Além
de tudo, não há nada demais em ser politeísta, de certa forma é
muito melhor do que ficar acreditando somente num Deus impossível de
compreender. E, ainda além de tudo, já estou cansada de não dizer
o que me vem à cabeça e olhe que nunca fui muito de agir assim, mas
o pequeno grau em que fui já é demais para mim. Ainda me restam
alguns penduricalhos desse legado imbecilóide, de que tenho de me
livrar antes de morrer. A doença, esta doença que vai me matar,
também contribui para meu atual estado de espírito. Não sei quem
foi que disse que a perspectiva de ser enforcado amanhã de manhã
opera maravilhas para a concentração. Excelente constatação. Nada
de pessoal com ninguém, não falo para ofender ninguém em
particular, é como se fosse uma atitude filosófica genérica. Meu
avô materno era aristocrata, elegantíssimo, falava francês e
alemão fluentemente, esteve várias vezes na Europa, era cultíssimo,
mas, depois que passou de uma certa idade, peidava em público.
Assisti ele peidar na frente do interventor, na época do Estado
Novo. O interventor tinha ido almoçar com ele e, depois do almoço,
ficaram conversando na sala de estar, com meu avô volta e meia
levantando os quartos e soltando vento aos trovões. Quando minha avó
reclamava, ele dizia que o que está preso quer ser solto e todo
mundo peidava, inclusive o interventor, então não era ele que,
àquela altura da vida, ia arrolhar um peido. Quem quisesse que
arrolhasse, mas ele não.
Mas,
sim, mas então eu estava dizendo que os católicos são politeístas,
botaram os santos no lugar dos deuses especializados. Os gregos e os
romanos tinham um deus menor para cada coisa, regras atrasadas,
artistas falidos, transações impossíveis, dívidas falimentares,
casamentos, músicos bêbedos, agricultores, criadores de cabra,
tudo, tudo, tudo. Os católicos substituíram os deuses pelos santos.
Os músicos? Santa Cecília. Os ruins da vista? Santa Luzia. As
solteironas? Santo Antônio. E por aí vai, como você sabe. Até
lugares. São José de Não Sei Onde? Diana de Éfeso, a mesmíssima
coisa. Os deuses não foram derrotados ou eliminados, continuam
imortais como sempre foram e somente mudaram de nome, se adaptaram às
mudanças. Eu pronuncio verdadeiras conferências sobre isso, sou a
rainha da conferência, às vezes devo ficar chatíssima. Mas pode
permanecer tranqüilo, que eu não vou fazer conferência para você,
afinal você está sendo pago, temos que trabalhar, vamos trabalhar.
Somente uma última referenciazinha a São Gonçalo, porque agora já
comecei e sou compulsiva; comecei, tem que acabar. São Gonçalo não
existe. Ou melhor, existe, mas nunca existiu. Para a Igreja, não há
nenhum São Gonçalo, nunca houve. Mas se declarou, na minha opinião
por falta de Príapo, uma grande lacuna, que clamava por ser
preenchida. Não existe São Gonçalo, mas já vi procissão dele com
padre e tudo, e as mulheres cantando obscenidades baixinho, é um
santo deflorador e consolador para as solitárias. No arraial junto à
fazenda da ilha, segundo até meu avô contava, havia uma imagem de
São Gonçalo com um falo de madeira descomunal, maior que o próprio
corpo dele. O corpo era de barro, mas o falo era de madeira de lei e
fixado pela base num eixo, de maneira que, quando se puxava uma
cordinha por trás, ele subia e ficava ali em riste. Eu nunca vi, mas
as negras velhas da fazenda garantiam que antigamente, todo ano,
faziam uma procissão com essa imagem de São Gonçalo e as mulheres
disputavam quem ia repintar o falo, era sucesso garantido no mundo
das artes, para não falar que a felizarda ficaria muito bem
assistida nos seguintes 364 dias. Claro!
João
Ubaldo Ribeiro,
in A casa dos budas ditosos
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