Foi
este o instante: ela transpôs a soleira, me contornando pelo lado
como se contornasse um lenho erguido à sua frente, impassível,
seco, altamente inflamável; não me mexi, continuei o madeiro tenso,
sentindo contudo seus passos dementes atrás de mim, adivinhando uma
pasta escura turvando seus olhos, mas a sombra indecisa foi aos
poucos descrevendo movimentos desenvoltos, perdendo-se logo no túnel
do corredor: fechei a porta, tinha puxado a linha, sabendo que ela,
em algum lugar da casa, imóvel, de asas arriadas, se encontraria
esmagada sob o peso de um destino forte; ali mesmo, junto da porta,
tirei sapatos e meias, e sentindo meus pés descalços na umidade do
assoalho senti também meu corpo de repente obsceno, surgiu,
virulento, um osso da minha carne, eu tinha esporas nos meus
calcanhares, que crista mais sanguínea, que paixão desassombrada,
que espasmos pressupostos! afundei no corredor pisando numa
passadeira de perigo, um tremor benigno me sacudia inteiro, mas
nenhum ruído nos meus passos, nenhum estilhaço, nenhum gemido no
assoalho, logo me detendo onde tinha de me deter, estava escrito: ela
estava lá, deitada na palha, os braços largados ao longo do corpo,
podendo alcançar o céu pela janela, mas seus olhos estavam fechados
como os olhos fechados de um morto, e eu ainda me pergunto agora como
montei minha força no galope daquele risco, eu tinha meus pelos
ruivos e um monte de palha enxuta à minha frente, mas não se
questiona na aresta de um instante o destino dos nossos passos,
bastava que eu soubesse que o instante que passa, passa
definitivamente, e foi numa vertigem que me estirei queimando ao lado
dela, me joguei inteiro numa só flecha, tinha veneno na ponta desta
haste, e embalando nos braços a decisão de não mais adiar a vida,
agarrei-lhe a mão num ímpeto ousado, mas a mão que eu amassava
dentro da minha estava em repouso, não tinha verbo naquela palma,
nenhuma inquietação, não tinha alma aquela asa, era um pássaro
morto que eu apertava na mão, e me vendo assim perdido de repente,
sem saber em que atalho eu, e em que outro atalho a minha fé, nós
dois que até ali éramos um só, vi com espanto que meu continente
se bifurcava, que precariedade nesta separação, quanta incerteza,
quantas mãos, que punhados de cabelos, acabei gritando minha parte
alucinada, levantei nos lábios esquisitos uma prece alta, cheia de
febre, que jamais eu tinha feito um dia, um milagre, um milagre, meu
Deus, eu pedia, um milagre e eu na minha descrença Te devolvo a
existência, me concede viver esta paixão singular fui suplicando
enquanto a polpa feroz dos meus dedos tentava revitalizar a polpa
fria dos dedos dela, que esta mão respire como a minha, ó Deus, e
eu em paga deste sopro voarei me deitando ternamente sobre Teu corpo,
e com meus dedos aplicados removerei o anzol de ouro que Te fisgou um
dia a boca, limpando depois com rigor Teu rosto machucado, afastando
com cuidado as teias de aranha que cobriram a luz antiga dos Teus
olhos; não me esquecerei das Tuas sublimes narinas, deixando-as tão
livres para que venhas a respirar sem saber que respiras; removerei
também o pó corrupto que sufocou Tua cabeleira telúrica, catando
zelosamente os piolhos que riscaram trilhas no Teu couro; limparei
Tuas unhas escuras nas minhas unhas, colherei, uma a uma, as
libélulas que desovam no Teu púbis, lavarei Teus pés em água azul
recendendo a alfazema, e, com meus olhos afetivos, sem me tardar,
irei remendando a carne aberta no meio dos Teus dedos; Te insuflarei
ainda o ar quente dos meus pulmões e, quando o vaso mais delgado
vier a correr, Tu verás então Tua pele rota e chupada encher-se de
açúcar e Tua boca dura e escancarada transformar-se num pomo
maduro; e uma penugem macia ressurgirá com graça no lugar dos
antigos pelos do Teu corpo, e também no lugar das Tuas velhas axilas
de cheiro exuberante, e caracóis incipientes e meigos na planície
do Teu púbis, e uma penugem de criança há de crescer junto ao halo
doce do Teu ânus sempre túmido de vinho; e tudo isso ressurgirá em
Ti num corpo adolescente do mesmo milagre que as penas lisas e
sedosas dos pássaros depois da muda e a brotação das folhas novas
e cintilantes das árvores na primavera; e logo um vento brando há
de devolver o gesto soberano dos Teus cabelos, havendo júbilo e
louçania nesta expansão; Te vestirei então de cetim branco com
largas palas guarnecidas de galões dourados, ajustando nos Teus
dedos anéis cujas pedras guardam os olhares de todos os profetas, e
braceletes de ferro para Teus punhos e um ramo de oliveira para Tua
nobre fronte; resinas silvestres escorrerão pelo Teu corpo fresco e
limpo, punhados de estrelas cobrirão Tua cabeça de menino como se
estivesses sobre um andor de chão de lírios; e alimentos tenros Te
serão servidos em folhas de parreira, e uvas e laranjas e romãs
frescas, e, de pomares mais distantes, colhidas da memória dos meus
genitores, as frutas secas, os figos e o mel das tâmaras, e a Tua
glória então nunca terá sido maior em toda a Tua história! que
dubiedade, que ambiguidade já sinto nesta mão, alguma alma quem
sabe pulsa neste gesso enfermo, algum fôlego, alguma cicatriz
vindoura já rememora sua dor de agora; um milagre, meu Deus, e eu Te
devolvo a vida e em Teu nome sacrificarei uma ovelha do rebanho do
meu pai, entre as que estiverem pascendo na madrugada azulada, uma
nova e orvalhada, de corpo rijo e ágil e muito agreste; arregaçarei
os braços, reúno faca e cordas, amarro, duas a duas, suas tenras
patas, imobilizando a rês assustada debaixo dos meus pés; minha mão
esquerda se prenderá aos botões que despontam no lugar dos cornos,
torcendo suavemente a cabeça para cima até descobrir a área pura
do pescoço, e com a direita, grave, desfecho o golpe, abrindo-lhe a
garganta, liberando balidos, liberando num jorro escuro e violento o
sangue grosso; tomarei a ovelha ainda fremente nos meus braços,
faço-a pendente de borco de uma verga, deixando ao chão a seiva
substanciosa que corre dos tubos decepados; entrarei na sua pele um
caniço resoluto que comporte, duro e resistente, um sopro forte,
aplicando nele meus lábios e soprando como meu velho tio soprava a
flauta, enchendo-a de uma antiga canção desesperada, estufando seu
tamanho como só a morte de três dias estufa os animais; e esfolada,
e rasgado o seu ventre de cima até embaixo, haverá uma intimidade
de mãos e vísceras, de sangues e virtudes, visgos e preceitos, de
velas exasperadas carpindo óleos sacros e muitas outras águas, para
que a Tua fome obscena seja também revitalizada; um milagre, um
milagre, eu ainda suplicava em fogo quando senti assim de repente que
a mão anêmica que eu apertava era um súbito coração de pássaro,
pequeno e morno, um verbo vermelho e insano já se agitando na minha
palma! cheio de tremuras, cegado de muros tão caiados, esmaguei a
água dos meus olhos e disse sempre em febre Deus existe e em Teu
nome imolarei um animal para nos provermos de carne assada, e
decantaremos numerosos vinhos capitosos, e nos embriagaremos depois
como dois meninos, e subiremos escarpas de pés descalços (que
tropel de anjos, que acordes de cítaras, já ouço cascos repicando
sinos!) e, de mãos dadas, iremos juntos incendiar o mundo!
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
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