quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Luxúria (excerto)

Além de tudo, não há nada demais em ser politeísta, de certa forma é muito melhor do que ficar acreditando somente num Deus impossível de compreender. E, ainda além de tudo, já estou cansada de não dizer o que me vem à cabeça e olhe que nunca fui muito de agir assim, mas o pequeno grau em que fui já é demais para mim. Ainda me restam alguns penduricalhos desse legado imbecilóide, de que tenho de me livrar antes de morrer. A doença, esta doença que vai me matar, também contribui para meu atual estado de espírito. Não sei quem foi que disse que a perspectiva de ser enforcado amanhã de manhã opera maravilhas para a concentração. Excelente constatação. Nada de pessoal com ninguém, não falo para ofender ninguém em particular, é como se fosse uma atitude filosófica genérica. Meu avô materno era aristocrata, elegantíssimo, falava francês e alemão fluentemente, esteve várias vezes na Europa, era cultíssimo, mas, depois que passou de uma certa idade, peidava em público. Assisti ele peidar na frente do interventor, na época do Estado Novo. O interventor tinha ido almoçar com ele e, depois do almoço, ficaram conversando na sala de estar, com meu avô volta e meia levantando os quartos e soltando vento aos trovões. Quando minha avó reclamava, ele dizia que o que está preso quer ser solto e todo mundo peidava, inclusive o interventor, então não era ele que, àquela altura da vida, ia arrolhar um peido. Quem quisesse que arrolhasse, mas ele não.
Mas, sim, mas então eu estava dizendo que os católicos são politeístas, botaram os santos no lugar dos deuses especializados. Os gregos e os romanos tinham um deus menor para cada coisa, regras atrasadas, artistas falidos, transações impossíveis, dívidas falimentares, casamentos, músicos bêbedos, agricultores, criadores de cabra, tudo, tudo, tudo. Os católicos substituíram os deuses pelos santos. Os músicos? Santa Cecília. Os ruins da vista? Santa Luzia. As solteironas? Santo Antônio. E por aí vai, como você sabe. Até lugares. São José de Não Sei Onde? Diana de Éfeso, a mesmíssima coisa. Os deuses não foram derrotados ou eliminados, continuam imortais como sempre foram e somente mudaram de nome, se adaptaram às mudanças. Eu pronuncio verdadeiras conferências sobre isso, sou a rainha da conferência, às vezes devo ficar chatíssima. Mas pode permanecer tranqüilo, que eu não vou fazer conferência para você, afinal você está sendo pago, temos que trabalhar, vamos trabalhar. Somente uma última referenciazinha a São Gonçalo, porque agora já comecei e sou compulsiva; comecei, tem que acabar. São Gonçalo não existe. Ou melhor, existe, mas nunca existiu. Para a Igreja, não há nenhum São Gonçalo, nunca houve. Mas se declarou, na minha opinião por falta de Príapo, uma grande lacuna, que clamava por ser preenchida. Não existe São Gonçalo, mas já vi procissão dele com padre e tudo, e as mulheres cantando obscenidades baixinho, é um santo deflorador e consolador para as solitárias. No arraial junto à fazenda da ilha, segundo até meu avô contava, havia uma imagem de São Gonçalo com um falo de madeira descomunal, maior que o próprio corpo dele. O corpo era de barro, mas o falo era de madeira de lei e fixado pela base num eixo, de maneira que, quando se puxava uma cordinha por trás, ele subia e ficava ali em riste. Eu nunca vi, mas as negras velhas da fazenda garantiam que antigamente, todo ano, faziam uma procissão com essa imagem de São Gonçalo e as mulheres disputavam quem ia repintar o falo, era sucesso garantido no mundo das artes, para não falar que a felizarda ficaria muito bem assistida nos seguintes 364 dias. Claro!
João Ubaldo Ribeiro, in A casa dos budas ditosos

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