segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Estamos mudos e isolados

 “Olhe pela janela, você verá como vai o mundo. Para onde correm as pessoas? O que querem? Não diferençamos mais o encadeamento das coisas que lhes daria um sentido supra- pessoal. A despeito do rumor geral, cada um está mudo e isolado em si mesmo. O encaixe dos valores do mundo e dos valores do eu já não funcionam convenientemente. Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado.”

Franz Kafka, em Conversas com Kafka, de Gustav Janouch

Lição de casa

Você tampa a panela,
dobra o avental,
deixa a lágrima secar no arame do varal.
Fecha a agenda,
adia o problema,
atrasa a encomenda,
guarda insucessos no fundo da gaveta.
A ideia é tirar a tarja preta
e pôr o dedo onde se tem medo.
Você vai perceber
que a gente é que faz o monstro crescer.
Em seguida superar o obstáculo,
pois pode-se estar perdendo
um espetáculo acontecendo do outro lado.
Atravessar o escuro
até conseguir tatear o muro,
que é o limite da claridade.
Se tiver capacidade para conquistá-la,
tente retê-la o mais que puder.
Há que ter habilidade, sem esquecer
que a luz é mulher.
Do inferno assim desmascarado,
é hora de voltar.
Não importa se é caminho complicado,
se a curva é reta,
ou se a reta entorta.
Você buscou seu brilho, voltou completa;
jogou a tranca fora, abriu a porta.

Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto

Memorabilia, por Angeli

Vida efêmera

Lucila viu Vero falecer. Depois, faleceu. O mesmo se desenrolou com Secunda e Máximo, Epitincano e Diótimo, Antonino e Faustina, Céler e Adriano e assim por diante.
Onde estão aqueles homens perspicazes — videntes ou orgulhosos —, como Charax, Demétrio, Eudemão e semelhantes? Tiveram uma vida efêmera e estão mortos há anos. Alguns não foram lembrados nem momentaneamente. Outros se transformaram em heróis das fábulas. Os demais desapareceram até delas.
Recorde-se: ou esse seu pequeno composto — você — será dissolvido, ou seu sopro vital será dissipado ou movido para outra área.

Marco Aurélio, em Meditações

Cartas na Rua | Quatro

 


16

Os tumultos terminaram, o bebê se acalmou, e descobri alguns truques para escapar de Janko. Mas as tonturas persistiam. O médico me receitou umas cápsulas tranquilizantes e elas ajudaram um pouco.
Certa noite, me levantei para tomar um gole d’água. Depois retornei, trabalhei meia hora e fui para meu descanso de dez minutos.
Quando voltei a me sentar, Chambers, o supervisor, um loiro alto, veio correndo:
Chinaski! Finalmente você cavou sua sepultura. Esteve fora por quarenta minutos!
Em outra noite, tempos atrás, Chambers tinha caído no chão, num surto, espumando e se contorcendo. Levaram-no de maca. Na noite seguinte a essa, ele voltou, de gravata, camisa nova, como se nada tivesse acontecido. Agora vinha com essa conversa para boi dormir para cima de mim.
Veja bem, Chambers, seja compreensivo. Tomei um gole de água, me sentei, trabalhei trinta minutos, depois saí para o intervalo. Fiquei lá fora dez minutos.
Você cavou sua sepultura, Chinaski. Ficou lá fora durante quarenta minutos! Tenho sete testemunhas!
Sete testemunhas?
SIM, sete!
É como eu disse, foram dez minutos.
Não! Dessa vez pegamos você, Chinaski! Pegamos com a boca na botija!
O fato era que eu estava cansado daquilo. Não quis mais nem olhar para ele:
Tudo bem, então. Fiquei lá fora por quarenta minutos. Faça o que bem entender. Registre uma queixa.
Chambers saiu correndo.
Carimbei mais algumas cartas, então o supervisor-geral se aproximou. Um sujeito magro e branco, com pequenos tufos de cabelos grisalhos pendendo acima das orelhas. Olhei para ele e voltei e carimbar mais algumas cartas.
Sr. Chinaski, estou certo de que o senhor conhece as regras e o regulamento dos Correios. Cada funcionário tem direito a dois descansos de dez minutos, um antes do almoço, outro depois do almoço. O direito de descanso é garantido pelo acordo: dez minutos. Dez minutos são...
PORRA DO CARALHO!
Joguei minhas cartas no chão.
Só admiti que tinha sido um intervalo de quarenta minutos para satisfazer vocês e para que me largassem de mão. Mas vocês não conseguem dar uma folga! Agora retiro o que disse! Só fiquei lá fora por dez minutos! Quero ver quem são suas sete testemunhas! Traga-as já até aqui!

Dois dias depois eu estava no hipódromo. Dei uma olhada ao redor e vi todos esses dentes, esse enorme sorriso e uns olhos brilhando, amigavelmente. Quem era — com todos aqueles dentes? Olhei mais de perto. Era o Chambers olhando para mim, sorrindo e parado em uma fila de café. Eu tinha uma cerveja na mão. Me aproximei de uma lata de lixo e, sem tirar os olhos dele, cuspi tudo. Depois me afastei. Chambers nunca mais voltou a me incomodar.

Charles Bukowski, em Cartas na Rua

Chico César e Zeca Baleiro | Respira

domingo, 15 de setembro de 2024

Teologia popular

Ainda falando sobre a imaginação teológica do povo, encantou-me um adesivo colado num carro: “Deus é joia. O resto é bijoteria (sic!)”. Por mais que eu me esforçasse, nunca me ocorreria uma afirmação teológica semelhante.

Rubem Alves, em Ostra feliz não faz pérola

Morte de um pássaro

(Réquiem para Federico Garcia Lorca)

Ele estava pálido e suas mãos tremiam. Sim, ele estava com medo porque era tudo tão inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal puderam articular as palavras de pasmo que lhe causava a vista de todos aqueles homens preparados para matá-lo. Havia estrelas infantis a balbuciar preces matinais no céu deliquescente. Seu olhar elevou-se até elas e ele, menos que nunca, compreendeu a razão de ser de tudo aquilo. Ele era um pássaro, nascera para cantar. Aquela madrugada que raiava para presenciar sua morte, não tinha sido ela sempre a sua grande amiga? Não ficara ela tantas vezes a escutar suas canções de silêncio? Por que o haviam arrancado a seu sono povoado de aves brancas e feito marchar em meio a outros homens de barba rude e olhar escuro?
Pensou em fugir, em correr doidamente para a aurora, em bater asas inexistentes até voar. Escaparia assim à fria sanha daqueles caçadores maus que o confundiam com o milhafre, ele cuja única missão era cantar a beleza das coisas naturais e o amor dos homens; ele, um pássaro inocente, em cuja voz havia ritmos de dança.
Mas permaneceu em sua atonia, sem acreditar bem que aquilo tudo estivesse acontecendo. Era, por certo, um mal-entendido. Dentro em pouco chegaria a ordem para soltá-lo, e aqueles mesmos homens que o miravam com ruim catadura chegariam até ele rindo risos francos e, de braços dados, iriam todos beber manzanilla numa tasca qualquer, e cantariam canções de cante-hondo até que a noite viesse recolher seus corpos bêbados em sua negra, maternal mantilha.
As ordens, no entanto, foram rápidas. O grupo foi levado, a coronhadas e empurrões, até a vala comum aberta, e os nodosos pescoços penderam no desalento final. Lábios partiram-se em adeuses, murmurando marias e consuelos. Só sua cabeça movia-se para todos os lados, num movimento de busca e negação, como a do pássaro frágil na mão do armadilheiro impiedoso. O sangue cantava-lhe aos ouvidos, o sangue que fora a seiva mais viva de sua poesia, o sangue que tinha visto e que não quisera ver, o sangue de sua Espanha louca e lúcida, o sangue das paixões desencadeadas, o sangue de Ignácio Sánchez Mejías, o sangue das bodas de sangre, o sangue dos homens que morrem para que nasça um mundo sem violência. Por um segundo passou-lhe a visão de seus amigos distantes. Alberti, Neruda, Manolo Ortiz, Bergamín, Delia, María Rosa – e a minha própria visão, a do poeta brasileiro que teria sido como um irmão seu e que dele viria a receber o legado de todos esses amigos exemplares, e que com ele teria passado noites a tocar guitarra, a se trocarem canções pungentes.
Sim, teve medo. E quem, em seu lugar, não o teria? Ele não nascera para morrer assim, para morrer antes de sua própria morte. Nascera para a vida e suas dádivas mais ardentes, num mundo de poesia e música, configurado na face da mulher, na face do amigo e na face do povo. Se tivesse tido tempo de correr pela campina, seu corpo de poeta-pássaro ter-se-ia certamente libertado das contingências físicas e alçado voo para os espaços além; pois tal era sua ânsia de viver para poder cantar, cada vez mais longe e cada vez melhor, o amor, o grande amor que era nele sentimento de permanência e sensação de eternidade.
Mas foram apenas outros pássaros, seus irmãos, que voaram assustados dentro da luz da antemanhã, quando os tiros do pelotão de morte soaram no silêncio da madrugada.

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

Onça x tigre, por Jean Galvão

Escada

Na curva desta escada nos amamos,
nesta curva barroca nos perdemos.
O caprichoso esquema
unia formas vivas, entre ramas.

Lembras-te, carne? Um arrepio telepático
vibrou nos bens municipais, e dando volta
ao melhor de nós mesmos
deixou-nos sós, a esmo,
espetacularmente sós e desarmados,
que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

E mortos, e proscritos
de toda comunhão no século (esta espira
é testemunha, e conta), que restava
das línguas infinitas
que falávamos ou surdas se lambiam
no céu da boca sempre azul e oco?

Que restava de nós,
neste jardim ou nos arquivos, que restava
de nós, mas que restava, que restava?
Ai, nada mais restara,
que tudo mais, na alva,
se perdia, e contagiando o canto aos passarinhos
vinha até nós, podrido e trêmulo, anunciando
que amor fizera um novo testamento,
e suas prendas jaziam sem herdeiros
num pátio branco e áureo de laranjas.

Aqui se esgota o orvalho,
e de lembrar não há lembrança. Entrelaçados,
insistíamos em ser; mas nosso espectro,
submarino, à flor do tempo ia apontando,
e já noturnos, rotos, desossados,
nosso abraço doía
para além da matéria esparsa em números.

Asa que ofereceste o pouso raro
e dançarino e rotativo, cálculo,
rosa grimpante e fina
que à terra nos prendias e furtavas,
enquanto a reta insigne
da torre ia lavrando
no campo desfolhado outras quimeras:
sem ti não somos mais o que antes éramos.

E se este lugar de exílio hoje passeia
faminta imaginação atada aos corvos
de sua própria ceva,
escada, ó assunção,
ao céu alças em vão o alvo pescoço,
que outros peitos em ti se beijariam
sem sombra, e fugitivos,
mas nosso beijo e baba se incorporam
de há muito ao teu cimento, num lamento.

Carlos Drummond de Andrade, em Fazendeiro do ar

Barra da Vaca


Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão
contente com minha terra,
cansado de tanta guerra,
crescido de coração.
Tôo.

Sucedeu então vir o grande sujeito entrando no lugar, capiau de muito longínquo: tirado à arreata o cavalo raposo, que mancara, apontava de noroeste, pisando o arenoso. Seus bigodes ou a rustiquez — roupa parda, botinões de couro de anta, chapéu toda a aba — causavam riso e susto. Tomou fôlego, feito burro entesa orelhas, no avistar um fiapo de povo mas a rua, imponente invenção humana. Tinha vergonha de frente e de perfil, todo o mundo viu, devia também de alentar internas desordens no espírito.
Sem jeito para acabar de chegar, se escorou a uma porta, desusado forasteiro. Requeria, pagados, comida e pouso, com frases pálidas, se discerniu por nome Jeremoavo. Mesmo lá era a Domenha, da pensão, o velho deu à aldrava. Desalongou-se, porém, e — de tal sorte que dos lados dobrava em losango as côxas e pernas de gafanhoto — se amoleceu, sem serenar os olhos.
Lhe acudiram, que alquebreirado tonteava, decerto pela cólica dos viajantes. Isso lhes dava longa matéria. Senoitava. Era ali ribanceiro arraial de nem quinhentas almas, suas pequenas casas com os quintais de fundo e onde o rio é incontestável: um porto de canoas, Barra da Vaca, sobre o Urucúia.
Jeremoavo, pois quem. Em aflito caminho para nenhuma parte, aquele logradouro dregava-se-lhe mal e tarde, as pernas lhe doendo nervosas, a cabeça em vendaval, as ideias sacudindo-o como vômitos. Ia fazer ali pouca parada.
Largara para sempre os dele, parentes, traiçoeira família, em sua fazenda, a Dã, na Chapada de Trás, com fel e veemências. Mulher e filhos, tal ditos, contra ele achados em birba de malícias, e querendo-o morto, que o odiavam. Sumiu-se de lá, então, em fúria, pensado. Deixara-lhes tudo, a desdém, aos da medonha ingratidão. Só pegara o que vale, saco e dobros do diário, as armas. Saía ao desafio com o mundo, carecia mais do afeto de ninguém. Invés. Preferia ser o desconhecido somenos. Quanta tristeza, quanta velhacaria...
Ah, prestes vozes. — “O Sr. se agrada?” — era a Domenha, dando-lhe num caneco tisanas de chá, ele estirado em catre. Também o lugar podia ser o para a cama, mesa e cova — repouso — doce como o apodrecer da madeira. Doeu e dormiu.
Doente e por seguintes dias, rogava pragas das brenhas, numa candura de delírio de com ele apiedarem-se, seria febre malignada. Tratavam-no, e por caridade pura, a que satisfaz e ocupa. Não que desvalido: com rolo de dinheiro e o revólver de cano de palmo. Representado homem de bem e posses, quando por mais não fora, e a ele razão era devida. Se’o Vanvães disse, determinou. Visitavam-no.
Melhorou, perguntando pelo cavalo. Se perturbava, pelo já ou pelo depois, nos mal-ficares. Suspirava, por forma breve. Domenha segurava a lamparina — para ver-lhe os olhos raiados de vermelho — a cara na dele quase encostada.
O tempo era todo igual, como a carne do boi que a gente come. Sem donde se saber, teve-se aí sobre ele a notícia. Era brabo jagunço! um famoso, perigoso. Alguém disse.
Se estarreceu a Barra da Vaca, fria, ficada sem conselho. Somente alto e forte, seria um Jerê, par de Antônio Dó, homem de peleja. Encolhido modorroso, agora, mas desfadigado podendo se desmarcar, em qualquer repelo, tufava. Se’o Vanvães disse a Seo Astórgio, que a Seô Abril, que a Siô Cordeiro, que a Seu Cipuca: — “Que fazer?!” — nessas novas ocasiões. Se assentou que, por ora, mais o honrassem.
Jeremoavo sarara, fraco, pesava os pecados males, restado o ganho de nada querer, um viver fora de engano. Não podia abreviar com a saída, tinha de ir ficando naquele lugar, até às segundas ou terceiras nuvens. Domenha olhando-o: — “Felicidade se acha é só em horinhas de descuido...” — disse, o trestanto.
Se’o Vanvães, dada a mão, levou-o a conhecer a Barra da Vaca — o rio era largo, defronte — povoação desguardada, no desbravio. Seo Astórgio convidava-o. Estimou a boa respondência, por agrado e por respeito. Estava ali em mansão, não desfaçado ou rebaixado. Seus filhos e a mulher, sim, isso haviam de saber, se viessem renegri-lo.
Reportou-lhe mais a gente velha da terra, seus bons diabos, vendo como as coisas se davam. Era o danado jagunço: por sua fortíssima opinião e recatado rancor, ensimesmudo, sobrolhoso, sozinho sem horas a remedir o arraial, caminhando com grandes passos. Não aluía dali, porque patrulho espião, que esperava bando de outros, para estrepolirem. Parecia até às vezes homem bom, sério por simpatia com integridades. Mas de não se fiar. Em-adido que no repente podia correr às armas, doidarro.
Jeremoavo em fato rondava o povoado, por esse enquanto. Adiante ou para trás — o rio lá faz muitos luares — sentia o bafo da solidão. Não se animava a traçar do bordão e a reto ir embora, mas esbarrava, como se para melhorar fortuna ou querer os achegos do mundo, e quebrava a ordem das desordens. Ora se descarnava, se afrontava disso, por decisão de homem, resolvido às redobradas. Vir a vez, ia, seguiço; não se deve parar em meio de tristeza. Na família não pensava, nem para condená-los de mal. — “Aqui é quase alegre...” — no portal Domenha dizia.
Torceu mais o espírito. Viu. Ali era o tempo, em trechos, entre a cruz e a cantação, e contemplar vivas águas, vagaroso o rio corre com gosto de terra. Não o podia atravessar? — no amarasmeio, encabruado, fazendo o já feito.
Permanecia e ameaçava. Mais o obsequiavam, os do lugar, o tom geral, em sua espaçada precisão. Se admiravam: eles e ele — na calada da consciência. Sendo que já para uns era por igual o velho da galhofa. Andava pé diante de pé, como as antas andam. Os meninos tinham medo e vontade de bulir com ele.
E aquela aldeiazinha produziu uma ideia.
De pescaria, à rede, furupa, a festa, assaz cachaças, com honra o chamaram, enganaram-lhe o juízo. Jeremoavo, vai, foi. O rio era um sol de paraíso. Tão certo. Tão bêbado, depois, logo do outro lado o deixaram, debaixo de sombra. Tinham passado também, quietíssimo, o cavalo raposo.
Só de tardinha Jeremoavo espertou, com cansaços de espírito. Viu o animal, que arreado, amarrado, seus dele dobros e saco, até garrafa de cerveja. Entendeu, pelo que antes; palpou a barba, de incontido brio. Não podia torcer o passo. Topava com o vento, às urtigas aonde se mandava, cavaleiro distraído, sem noção de seu cavalo, em direitura. Desterrado, desfamilhado — só com a alta tristeza, nos confins da ideia — lenta como um fim de fogueira. Saudade maior eram: a Barra, o rio, o lugar, a gente.
Lá, os homens todos, até ao de dentro armados, três dias vigiaram, em cerca e trincheira. Voltasse, e não seria ele mais o confuso hóspede, mas um diabo esperado, o matavam. Veio não. Dispersou-se o povo, pacífico. Se riam, uns dos outros, do medo geral do graúdo estúrdio Jeremoavo. Do qual ou da Domenha sincera caçoavam. Tinham graça e saudades dele.

Deu seca na minha vida
e os amores me deixaram
tão solto no cativeiro.
Das Cantigas de Serão de João Barandão.

Guimarães Rosa, em Tutameia

Guilherme Arantes | Um dia, um adeus

Os Nascimentos | 1544 – Machu Picchu

O trono de pedra

Deste lugar reinou Manco Cápac sobre as terras de Vilcabamba. Deste lugar guerreou longa e dura guerra, guerra de incêndios e emboscadas, contra os invasores. Eles não conhecem os labirintos que conduzem à cidade secreta. Nenhum inimigo os conhece.
Somente o capitão Diego Méndez pôde chegar ao esconderijo. Vinha fugindo. Cumprindo ordens do filho de Almagro, sua espada tinha atravessado a garganta de Francisco Pizarro. Manco Cápac deu-lhe refúgio. Depois, Diego Méndez cravou o punhal nas costas de Manco Cápac.
Entre as pedras de Machu Picchu, onde as flores acesas oferecem mel a quem as fecunde, jaz o Inca envolvido em belas mantas.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

sábado, 14 de setembro de 2024

A Contadora de Filmes


[36]

O dia que chegou o primeiro aparelho de televisão no povoado foi um verdadeiro espetáculo.
Dom Primitivo, o dono da confeitaria, havia propagado aos quatro ventos que estava viajando até o porto para trazer “um rádio com desenhos animados”. Inclusive já tinha mandado fazer uma antena de cobre de seis metros de altura. E com isso, na tarde em que desembarcou com uma enorme caixa de papelão como única bagagem, metade do povoado estava esperando por ele.
O mais corpulento dos jovens botou no ombro a caixa que dizia Westinghouse e começou a andar rodeado pela multidão. Enquanto um bando de meninos saltava ao seu redor tratando de tocar a caixa, os mais velhos, excitados pela emoção, diziam a ele que andasse devagarinho, que aqueles bicharocos eram delicados. Como se de verdade tivesse se tratado da imagem da Virgem de Tirana, o aparelho chegou na confeitaria seguido por uma verdadeira procissão de fiéis.
Isso foi o que me contaram depois. Naquela hora eu estava vendo um filme de caubói, com Gary Cooper. Quando cheguei em casa não havia ninguém me esperando. Preparei uma xícara de chá, que tomei tratando de pensar em nada mais além do filme que tinha acabado de ver.
Esperei um pouco, sentada à mesa.
Depois, pus o cinturão com os revólveres de pau e o chapéu de aba larga, e na frente do espelho comecei a treinar o “olhar de aço” de Gary Cooper. Treinei um pouco o “saque”: puxava os revólveres o mais rápido possível, atirava, fazia com que girassem em meu dedo indicador e tornava a colocá-los no coldre.
Fazia pouco que eu tinha aprendido que os caubóis engraxavam as cartucheiras e poliam a mira para sacar mais rápido. Meus revólveres não tinham mira, portanto eu só precisava engraxar as cartucheiras. Pensei: amanhã mesmo vou conseguir um pedaço de graxa no armazém.
Depois fiquei parada na porta.
Mas não chegou ninguém.
Alguém passou correndo e me gritou da outra calçada que todo mundo estava lá no dom Primitivo, vendo a novidade da televisão.
Fechei a casa e fui ver que alvoroço era aquele.

Hernán Rivera Letelier, em A Contadora de Filmes

Bicudinho, de Caco Galhardo

A poesia

Encomendaram-me os editores uma “suma” de minha poesia, o que me enche de perplexidade. Pois não foi aereamente e sim muito de propósito que dei a um dos meus livros (que por sinal é o predileto de Manuel Bandeira, Augusto Meyer e Carlos Drummond) o título de O aprendiz de feiticeiro, tirado de uma lenda alemã. Esse incauto aprendiz, na ausência do seu Mestre, pôs-se a lidar com forças desconhecidas, e o que aconteceu foi uma incontrolável multiplicação de vassouras, no meu caso uma multiplicação de poemas.
Saberá mesmo um poeta em que consiste essa espécie de força oculta que o faz poetar? Ele não tem culpa de ser poeta; portanto, não tem do que se desculpar ou explicar.
Se eu conheço algum segredo é o da sinceridade, não escrevo uma vírgula que não seja confessional. Esse desejo insopitável de expressar o que tem dentro de si é o mesmo que leva o crente ao confessionário e o incréu ao divã do analista. O poeta prescinde de ambas as coisas, e os que não são poetas, mas gostam de poesia, desafogam a si mesmos através dos poemas que leem: porque na verdade vos digo que não é o leitor que descobre o seu poeta, mas o poeta que descobre o seu leitor.

Mário Quintana, em Porta giratória

Gertrudes pede um conselho


Sentou-se de modo que seu próprio peso “passasse a ferro” a saia amarrotada. Endireitou os cabelos, a blusa. Agora, só esperar.
Lá fora, tudo muito bom. Podia ver os telhados das casas, as flores vermelhas duma janela, o sol amarelo derramado sobre tudo. Não havia hora melhor que duas da tarde.
Não queria esperar porque ficaria com medo. E assim não daria à doutora a impressão que desejava causar. Não pensar na entrevista, não pensar. Inventar depressa uma história, contar até mil, recordar-se das coisas boas. O pior é que só se lembrava da carta que mandara. “Minha senhora, eu tenho dezessete anos e queria...” Idiota, absolutamente idiota. “Estou cansada de andar de um lado para outro. Às vezes não consigo dormir, mesmo porque minhas irmãs dormem no mesmo quarto e se remexem muito. Mas não consigo dormir porque fico pensando nas coisas. Já resolvi me suicidar, mas não quero mais. A senhora não pode me ajudar? Gertrudes.”
E as outras cartas? “Não gosto de nada, sou como os poetas...” Oh, não pensar. Que vergonha! Até que a doutora terminou por lhe escrever, chamando-a para o escritório. Mas, afinal, o que iria dizer? Tudo tão vago. E a doutora riria... Não, não, a doutora, encarregada de menores abandonados, escrevendo conselhos nas revistas, tinha que entender, mesmo sem ela falar.
Hoje ia acontecer alguma coisa! Não pensar 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7... Não servia. Era uma vez um rapaz cego que... Cego por quê? Não, ele não era cego. Tinha até a vista muito boa. Agora é que sabia por que Deus, podendo tanto, inventava pessoas aleijadas, cegas, ruins. Só por distração. Enquanto esperava? Não, Deus nunca precisa esperar. Que é que ele faz então? Está aí, mesmo que ainda acreditasse n’Ele (eu não acreditava em Deus, tomava banho bem em cima do almoço, não usava o uniforme do colégio e resolvera fumar), mesmo que ainda acreditasse em fantasmas, não poderia achar graça na eternidade. Se fosse Deus até já teria esquecido de como principiara o mundo. Já há tanto tempo e com séculos à frente... A eternidade não começa, não termina. Sentia uma pequena vertigem, quando procurava imaginá-la, e Deus, sempre em toda a parte, invisível, sem forma definida. Riu, lembrando-se de quando bebia avidamente as histórias que lhe contavam. Tornara-se bem livre... Mas isso não significava estar contente. E era exatamente o que a doutora ia explicar.
De fato, nos últimos tempos, Tuda não passava nada bem. Ora sentia uma inquietação sem nome, ora uma calma exagerada e repentina. Tinha frequentemente vontade de chorar, e o que em geral se reduzia à vontade apenas, como se a crise se completasse no desejo. Uns dias, cheia de tédio, enervada e triste. Outros, lânguida como uma gata, embriagando-se com os menores acontecimentos. Uma folha caindo, um grito de criança, e pensava: mais um momento e não suportarei tanta felicidade. E realmente não a suportava, embora não soubesse propriamente em que consistia essa felicidade. Caía num choro abafado, aliviando-se, com a impressão confusa de que se entregava, a não sei quem e não sei de que forma.
Às lágrimas sucedia-se, acompanhando os olhos inchados, um estado de suave convalescença, de aquiescência a tudo. Surpreendia a todos com sua doçura e transparência e, ainda mais, forçava uma leveza de passarinho. Dava esmolas a todos os pobres, com a graça de quem joga flores.
De outras vezes, enchia-se de força. Seu olhar tornava-se duro como aço, áspero como espinhos. Sentia que “podia”. Fora feita para “libertar”.
Libertar” era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores. Como fora amena há dias, quando se destinava a outro papel? Outro, qual? Tudo era confuso e só se exprimia bem na palavra “liberdade” e nos passos pesados e firmes, no rosto fechado que adotava. À noite não dormia até que os galos longínquos começassem a cantar. Não pensava, propriamente. Sonhava acordada. Imaginava um futuro em que, audaciosa e fria, conduziria uma multidão de homens e mulheres, cheios de fé quase a adorá-la. Depois, pelo meio da noite, deslizava para uma meia inconsciência, onde tudo era bom, a multidão já conduzida, uma ausência de aulas, um quarto só seu, muitos homens a amá-la. Acordava amarga, notando com alegria reprimida que não se interessava pelo bolo que as irmãs devoravam animalmente, com irritante despreocupação.
Vivia então os seus dias gloriosos. E chegavam ao auge com algum pensamento que a exaltava e a mergulhava em misticismo ardente: “Entrar para um convento! Salvar os pobres, ser enfermeira!” Imaginava-se já vestindo o hábito negro, o rosto pálido, os olhos piedosos e humildes. As mãos, aquelas mãos implacavelmente coradas e largas, emergindo, brancas e finas, das longas mangas. Ou então, com a touca alva, olheiras cavadas pelas noites não dormidas. Entregando ao médico, silenciosa e rapidamente, os ferros de operar. Ele a miraria com admiração, simpatia mesmo, e quem sabe? Amor até.
Mas, impossível ser grande num ambiente como o seu. Interrompiam-na com as observações mais banais: “Já tomou banho, Tuda?” Ou, senão, o olhar das pessoas de casa. Um olhar simples, distraído, completamente alheio ao nobre fogo que ardia dentro dela. Quem poderia persistir, pensava acabrunhada, junto de tanta vulgaridade?
E além disso, por que não “aconteciam coisas”? Tragédias, belas tragédias...
Até que descobriu a doutora. E antes de conhecê-la, já lhe pertencia. De noite, mantinha longas conversas imaginárias com a desconhecida. De dia, escrevia-lhe cartas. Até que foi chamada: viam afinal que ela era alguém, uma extraordinária, uma incompreendida!
Até o dia marcado para a entrevista, Tuda não se sentiu. Viveu numa atmosfera de febre e de ansiedade. Uma aventura. Compreendem bem? Uma aventura.
Não tardaria a entrar no escritório. Vai ser assim: ela é alta, tem os cabelos curtos, olhos fortes, um busto grande. Um pouquinho gorda. Mas ao mesmo tempo parecida com Diana, a Caçadora, da sala de visitas.
Ela sorri. Eu fico séria.
Boa-tarde.
Boa-tarde, minha filha (não seria melhor: boa-tarde, irmã? Não, não se usa).
Vim aqui por excesso de audácia, confiando na bondade e compreensão da senhora. Tenho dezessete anos e acho que já posso começar a viver.
Duvidava que tivesse tanta coragem. E mesmo o que a doutora tinha, afinal, a ver com ela? Mas, não. Aconteceria alguma coisa. Dar-lhe-ia trabalho, por exemplo. Poderia mandá-la viajar para colher dados sobre... sobre a mortalidade infantil, suponhamos, ou sobre os salários dos homens do campo. Ou poderia dizer:
Gertrudes, você terá papel muito maior na vida. Você fará...
O quê? Afinal o que é grande? Tudo acaba... Não sei, a doutora vai falar.
De repente... O rapazinho coçou a orelha e disse, o ar velho que as pessoas teimavam em emprestar aos fatos excitantes e novos:
Pode entrar...
Tuda atravessou a sala, sem respirar. E encontrou-se diante da doutora.
Estava sentada junto à mesa, rodeada de livros e papéis. Uma estranha, séria, com uma vida própria, que Tuda não conhecia.
Fingiu arrumar a mesa.
Então? – disse depois. – Uma menina chamada Gertrudes... – Riu. – Por que é que se lembrou de vir a mim, procurar trabalho? – iniciou, com o tato que lhe valera o lugar de conselheira na revista.
Miúda, cabelos pretos enrolados em dois cachos sobre a nuca. O batom pintado um pouco para fora dos lábios, numa tentativa de sensualidade. O rosto calmo, as mãos irrequietas. Tuda sentiu vontade de fugir.


Há muitos anos saíra de casa.
A doutora falava, falava, a voz levemente rouca, o olhar vago. Sobre diversos assuntos. Os últimos filmes, as jovens modernas, sem orientação, más leituras, sei lá, muitas coisas. Tuda também falava. Deixara de palpitar e a sala, a doutora tomavam aos poucos uma disposição mais compreensível. Tuda contou alguns segredos, sem importância. Sua mãe, por exemplo, não gostava que ela saísse à noite, alegando o sereno. Precisava operar a garganta e vivia sempre resfriada. Mas o pai dizia que há males que vêm para o bem e que as amígdalas eram uma defesa do organismo. E também, o que a natureza criara tinha sua função.
A doutora brincava com o lápis.
Bem, agora já conheço você mais ou menos. Na sua carta falou num apelido? Tudes, Tuda…
Tuda corou. Então a estranha falou-lhe das cartas. Não podia ouvir bem porque ficou tonta e o coração achou de lhe pulsar exatamente nos ouvidos. “Idade difícil... todos são... quando menos se espera...”
Essa inquietação, tudo que você sente é mais ou menos normal, vai passar. Você é inteligente e vai compreender o que vou lhe explicar. A puberdade traz distúrbios e...
Não, doutora, que humilhação. Ela já era grande demais para essas coisas, o que sentia era mais belo e mesmo...
Isto vai passar. Você não precisa trabalhar, nem fazer nada de extraordinário. Se quiser – ia usar seu velho “truc” e sorriu –, se quiser arranje um namorado. Então...
Ela era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!
A doutora ainda falava, Tuda continuava muda, obstinadamente muda. Uma nuvem tapou o sol e o escritório ficou de repente sombrio e úmido. Daí a um instante o floco de poeiras recomeçou a brilhar e a mover-se.
A conselheira impacientou-se ligeiramente. Estava cansada. Trabalhara tanto...
Então? Mais alguma coisa? Fale, fale sem medo...
Tuda pensava confusamente: vim perguntar o que faço de mim. Mas não sabia resumir seu estado nessa pergunta. Além disso, receava cometer uma excentricidade e ainda não se habituara consigo mesma.
A doutora inclinara a cabeça para um lado e desenhava pequenos riscos simétricos sobre uma folha de papel. Depois rodeava os riscos com um círculo um pouco torto. Como sempre, não conseguia manter a mesma atitude por muito tempo. Começava a fraquejar e a deixar-se invadir pelos próprios pensamentos. Notou-o, irritou-se e transferiu a irritação para Tuda: “Tanta gente morrendo, tantas ‘crianças sem lar’, tantos problemas irresolúveis (seus problemas) e aquela guria, com família, boa vida burguesa, a dar-se importância.” Vagamente observou que isso contrariava sua tese individualista: “Cada pessoa é um mundo, cada pessoa tem sua própria chave e a dos outros nada resolve; só se olha para o mundo alheio por distração, por interesse, por qualquer outro sentimento que sobrenada e que não é o vital; o ‘mal de muitos’ é consolo, mas não é solução.” Justamente porque observou que se contradizia e porque lhe ocorreu a frase do colega sobre a inconsistência das mulheres e porque achou-a injusta, ainda mais se impacientou, querendo, com raiva de si mesma, como para punir-se, afundar na contradição. Um minuto ainda e diria à menina: por que não visita o cemitério? Vagamente porém notou-se as unhas sujas de Tuda e refletiu: é muito turbulenta ainda para tirar lições do cemitério. E além disso lembrava-se do seu próprio tempo de unhas sujas e imaginou que desprezo não teria por alguém que então lhe falasse do cemitério como de uma realidade.
De repente, Tuda sentiu que a doutora não gostava dela. E, assim, junto daquela mulher que nada tinha a ver com todas as coisas familiares, naquela sala que nunca vira e que subitamente era “um lugar”, pensou estar sonhando. Que viera fazer ali? Perguntou-se assustada. Tudo perdia a realidade em relação à sua mãe, à casa, ao último almoço, tão pacato, e não só a confissão como o inexplicável motivo que a conduzira à doutora, pareceram-lhe mentira, uma monstruosa mentira, que ela inventara gratuitamente, só para se divertir... A prova é que ninguém dela se utilizava, como de uma coisa que existe. Diziam: “o vestido de Tuda, as aulas de Tuda, as amígdalas de Tuda...”, mas não diziam: “a infelicidade de Tuda...” Caminhara tão depressa com essa mentira! Agora estava perdida, não podia voltar atrás! Roubara um doce e não queria comê-lo... Mas a doutora a obrigaria a mastigá-lo, a engoli-lo, como castigo... Ah, escapulir do escritório e andar de novo sozinha, sem a compreensão inútil e humilhante da doutora.
Olhe, Tuda, o que me agradaria dizer-lhe é que você um dia terá o que agora procura tão confusamente. É uma espécie de calma que vem do conhecimento de si própria e dos outros. Mas não se pode apressar a vinda desse estado. Há coisas que só se aprende quando ninguém as ensina. E com a vida é assim. Mesmo há mais beleza em descobri-la sozinha, apesar do sofrimento. – A doutora sentiu um súbito cansaço, tinha a impressão de que a ruga nº 3, do nariz aos lábios, afundara. Aquela menina fazia-lhe mal e ela queria estar de novo só. – Olhe, tenho certeza de que você ainda terá muita felicidade. Os sensíveis são simultaneamente mais infelizes e felizes que outros. Mas dê tempo ao tempo! – Como era vulgar com facilidade, refletiu sem amargura. – Vá vivendo...
Sorriu. E de repente Tuda sentiu aquele rosto entrando bem na sua alma. Não era da boca, nem dos olhos que vinha aquele ar... ar divino. Era como uma sombra terrivelmente simpática, vacilando sobre a doutora. E, no mesmo instante, Tuda soube que não mentira, ah, não! Uma alegria, uma vontade de chorar. Ah, ajoelhar-se diante da doutora, esconder o rosto no seu regaço, gritar: é isso que eu tenho, é isso! Só lágrimas!
A doutora já não sorria. Pensava. Olhando-a, assim, de perfil, Tuda já não a entendia mais. De novo, uma estranha. Buscou-a depressa, à outra, a divina:
Por que a senhora disse: “o que me agradaria dizer-lhe...”? Então não é a verdade?
A menina era mais perspicaz do que pensara. Não, não era a verdade. A doutora sabia que se pode passar a vida inteira buscando qualquer coisa atrás da neblina, sabia também da perplexidade que traz o conhecimento de si própria e dos outros. Sabia que a beleza de descobrir a vida é pequena para quem procura principalmente a beleza nas coisas. Oh, sabia muito. Mas estava cansada do duelo. O escritório novamente vazio, afundar no divã, fechar as janelas – a repousante escuridão. Pois se aquele era o seu refúgio, apenas dela, onde até ele, com sua enervante e calma aceitação da felicidade, era um intruso!
Olharam-se e Tuda, decepcionada, sentiu que estava em posição superior à da doutora, era mais forte do que ela.
A conselheira não notara que já se havia denunciado com os olhos e emendou, pensativa, a voz arrastada:
Eu disse isso? Acho que não... (Que deseja afinal essa guria? Quem sou eu para dar conselhos? Por que é que ela não telefonou? Não, melhor que não telefone, estou cansada. Oh, que me deixem, sobretudo isto!)
Novamente tudo flutuando no escritório. Não havia mais o que dizer. Tuda levantou-se, com os olhos úmidos.
Espere – a doutora pareceu meditar um instante. – Olhe, vamos fazer um contrato? Você continua estudando, sem preocupar-se muito consigo. E quando completar... digamos... vinte anos, sim, vinte anos, você vem cá... – Animou-se sinceramente: simpatizava com a menina, haveria de ajudá-la, dar-lhe talvez um trabalho que a ocupasse e distraísse, enquanto não passasse o período de desadaptação. Era bem viva, inteligente até. – Aceita? Vamos, Tuda, seja uma boa menina e concorde...
Sim, concordava, concordava! Tudo era de novo possível! Ah, só que não poderia falar, dizer quanto concordava, quanto se entregava à doutora. Porque se falasse, poderia chorar, não queria chorar.
Mas Tuda... – A sombra divina no seu rosto. – Você não precisa chorar... Vamos, prometa que será uma mulherzinha corajosa... – Sim, vou ajudá-la. Mas agora, o divã, isso sim, depressa, mergulhar nele.
Tuda enxugou o rosto com as mãos.
Na rua, tudo era mais fácil, sólido e simples. Caminhara depressa, depressa. Não queria – a desgraça de sempre perceber – lembrar-se do gesto mole e cansado com que a doutora lhe estendera a mão. E mesmo o ligeiro suspiro... Não, não. Que loucura! Mas aos poucos o pensamento instalou-se: fora uma indesejada... Corou.
Entrou numa sorveteria e comprou um sorvete.
Passaram duas mocinhas de uniforme de colégio, conversando e rindo alto. Olharam para Tuda com a animosidade que as pessoas sentem umas pelas outras e que os jovens ainda não disfarçam. Tuda estava sozinha e foi vencida. Pensou, sem ligar o pensamento ao olhar das meninas: que tenho a ver com elas? Quem esteve junto à doutora, falando de coisas misteriosas e profundas? E se elas soubessem da aventura nem entenderiam...
De repente pareceu-lhe que depois de ter vivido aquela tarde, não poderia continuar a mesma, estudando, indo ao cinema, passeando com as amiguinhas, simplesmente... Distanciara-se de todos, mesmo da antiga Tuda... Alguma coisa se desenrolara nela, a sua própria personalidade que se afirmara com a certeza de que no mundo havia correspondência para ela... Surpreendera-se: podia-se então falar no... “naquilo” como de algo palpável, na sua insatisfação que ela escondera com vergonha e medo... Agora... Alguém tocara levemente nas névoas misteriosas de que vivia há algum tempo e de repente elas se solidificavam, formavam um bloco, existiam. Faltara-lhe até o momento quem a reconhecesse, para ela própria reconhecer-se... Transformava-se tudo! Como? Não sabia...
Continuou a andar, os olhos muito abertos, cada vez mais lúcida. Pensava: antes era daquelas que existem, que se movem, casam, têm filhos simplesmente. E d’agora em diante um dos elementos constantes de sua vida seria Tuda, consciente, vigilante, sempre presente...
Seu destino modificara-se, parecia-lhe. Mas como? Oh, não conseguir pensar com clareza e não poderem as palavras conhecidas exprimir o que se sente! Um pouco orgulhosa, deslumbrada, meio decepcionada, repetia-se: vou ter outra vida, diferente da de Amélia, mamãe, papai... Procurava ter uma visão de seu novo futuro e apenas conseguia ver-se andando sozinha sobre largas planícies desconhecidas, os passos resolutos, os olhos dolorosos, caminhando, caminhando... Para onde?
Já não se apressava para casa. Possuía um segredo do qual as pessoas nunca poderiam partilhar. E ela própria, pensou, só participaria da vida comum com algumas partículas de si mesma, algumas apenas, mas não com a nova Tuda, a Tuda de hoje... Estaria sempre à margem?... – Revelações sucediam-se rápidas, acendendo repentinas e iluminando-a como pequenos raios. – Isolada...
Sentiu-se subitamente deprimida, sem apoio. Tornara-se de um momento para outro sozinha... Vacilou, desorientada. Onde está mamãe? Não, mamãe não. Ah, voltar para o escritório, procurar o ar divino da doutora, pedir-lhe que ela não a abandonasse, porque tinha medo, medo!
Mas a doutora vivia uma vida própria e – outra revelação – ninguém saía inteiramente para fora de si para ajudar... “Só” volte aos vinte anos... Não empresto o vestido, não empresto coisa alguma, você vive pedindo... E nem era possível ser compreendida! “A puberdade traz distúrbios...” “Essa menina não está passando bem, João, aposto como as amígdalas...”
Oh, perdão, senhorita... Machuquei-a?
Quase perdeu o equilíbrio com o choque. Ficou um instante atordoada.
Não enxerga? – O homem tinha dentes brancos, pontudos. – Não há de que... Não foi nada...
O rapaz se afastou, com ligeiro sorriso no rosto redondo.
Abrindo os olhos, Tuda percebeu a rua cheia de sol. A brisa forte arrepiou-a. Que sorriso engraçado, o do homem. Lambeu o finzinho do sorvete e como ninguém reparava comeu a casquinha (os homens de mãos sujas é que fazem as casquinhas, Tuda). Franziu as sobrancelhas. Diabo! (Não diga diabo, Tuda). Diria o que quisesse, comeria todas as casquinhas do mundo, faria o que bem entendesse.
Lembrou-se subitamente: a doutora... Não... Não. Nem aos vinte anos... Aos vinte anos seria uma mulher caminhando sobre a planície desconhecida... Uma mulher! O poder oculto desta palavra. Porque afinal, pensou, ela... ela existia! Acompanhou o pensamento a sensação de que tinha um corpo seu, o corpo que o homem olhara, uma alma sua, a alma que a doutora tocara. Apertou os lábios com firmeza, cheia de súbita violência:
Eu lá preciso de doutora! Lá preciso de ninguém!
Continuou a andar, apressada, palpitante, feroz de alegria.

Clarice Lispector, em Todos os contos

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Marcel Powell e Mestrinho | Lamento Sertanejo

Mas o que é espírito?

O ser humano é espírito. Mas o que é espírito? Espírito é o si-mesmo. Mas o que é o si-mesmo? O si-mesmo é uma relação que se relaciona consigo mesma, ou consiste no seguinte: que na relação a relação se relacione consigo mesma; o si- mesmo não é a relação, mas a relação se relacionando consigo mesma. O ser humano é uma síntese de infinitude e de finitude, do temporal e do eterno, de liberdade e de necessidade, em suma, uma síntese. Uma síntese é uma relação entre dois. Assim considerado, o ser humano ainda não é um si-mesmo.

Soren Kierkegaard, em 150 frases de Soren Kierkegaard

[Para Whit Burnett]


27 de abril de 1947

Obrigado pelo bilhete.
Acho que eu não conseguiria fazer um romance – não tenho o ímpeto, se bem que já pensei a respeito, e talvez um dia eu tente. Factótum abençoado seria o título, e seria sobre o trabalhador de classe baixa, sobre fábricas e cidades e coragem e feiura e bebedeira. Contudo, acho que, se eu o escrevesse agora, não prestaria muito. Eu precisaria ficar devidamente exaltado. Além disso, tenho tantas preocupações pessoais no momento que não tenho a menor condição de olhar um espelho, muito menos tocar um livro. Fico, no entanto, surpreso e satisfeito com o seu interesse.
Não tenho quaisquer outros esquetes na caneta, sem contos, no momento. A Matrix pegou o único que eu tinha desse jeito.
O mundo manteve o pequeno Charles praticamente na ponta do chicote nos últimos tempos, e não sobrou muito do escritor, Whit. Então receber notícias suas foi adorável pra caramba.

Charles Bukowski, em Escrever para não enlouquecer

Anistia?!, por Laerte

Interpretação dos sonhos

Já que não entramos em um acordo sobre os métodos virgilianos, utilizemos como meio de adivinhação um que é bom, antigo e autêntico — disse Pantagruel. Refiro-me à interpretação dos sonhos, sempre que se sonhe conforme as condições que estabelecem Hipócrates, Platão, Plotino, Jâmblico, Sinésio, Aristóteles, Xenofontes, Galeno, Plutarco, Artemidoro, Daldiano, Herifilo, Quinto Calaber, Teócrito, Plínio, Ateneu e outros, os quais sustentam que a alma é capaz de prever acontecimentos futuros. Quando o corpo repousa em plena digestão e não necessita de nada até o momento de despertar, nossa alma se eleva até sua verdadeira pátria, que é o céu. Ali recebe a participação de sua primitiva origem divina e na contemplação daquela infinita e intelectual esfera (cujo centro se encontra em algum lugar do universo, ponto central que reside em Deus segundo a doutrina de Hermes Trismegisto, e a qual nada altera e na qual nada ocorre, pois todos os tempos se desenvolvem no presente) capta não apenas os acontecimentos das camadas inferiores, mas também os futuros, transmitindo-os ao seu corpo através de seus órgãos sensíveis. Dada à fragilidade e à imperfeição do corpo que os captou, não pode transmiti-los fielmente. Cabe aos intérpretes e vaticinadores de sonhos, os gregos, aprofundar-se em tão importante matéria. Heráclito dizia que a interpretação dos sonhos não é para ficar oculta, pois nos dá o significado e normas gerais das coisas do futuro, para nossa sorte ou desgraça. Anfiaraus estabeleceu que não se deve beber durante três dias nem comer durante um antes dos sonhos. Estômago cheio, má espiritualidade.
Todo o sonho que termina em sobressalto significa algo ruim e é de mau presságio. Este algo ruim quer dizer alguma doença latente. O mau presságio para a alma, pois alguma desgraça se avizinha. Lembrai-vos dos sonhos e do despertar de Hécuba e de Eurídice. Eneias sonhou que falava com Heitor morto; acordou sobressaltado e naquela noite Troia ardeu e foi saqueada.

François Rabelais, em Pantagruel, II

Primeira Parte – Harry Morgan (Primavera)


[…]

A essa altura, já havíamos ultrapassado o lugar onde as sumacas descarregavam diante de Cabanas e os esquifes ancorados pescavam palometas no fundo rochoso ao lado de El Morro. Conduzi o barco para fora, onde a corrente do Golfo traçava uma linha escura. Eddy colocou na água dois grandes chamarizes e o negro já tinha iscas em três varas.
A corrente não estava muito profunda e, quando nos aproximamos de sua orla, pudemos vê-la tornando-se quase vermelha, formando redemoinhos aqui e ali. Havia uma ligeira brisa do leste e nosso barco assustou numerosos peixes-voadores, daqueles grandes, com asas negras, que, quando levantam voo, parecem com os que estão na fotografia de Lindbergh cruzando o Atlântico.
Esses peixes-voadores grandes são o melhor indício que poderíamos encontrar. Até onde se podia ver, estendia-se aquele sargaço amarelo pálido, em pequenos blocos, o que significava que a corrente principal se movia regularmente, e havia pássaros revoando à nossa frente sobre um cardume de filhotes de atum. Era possível vê-los saltando, nenhum deles pesando mais do que um quilo.
Pode lançar o anzol assim que quiser — avisei a Johnson.
Johnson afivelou o cinturão de segurança e os arneses dos ombros, lançando então a grande vara com o resistente molinete Hardy com seiscentas jardas de fio trinta e seis. Olhei para trás e sua isca estava girando bem, deslizando pouco abaixo da superfície. Os dois chamarizes mergulhavam e saltavam. Estávamos navegando com a velocidade conveniente e embiquei para a corrente.
Conserve o cabo da vara no soquete da cadeira — recomendei a Johnson. — Assim a vara não vai ficar tão pesada nas suas mãos. Não deixe a linha afundar muito e conserve a trava solta, para poder dar corda quando ele morder. Se ela estiver presa, o bicho vai arrastar você para a água.
Todo dia tinha de repetir os mesmos conselhos, mas isso não me incomodava muito. De cada cinquenta pessoas que a gente leva, apenas uma sabe pescar direito. E os que sabem pescar fazem besteira pelo menos na metade do tempo e ficam querendo usar uma linha que não é forte o bastante para resistir a um peixe de bom tamanho.
Que tal o tempo? — perguntou-me.
Não podia ser melhor — respondi, pois estava realmente fazendo um belo dia.
Passei a roda do leme ao negro, dizendo para ele conduzir o barco ao longo da borda da corrente, sempre para leste, e voltei para onde Johnson estava sentado, observando suas iscas saltarem sobre as ondas.
Quer que lance outra vara? — perguntei.
Acho que não — respondeu. — Quero fisgar meu peixe, lutar com ele e embarcá-lo sozinho.
Certo — disse eu. — Mas não quer que o Eddy lance uma vara e a entregue ao senhor, se algum peixe morder, para que possa fisgá-lo?
Não — insistiu. — Prefiro que haja apenas uma vara de cada vez.
Muito bem.
O negro ainda estava levando o barco para fora. Olhei na direção dele e percebi que ele avistara um cardume de peixes-voadores saltando bem à nossa frente, corrente acima. Olhando para trás, pude ver Havana, resplandecente sob o sol da manhã. Um navio estava saindo da baía e passando ao lado do morro.
Acho que hoje vai ser o seu dia, senhor Johnson — disse-lhe eu.
Já não é sem tempo — respondeu. — Há quantos dias estamos pescando?
Faz três semanas hoje.
É muito tempo para nada.
São uns peixes engraçados — disse eu. — Aparecem quando bem entendem! Mas, quando chegam, vem um bocado deles. E estão sempre chegando. Se não vierem agora, não vêm mais. O tempo é o ideal, a lua também. A corrente está boa e vamos ter uma boa brisa.
Não havia alguns daqueles pequenos, quando viemos na primeira vez?
Havia — respondi. — É como lhe disse. Quando os pequenos dão o fora, é sinal de que os grandes estão chegando.
Vocês, capitães de barcos de pesca, têm sempre esse papo furado. Ou está muito cedo, ou tarde demais, ou então o vento não está ajudando, ou é a lua errada. Mas o dinheiro da gente, que é bom, vocês cobram da mesma forma.
Bem — repliquei —, o diabo dessa coisa é que geralmente é mesmo muito cedo, ou então tarde demais, e na maior parte do tempo o vento está contra nós. Daí, quando se consegue um dia perfeito, a gente está ancorado, sem um cliente.
Mas, afinal, hoje é ou não é um bom dia para pescar?
Bem, para mim, já foi um dia agitado até demais. Mas estou apostando que o senhor não vai ter nada do que se queixar.
Espero que sim — disse ele.
Ajeitamos tudo para pescar de corrico. Eddy foi para a proa e deitou-se. Fiquei em pé, observando, esperando avistar uma nadadeira. A todo momento, o negro adormecia, mas eu o estava vigiando também. Aposto que suas noites eram bem animadas.
Não se importa de pegar uma garrafa de cerveja para mim, capitão? — perguntou-me Johnson.
Pois não, senhor — respondi, enfiando a mão no gelo para pegar para ele uma bem gelada.
Não quer tomar uma? — perguntou-me.
Não, senhor — respondi. — Só à noite.
Abri a garrafa e a estava passando a Johnson, quando vi um grande peixe castanho, com uma espada mais comprida do que um braço, pôr a cabeça e as costas fora d’água, avançando para a cavalinha. Parecia ter a espessura de uma tora de madeira.
Afrouxe a linha! — gritei.
Ele não a mordeu ainda — respondeu Johnson.
Aguente firme, então.
O bicho subira rapidamente do fundo e errara o bote. Eu sabia que voltaria para agarrar a isca.
Prepare-se para afrouxar a linha no momento em que ele morder.
Então, eu o vi vindo por baixo d’água. Dava para enxergar suas barbatanas, largas como asas de cor púrpura e as listras avermelhadas no corpo castanho. Ele subiu como um submarino e sua enorme nadadeira dorsal emergiu, começando a cortar a água como um periscópio. Avançou diretamente por trás da isca e sua espada também emergiu, oscilando, completamente fora d’água.
Deixe a isca entrar toda na boca dele — disse eu. Johnson destravou o carretel do molinete, que começou a zunir, e o velho marlim voltou-se e mergulhou. Pude ver todo o seu corpo brilhando como prata resplandecente quando se virou de costas e rumou rapidamente em direção à praia. — Prenda um pouco a trava — disse eu. — Mas não muito.
Johnson apertou a trava.
Não muito — repeti.
Vi a linha inclinar-se e acrescentei:
Abaixe um pouco a vara e dê um tranco firme nele. Precisa dar um tranco! Já, já ele vai pular fora d’água.
Johnson apertou de uma vez a trava e agarrou a vara com força, puxando-a para trás.
Dê um puxão, agora! — disse eu. — Uma meia dúzia de puxões para o anzol ficar bem preso.
Ele deu um puxão e tanto, e repetiu o golpe algumas vezes, ferindo o peixe. Então a vara vergou-se e o molinete começou a zunir. O enorme peixe apareceu, espetacularmente, num longo pulo, brilhando como prata ao sol e caindo sobre a água como um cavalo que tivesse sido lançado de um penhasco.
Solte a trava — disse eu.
Fugiu! — exclamou Johnson.
Fugiu, uma ova! — respondi. — Solte depressa a catraca.
Pude distinguir a curva da linha e, na vez seguinte que o marlim saltou, estava ao lado da popa, dessa vez rumando para mar alto. Depois disso saltou, e saltou novamente, caindo de lado numa explosão de espuma. Pude ver que estava fisgado do lado da boca. As listras escarlates mostravam-se vivas em seu corpo. Era um belo peixe prateado, tão grosso quanto uma tora de madeira.
Desta vez fugiu mesmo — disse Johnson. — A linha estava frouxa.
Gire o molinete — recomendei. — Ele está bem fisgado. — Voltando-me para o negro, gritei: — Faça o barco avançar a toda!
Dito e feito! Uma, duas vezes, o monstro saltou emergindo rijo como um poste, projetando todo o seu comprimento em nossa direção, e lançando água para o alto cada vez que caía sobre o mar. A linha esticou-se de novo e percebi que o marlim se dirigia para terra, preparando uma meia-volta.
É agora que ele vai disparar — disse eu. — Se estiver bem fisgado, a gente o persegue com o barco. Fique com a trava solta. Temos linha de sobra.
O marlim rumou para noroeste, como fazem todos os grandes peixes. Meu irmão, como corcoveava! Começou a dar aqueles grandes saltos, fazendo voltas no ar, e cada vez que caía sobre a água era como uma lancha voando sobre o mar. Nós o seguimos, perseguindo-o de perto depois de eu ter feito a volta. Fiquei no leme e continuava gritando para o Johnson conservar sua trava solta e dar linha depressa.
De repente, vi sua vara dar um tranco seco e a linha ficar frouxa. Só quem conhecesse bem a coisa perceberia que a linha estava solta, já que a sua barriga mergulhada na água pesava um bocado. Mas eu sabia muito bem o que tinha acontecido.
O senhor o perdeu — avisei a Johnson.
O peixe ainda estava saltando e continuou a saltar até que sumiu de vista. Era de fato um belo peixe.
Ainda posso senti-lo puxando — disse Johnson.
É só o peso da linha.
Mal posso enrolar a linha. Talvez ele esteja morto.
Morto? — exclamei. — Peixe morto não pula.
Dava para vê-lo a um quilômetro de distância do barco, ainda lançando jatos de água.
Examinei a catraca. Johnson a havia travado de vez.
Não dava para puxar linha nenhuma, e só podia mesmo se partir.
Não disse para manter a trava solta?
Mas ele continuava a puxar a linha.
E daí?
Daí, eu quis detê-lo.
Escute — disse a ele. — Se a gente não dá linha quando ele começa a corcovear daquele jeito, o que acontece é que a linha arrebenta. Não há linha que o segure. Quando um bicho desses puxa, o que se tem a fazer é dar-lhe linha. E a gente tem de manter a trava solta. Nem os pescadores profissionais conseguem manter esses peixes presos numa situação dessas, e mesmo usando uma linha de arpão. O que a gente tem de fazer é usar o barco para perseguir o bicho, para ele não puxar a linha toda, quando tentam nadar em disparada. Depois que ele se cansa, então a gente pode apertar a trava e tentar puxar a linha de volta.
Quer dizer que, se a linha não tivesse se partido, eu o teria apanhado?
É, você teve uma boa chance.
E ele não ia aguentar muito tempo mais, ia?
Esses bichos são cheios de truques! Somente depois de ter dado aquela arrancada é que a luta ia começar.
Bem, vamos sair para outra — disse Johnson.
Vamos, mas primeiro o senhor vai ter de enrolar aquela linha — respondi.
Havíamos fisgado o peixe e o havíamos perdido sem acordar o Eddy. Agora o velho Eddy vinha voltando para a popa.
Que foi que aconteceu? — perguntou.
Tempos atrás, Eddy era um ótimo homem para se ter a bordo, quando ainda não era um bêbado. Agora não servia mais para nada. Fiquei olhando para ele, parado ali, um sujeito alto e de faces encovadas, com a boca frouxa e remelas esbranquiçadas no canto dos olhos. Seu cabelo parecia todo desbotado ao sol. Sabia que ele tinha acordado morto de vontade de tomar um gole.
É melhor você beber uma garrafa de cerveja — disse eu.
Eddy apanhou uma garrafa e bebeu-a.
Bem, senhor Johnson — disse ele. — Acho melhor terminar minha soneca. Muito obrigado pela cerveja, senhor.
Era mesmo o velho Eddy!… O raio do peixe não importava nem um pouco para ele.
Bem, fisgamos outro, mais ou menos ao meio-dia, e ele conseguiu fugir também. Pudemos ver o anzol voar a dez metros de altura quando o peixe o lançou fora.
O que eu fiz de errado desta vez? — perguntou Johnson.
Nada. Ele apenas se livrou do anzol.
Senhor Johnson — disse Eddy, que acordara para tomar outra garrafa de cerveja. — Senhor Johnson, o senhor apenas não teve sorte. Quem sabe tem sorte com mulheres? Que tal sairmos juntos esta noite?
Em seguida, voltou a deitar-se de novo.
[…]

Ernest Hemingway, em Ter e não ter