procurava-me na cara o sentido da frase obscura. E a
informação vinha, natural e paciente. Sem me haver impressionado em
demasia, esse homem deixou-me lembrança que se estirou e me dispôs
a sentimentos benévolos.
Mudei-me,
fui viver na cidade. A pedra faiscante sumiu-se — e o meu quarto,
rezadas as orações, apagado o candeeiro de querosene, escureceu.
Mas a imagem serena me acompanhou. Fixou-se na parede, à noite,
perto das litografias de santos, compreensiva e generosa, sem tentar
corrigir-me, sem dar-me os conselhos que sempre me aperrearam e não
serviram para nada.
Graciliano
Ramos, in Infância
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