quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Lavoura Arcaica - 18

Foi este o instante: ela transpôs a soleira, me contornando pelo lado como se contornasse um lenho erguido à sua frente, impassível, seco, altamente inflamável; não me mexi, continuei o madeiro tenso, sentindo contudo seus passos dementes atrás de mim, adivinhando uma pasta escura turvando seus olhos, mas a sombra indecisa foi aos poucos descrevendo movimentos desenvoltos, perdendo-se logo no túnel do corredor: fechei a porta, tinha puxado a linha, sabendo que ela, em algum lugar da casa, imóvel, de asas arriadas, se encontraria esmagada sob o peso de um destino forte; ali mesmo, junto da porta, tirei sapatos e meias, e sentindo meus pés descalços na umidade do assoalho senti também meu corpo de repente obsceno, surgiu, virulento, um osso da minha carne, eu tinha esporas nos meus calcanhares, que crista mais sanguínea, que paixão desassombrada, que espasmos pressupostos! afundei no corredor pisando numa passadeira de perigo, um tremor benigno me sacudia inteiro, mas nenhum ruído nos meus passos, nenhum estilhaço, nenhum gemido no assoalho, logo me detendo onde tinha de me deter, estava escrito: ela estava lá, deitada na palha, os braços largados ao longo do corpo, podendo alcançar o céu pela janela, mas seus olhos estavam fechados como os olhos fechados de um morto, e eu ainda me pergunto agora como montei minha força no galope daquele risco, eu tinha meus pelos ruivos e um monte de palha enxuta à minha frente, mas não se questiona na aresta de um instante o destino dos nossos passos, bastava que eu soubesse que o instante que passa, passa definitivamente, e foi numa vertigem que me estirei queimando ao lado dela, me joguei inteiro numa só flecha, tinha veneno na ponta desta haste, e embalando nos braços a decisão de não mais adiar a vida, agarrei-lhe a mão num ímpeto ousado, mas a mão que eu amassava dentro da minha estava em repouso, não tinha verbo naquela palma, nenhuma inquietação, não tinha alma aquela asa, era um pássaro morto que eu apertava na mão, e me vendo assim perdido de repente, sem saber em que atalho eu, e em que outro atalho a minha fé, nós dois que até ali éramos um só, vi com espanto que meu continente se bifurcava, que precariedade nesta separação, quanta incerteza, quantas mãos, que punhados de cabelos, acabei gritando minha parte alucinada, levantei nos lábios esquisitos uma prece alta, cheia de febre, que jamais eu tinha feito um dia, um milagre, um milagre, meu Deus, eu pedia, um milagre e eu na minha descrença Te devolvo a existência, me concede viver esta paixão singular fui suplicando enquanto a polpa feroz dos meus dedos tentava revitalizar a polpa fria dos dedos dela, que esta mão respire como a minha, ó Deus, e eu em paga deste sopro voarei me deitando ternamente sobre Teu corpo, e com meus dedos aplicados removerei o anzol de ouro que Te fisgou um dia a boca, limpando depois com rigor Teu rosto machucado, afastando com cuidado as teias de aranha que cobriram a luz antiga dos Teus olhos; não me esquecerei das Tuas sublimes narinas, deixando-as tão livres para que venhas a respirar sem saber que respiras; removerei também o pó corrupto que sufocou Tua cabeleira telúrica, catando zelosamente os piolhos que riscaram trilhas no Teu couro; limparei Tuas unhas escuras nas minhas unhas, colherei, uma a uma, as libélulas que desovam no Teu púbis, lavarei Teus pés em água azul recendendo a alfazema, e, com meus olhos afetivos, sem me tardar, irei remendando a carne aberta no meio dos Teus dedos; Te insuflarei ainda o ar quente dos meus pulmões e, quando o vaso mais delgado vier a correr, Tu verás então Tua pele rota e chupada encher-se de açúcar e Tua boca dura e escancarada transformar-se num pomo maduro; e uma penugem macia ressurgirá com graça no lugar dos antigos pelos do Teu corpo, e também no lugar das Tuas velhas axilas de cheiro exuberante, e caracóis incipientes e meigos na planície do Teu púbis, e uma penugem de criança há de crescer junto ao halo doce do Teu ânus sempre túmido de vinho; e tudo isso ressurgirá em Ti num corpo adolescente do mesmo milagre que as penas lisas e sedosas dos pássaros depois da muda e a brotação das folhas novas e cintilantes das árvores na primavera; e logo um vento brando há de devolver o gesto soberano dos Teus cabelos, havendo júbilo e louçania nesta expansão; Te vestirei então de cetim branco com largas palas guarnecidas de galões dourados, ajustando nos Teus dedos anéis cujas pedras guardam os olhares de todos os profetas, e braceletes de ferro para Teus punhos e um ramo de oliveira para Tua nobre fronte; resinas silvestres escorrerão pelo Teu corpo fresco e limpo, punhados de estrelas cobrirão Tua cabeça de menino como se estivesses sobre um andor de chão de lírios; e alimentos tenros Te serão servidos em folhas de parreira, e uvas e laranjas e romãs frescas, e, de pomares mais distantes, colhidas da memória dos meus genitores, as frutas secas, os figos e o mel das tâmaras, e a Tua glória então nunca terá sido maior em toda a Tua história! que dubiedade, que ambiguidade já sinto nesta mão, alguma alma quem sabe pulsa neste gesso enfermo, algum fôlego, alguma cicatriz vindoura já rememora sua dor de agora; um milagre, meu Deus, e eu Te devolvo a vida e em Teu nome sacrificarei uma ovelha do rebanho do meu pai, entre as que estiverem pascendo na madrugada azulada, uma nova e orvalhada, de corpo rijo e ágil e muito agreste; arregaçarei os braços, reúno faca e cordas, amarro, duas a duas, suas tenras patas, imobilizando a rês assustada debaixo dos meus pés; minha mão esquerda se prenderá aos botões que despontam no lugar dos cornos, torcendo suavemente a cabeça para cima até descobrir a área pura do pescoço, e com a direita, grave, desfecho o golpe, abrindo-lhe a garganta, liberando balidos, liberando num jorro escuro e violento o sangue grosso; tomarei a ovelha ainda fremente nos meus braços, faço-a pendente de borco de uma verga, deixando ao chão a seiva substanciosa que corre dos tubos decepados; entrarei na sua pele um caniço resoluto que comporte, duro e resistente, um sopro forte, aplicando nele meus lábios e soprando como meu velho tio soprava a flauta, enchendo-a de uma antiga canção desesperada, estufando seu tamanho como só a morte de três dias estufa os animais; e esfolada, e rasgado o seu ventre de cima até embaixo, haverá uma intimidade de mãos e vísceras, de sangues e virtudes, visgos e preceitos, de velas exasperadas carpindo óleos sacros e muitas outras águas, para que a Tua fome obscena seja também revitalizada; um milagre, um milagre, eu ainda suplicava em fogo quando senti assim de repente que a mão anêmica que eu apertava era um súbito coração de pássaro, pequeno e morno, um verbo vermelho e insano já se agitando na minha palma! cheio de tremuras, cegado de muros tão caiados, esmaguei a água dos meus olhos e disse sempre em febre Deus existe e em Teu nome imolarei um animal para nos provermos de carne assada, e decantaremos numerosos vinhos capitosos, e nos embriagaremos depois como dois meninos, e subiremos escarpas de pés descalços (que tropel de anjos, que acordes de cítaras, já ouço cascos repicando sinos!) e, de mãos dadas, iremos juntos incendiar o mundo!
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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