Todo
mundo conhece ciclo seco, a maioria até já passou por ele. Alguns
mesmo vivem desde sempre dentro dele, achando que isso é vida e
eternizando o que, por ser ciclo, deveria também ser transitório. É
preciso acreditar que passa, embora quando dentro dele seja difícil
e quase impossível acreditar não só nisso, mas em qualquer outra
coisa. Não que ciclo seco não tenha fé, o que acontece é que não
podendo ver o que não é visível, fica limitado ao real.
Antes
de ir em frente, é importante dizer que ciclo seco nada tem a ver
com as estações do ano. É coisa de dentro do humano, não de fora,
e justamente por isso não tem nenhum método: vem quando não é
esperado e vai quando não se suspeita. Ciclo seco não desaba de
repente sobre alguém; chega aos poucos, insidioso, lento. Quando se
percebe que se instalou, geralmente é tarde demais. Já está ali. É
preciso atravessá-lo como a um deserto, quando se está no meio e a
água acabou. Por ser limitado ao real, o ciclo seco jamais considera
a possibilidade de um oásis ou de uma caravana passando. Secamente,
apenas vai em frente.
Porque
o real do ciclo seco são ações, não pensamentos nem imaginações.
Tanto que, visto de fora, não é visível nem identificável. Não
se confunde com “depressão”, quando você deixa de fazer o que
devia, ou com “euforia”, quando você faz em excesso o que não
devia. Em ciclo seco faz-se exatamente o que se deve ou não, desde
escovar os dentes de manhã ou beber um uísque à tardinha, mas sem
prazer. Nem desprazer: em ciclo seco apenas se age, sem adjetivos. A
propósito, ciclo seco não admite adjetivos — seco é apenas a
maneira inexata de chamá-lo para que, dando-lhe um nome,
didaticamente se possa falar nele.
E
deve-se falar dele? Quero supor entusiástico que sim, mas não tenho
certeza se dar nome aos bois terá alguma serventia para o dono dos
bois ou sequer para os próprios bois — e essa é uma reflexão
típica de ciclo seco. Mas vamos dizer que sim, caso contrário paro
de escrever já. E falando-se dele, diga-se ainda que ciclo seco não
é bom nem mau, feio ou bonito, inteligente ou burro — nem a Alice,
de Woody Allen, nem Bette Davis em algum filme antigo, nem o Homem
Elefante nem um dos irmãos Baldwin, nem Gertrude Stein nem Romário
—, embora possa dar uma impressão errada a quem o vê de fora,
ávido por adjetivar.
Ciclo
seco, por exemplo, não se interessa por nada. Pior que não ter o
que dizer, ciclo seco não tem o que ouvir, compreende? Fica na mais
completa indiferença seja ao terremoto no Japão ou à demissão de
Vera Fischer. No plano pessoal, tanto faz ler ou não ler um livro,
ir ou não ao cinema — ciclo seco é incapaz de se distrair, de se
evadir. Fica voltado para dentro o tempo todo, atento a quê é um
mistério, pois que pode um ciclo seco observar de si mesmo além da
própria secura, se não há sequer temporais, ventanias, chuvaradas?
Nesse
sentido, ciclo seco é forte, porque nada vindo de fora o abala, e
imutável, porque de dentro nada vem que o modifique. E nesse sentido
também é antinatural, pois tudo se transforma e ele não, simulando
o eterno em sua, digamos, inabalabilidade. E sendo assim, com alívio
vou quase concluindo, pode se deduzir que.
Não,
não se pode deduzir nada. Só que passa, por ser ciclo, e por ser da
natureza dos ciclos passar. Até lá, recomenda-se fazer modestamente
o que se tem a fazer com o máximo de disciplina e ordem, sem querer
novidades. Chatíssimo bem sei. Mas ciclo seco é assim mesmo.
Todo
mundo tem os seus, é preciso paciência. E contemplá-lo distante
como se se estivesse fora dele, e fazer de conta que não está ali
para que, despeitado, vá-se logo embora e nos deixe em paz? Eu
francamente não sei. Ainda mais francamente, nem sequer sinto muito.
Caio
Fernando Abreu,
in Pequenas
epifanias