Gregory Peck como Capitão Ahab no filme Moby Dick, de 1956 |
Já
foi descrita a maneira pela qual Ahab andava pelo tombadilho
superior, dando voltas regulares nos dois extremos, na bitácula e no
mastro principal; mas, na multiplicidade de outras coisas que pedem
um relato, não foi dito que, nesses passeios, às vezes, Ahab,
mergulhado em si mesmo, costumava deter-se em cada um desses pontos e
ficar parado ali a olhar de modo estranho para o objeto específico
que tinha diante de si. Quando parava diante da bitácula, com o
olhar fixo na agulha pontiaguda da bússola, o seu olhar parecia o
arremesso de um dardo com a intensidade pontiaguda da sua
determinação; e quando, ao retomar o passeio, detinha-se outra vez
diante do mastro principal, então, o mesmo olhar fixo se concentrava
na moeda de ouro ali fixada, e ele mantinha o mesmo aspecto de
resolução férrea, só que marcado por uma espécie de desejo, se
não esperançoso, turbulento.
Mas,
certa manhã, voltando-se na direção do dobrão, Ahab pareceu
sentir-se atraído como nunca antes pelas figuras e inscrições
estranhas gravadas na moeda, como se tentasse interpretar para si,
pela primeira vez, de um modo monomaníaco, algum significado oculto.
Certos significados ocultam-se em todas as coisas, caso contrário
todas as coisas teriam pouco valor, e o próprio mundo seria apenas
um zero vazio, bom para ser vendido como a carga de uma carroça,
como se faz nas colinas perto de Boston, para aterrar algum pântano
da Via Láctea.
Mas
esse dobrão era de ouro puro e bruto, extraído de algum lugar no
coração de colinas maravilhosas, onde, ao ocidente e ao oriente,
correm sobre as areias douradas as águas de vários Pactolos. Embora
estivesse preso na ferrugem dos parafusos de ferro e no azinhavre dos
pregos de cobre, ainda conservava intacto o brilho de outrora de
Quito. E ainda que estivesse no meio de uma tripulação perversa,
passando a toda hora por pessoas perversas, e nas noites
intermináveis envolto pelas trevas densas que poderiam encobrir uma
aproximação furtiva, toda aurora encontrava o dobrão onde o poente
o tinha deixado. Pois estava separado e santificado para um fim
aterrorizante; e, por mais libertinos que os marinheiros fossem,
todos o reverenciavam como o talismã da baleia branca. Por vezes,
conversavam sobre ele nas cansativas vigílias à noite, imaginando
quem seria o proprietário no final, e se este viveria o bastante
para gastá-lo.
Mas
essas magníficas moedas de ouro da América do Sul são medalhas do
sol e símbolos dos trópicos. As suas palmeiras, as alpacas e os
vulcões; os discos solares e as estrelas; as eclípticas, as
cornucópias, e as bandeiras magníficas tremulando estão gravadas
em luxuriosa abundância, de tal modo que o ouro precioso parece
quase derivar uma riqueza ulterior e glórias acentuadas ao ser
cunhado em moedas tão fantasiosas, tão espanholas, tão poéticas.
Quis
a sorte que o dobrão do Pequod fosse um exemplo riquíssimo
dessas coisas. Na sua borda circular trazia escrito REPUBLICA DEL
ECUADOR: QUITO. Portanto, essa moeda reluzente procedia de um país
situado na metade do mundo, sob a linha do grande Equador, da qual
emprestava o nome, e tinha sido cunhada no meio dos Andes, naquele
clima invariável que não conhece o outono. Rodeada por aquelas
letras via-se a imagem de três picos dos Andes e, sobre o primeiro,
uma flama; uma torre, sobre o segundo; sobre o terceiro pico, um galo
que cantava; um segmento do zodíaco dividido ficava arqueado sobre
os três, com os signos representados de modo cabalístico, e o sol,
princípio básico, entrando no ponto do equinócio em Libra.
Diante
dessa moeda equatorial, Ahab, não sem ser notado pelos outros, ficou
parado naquele momento.
“Há
sempre uma coisa egoísta nos picos das montanhas e nas torres, e em
todas as outras coisas grandes e elevadas; vê só – três picos,
tão orgulhosos quanto Lúcifer. A torre firme, assim é Ahab; o
vulcão, assim é Ahab; a ave corajosa, indômita e vitoriosa, assim
é Ahab; todos são Ahab; esse ouro redondo é apenas a imagem de um
globo redondo, que, como uma bola de cristal, espelha para todo e
qualquer homem apenas o seu próprio eu misterioso. Muito esforço e
poucos ganhos para os que pedem ao mundo que lhes dê uma explicação;
o mundo não pode explicar-se. Penso que esse sol em forma de moeda
tem um rosto vermelho; mas vê! Sim, está entrando no signo das
tempestades, no equinócio! Mas seis meses atrás saiu do equinócio
anterior em Áries! De tempestade em tempestade! Que assim seja,
então. Parido com dores, é certo que o homem viva com sofrimento e
morra em agonia! Que assim seja, então! Eis um bom material para o
infortúnio. Que assim seja, então!”
“Nenhum
dedo de fada pode ter gravado esse ouro, mas as garras do diabo devem
ter deixado suas impressões desde ontem”, murmurou Starbuck para
si mesmo, apoiando-se na amurada. “O velho parece estar lendo a
inscrição terrível de Baltasar. Nunca observei a moeda em detalhe.
Ele desce; vou examiná-la. Um vale sombrio entre três picos
poderosos quase tocando o céu, parece quase um símbolo terreno e
simples da Trindade. Assim, nesse vale da Morte, Deus nos cerca; e
sobre a nossa tristeza o sol da Justiça resplandece como um farol e
como uma esperança. Ao abaixarmos os olhos, o vale sombrio mostra
seu solo bolorento, mas, ao levantá-los, o sol fulgurante vem ao
nosso encontro para nos alegrar. Mas, oh, o sol não é imóvel e se
quiséssemos obter algum consolo à meia-noite debalde olharíamos
para o alto! A moeda fala com sabedoria, doçura e verdade, mas com
tristeza comigo. Vou deixá-la para que a Verdade não me perturbe
falsamente.”
“Eis
o velho Grão-Mogol”, Stubb soliloquiou, próximo à refinaria,
“que acaba de examiná-la; e lá vai Starbuck depois de ter feito o
mesmo, ambos com caras que daqui eu diria terem nove braças de
comprimento. Tudo por causa de uma moeda de ouro que eu não olharia
por muito tempo antes de gastar se a tivesse em Negro Hill ou em
Corlaer’s Hook. Hum! Na minha simples e insignificante opinião,
acho isso esquisito. Já vi dobrões em outras viagens, os dobrões
da velha Espanha, os dobrões do Peru, os dobrões do Chile, os
dobrões da Bolívia, os dobrões de Popayán, junto com muitas
dobras e outras moedas de ouro, e réis de prata, muitos réis de
prata e quartos de réis de prata de Portugal. O que haverá nesse
dobrão do Equador que é tão irresistivelmente maravilhoso? Pela
Golconda! Deixa-me ir vêlo uma vez. Puxa! Tem mesmo signos e
maravilhas! É o que o velho Bowditch no seu Epítome chama de
Zodíaco, e meu almanaque lá embaixo também. Vou buscar o
almanaque! E, como ouvi dizer que os demônios podem ser chamados com
a aritmética de Daboll, vou tentar encontrar um sentido nestas
coisas estranhas com o calendário de Massachusetts. Eis o livro.
Vamos ver. Signos e maravilhas, e o sol sempre entre eles. Hum, hum,
hum; ei-los – aí estão – lá se vão – todos vivos: Carneiro,
ou Áries; Taurus, ou Touro; e Jimini! Aqui está Gemini, ou Gêmeos.
Bem, o sol gira ali no meio. Sim, aqui na moeda está atravessando a
porta entre duas das doze salas que formam uma roda. Livro! Fica aí;
a verdade é que vocês, livros, devem saber qual é o seu lugar.
Vocês nos dão apenas as palavras e os fatos, mas nós provemos os
pensamentos. Esta é a minha parca experiência, com respeito ao
calendário de Massachusetts, ao navegador de Bowditch e à
aritmética de Daboll. Signos e maravilhas, hein? Que pena se não
houver nada de maravilhoso nos signos, nem de significativo nas
maravilhas! Há um indício em algum lugar; espere um pouco; psiu –
ouça! Por Jove, ei-lo! Veja, Dobrão, o seu zodíaco é a vida do
homem em um só capítulo: e agora vou lê-la, direto do livro.
Venha, Almanaque! Para começar: eis Carneiro, ou Áries – cão
devasso, ele nos gera; depois Taurus, ou Touro – ele nos dá o
primeiro golpe; depois Gemini, ou Gêmeos – ou seja, a virtude e o
vício; experimentamos a Virtude quando chega o Caranguejo, Câncer,
e nos leva para trás; aqui, partindo da Virtude, Leo, um Leão que
ruge, está deitado no caminho – ele morde feroz, por vezes, e dá
umas patadas certeiras; escapamos e saudamos Virgo, a Virgem! É o
nosso primeiro amor; casamo-nos, pensamos que seremos felizes para
sempre, quando de pronto vem Libra, ou Balança – a felicidade é
pesada, o peso é pouco; enquanto estamos tristes por isso, meu Deus,
damos um pulo repentino quando Scorpio, ou Escorpião, nos dá uma
ferroada pelas costas; estamos tratando da ferida quando de súbito
flechas nos cercam por todos os lados; o Arqueiro, ou Sagitário,
está se divertindo. Quando tiramos as flechas, sai da frente, chega
o aríete Cabra, Capricórnio, a toda a velocidade, vem correndo, e
somos jogados de cabeça para baixo; quando o Carregador de Água, ou
Aquário, verte todo o seu dilúvio e nos afoga; e para concluir, com
Pisces, ou Peixes, nós dormimos. Eis um sermão escrito nas alturas,
onde o sol aparece todos os anos, e, contudo, sai dele vivo e
vigoroso. Lá em cima, alegre, passa por labutas e dificuldades,
enquanto cá embaixo o alegre Stubb faz o mesmo. Oh, que mundo alegre
para vocês! Adeus, Dobrão! Mas espera aí! Lá vem King-Post; vou
me esconder atrás da refinaria, agora, e ouvir o que ele tem a
dizer. Isso! Ele está diante da moeda, já dirá algo. Isso, isso,
está começando.”
“Não
vejo nada aqui, salvo uma coisa redonda feita de ouro, e quem avistar
uma certa baleia receberá essa coisa redonda. Pois então, por que é
que todo mundo fica olhando? Vale dezesseis dólares, é verdade;
cada charuto custa dois centavos, isso dá novecentos e sessenta
charutos. Não fumo cachimbos imundos como Stubb, mas gosto de
charutos, e aqui tem novecentos e sessenta, e por isso Flask está
subindo agora para observar.”
“Devo
chamar a isto de sabedoria ou de bobagem? Se for sabedoria, tem
aspecto de bobagem; mas, se for mesmo uma bobagem, tem certa
sabedoria. Basta! Aí vem o nosso velho homem da ilha de Man – deve
ter sido um cocheiro de carros fúnebres, isto é, antes de vir para
o mar. Está indo para a bolina à frente do dobrão; puxa, deu a
volta do outro lado do mastro; ora, tem uma ferradura pregada daquele
lado; está voltando de novo agora; o que é isso? Veja! Está
murmurando – a voz se parece com a de uma velha máquina de café
quebrada. Preste atenção e escute!”
“Se
a Baleia Branca for avistada, isso acontecerá dentro de um mês e um
dia, quando o sol estiver em um desses signos. Estudei os signos e
conheço as figuras; a bruxa velha de Copenhague ensinou-me quatro
décadas atrás. Ora, em que signo estará o sol nessa ocasião? No
signo da ferradura, pois está ali, do lado contrário do ouro. E o
que é o signo da ferradura? O leão é o signo da ferradura – o
leão que ruge e devora. Navio, meu velho navio! A minha cabeça
velha estremece ao pensar em ti!”
“Existe
uma outra versão, mas é o mesmo texto. Todos os tipos de homens em
um só tipo de mundo, bem se vê. Esconder-me, outra vez! Aí vem
Queequeg – todo tatuado –, parece com os próprios signos do
Zodíaco. O que diz o Canibal? Pela minha vida, ele está comparando
os sinais; está olhando para o seu fêmur; acho que pensa que o sol
fica na coxa, ou na panturrilha, ou nas tripas, como as velhas do
campo falam sobre a Astronomia do Cirurgião. Por Jove, achou alguma
coisa perto da sua coxa – acho que é Sagitário, o Arqueiro. Não,
ele não sabe o que pensar do dobrão, confunde-o como um botão
velho das calças de um rei. Mas para o lado, outra vez! Aí vem o
demônio-fantasma, Fedallah, com a cauda enrolada como sempre, e com
estopa na ponta dos sapatos como sempre. O que diz, com aquele olhar
que tem? Ah, só faz um sinal para o sinal e se curva; tem um sol na
moeda – adorador do fogo, sem dúvida. Oh! Mais e mais. Ali vem Pip
– coitado! Se tivesse morrido, ou eu, sinto quase horror ao vê-lo.
Ele também está a observar esses intérpretes – eu inclusive –,
e, veja, vai ler com o rosto sobrenatural de um idiota. Vai para o
lado outra vez e escuta o que ele diz. Escuta!”
“Eu
olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”
“Pela
minha alma, ele anda estudando a gramática de Murray! Aperfeiçoando
o espírito, coitado! Mas o que diz agora – psiu!”
“Eu
olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”
“Ora,
está decorando – psiu! Outra vez!”
“Eu
olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”
“Isso
é engraçado.”
“E
eu, tu, e ele; e nós, vós, e eles, somos todos morcegos; e eu sou
um corvo, especialmente quando fico de pé no alto desse pinheiro
aqui. Crau! Crau! Crau! Crau! Crau! Crau! Não sou um corvo? Cadê o
espantalho? Está ali, dois ossos enfiados em uma calça velha, e
mais dois colocados nas mangas de um casaco velho.”
“Será
que está falando de mim? – lisonjeiro! – coitado! – eu poderia
me enforcar. De qualquer modo, por enquanto, vou deixar essa
proximidade com Pip. O resto ainda consigo aguentar, pois estão
lúcidos, mas esse aí está muito louco para a minha sanidade.
Assim, assim, deixo-o a murmurar.”
“Este
dobrão aqui é o umbigo do navio, e todos estão em chamas para
soltá-lo. Mas, se soltarem o umbigo, qual será a consequência? Mas
também, se ele ficar aqui a coisa também ficará feia, pois quando
há alguma coisa pregada no mastro é sinal que as coisas vão mal.
Ha, ha! Velho Ahab! A Baleia Branca vai pregar você! Isso é um
pinheiro. O meu pai, no condado de Tolland, certa vez cortou um
pinheiro e encontrou um anel de prata que cresceu junto com ele, uma
aliança de um velho negro. Como foi parar ali? Também vão
perguntar o mesmo na ressurreição, quando vierem buscar esse mastro
velho e encontrarem o dobrão preso, com ostras incrustadas na sua
casca áspera. Oh, o ouro! O ouro precioso, precioso! – o miserável
verde guardará você em breve! Deus vai entre os mundos colhendo
amoras. Cozinheiro! Ó, cozinheiro! Estamos fritos! Jenny! ei, ei,
ei, ei, ei, Jenny, Jenny! Faz logo o teu pão!”
Herman
Melville, in Moby Dick
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