Carvajal
As
luzes do amanhecer dão forma e rosto às sombras penduradas nos
faróis da praça. Algum madrugador, espantado, as reconhece: dois
conquistadores de primeira hora, daqueles que capturaram o Inca
Atahualpa em Catamarca, balançam com a língua de fora e os olhos
arregalados.
Soar
de tambores, estrépito de cavalos: a cidade desperta de um salto.
Grita o pregoeiro com toda força e ao seu lado Francisco de Carvajal
dita e escuta. O pregoeiro anuncia que todos os senhores principais
de Lima serão enforcados como esses dois, e não ficará pedra sobre
pedra, se o cabildo não aceitar como governador Gonzalo Pizarro. O
general Carvajal, comandante de campo das tropas rebeldes, dá de
prazo até o meio-dia.
– Carvajal!
Antes
que se apague o eco, já os auditores da Real Audiência e os
notáveis de Lima vestiram alguma roupa e meio desabotoados chegaram
correndo até o palácio e estão assinando, sem discussão, a ata
que reconhece Gonzalo Pizarro como autoridade única e absoluta.
Falta
apenas a assinatura do advogado Zárate, que acaricia o próprio
pescoço e duvida enquanto os demais esperam, atordoados,
tremelicantes, escutando ou pensando escutar e resfolegar dos cavalos
e a maldições dos soldados que tomam campo, com as rédeas curtas,
ansiosos por desembestar.
– Depressa!
– suplicam.
Zárate
pensa que deixa um bom dote à sua filha casadeira, Teresa, e que
suas quantiosas oferendas à Igreja pagaram de sobra outra vida mais
serena que esta.
– Que
espera vosmecê?
– Curta
é a paciência de Carvajal!
Carvajal:
mais de trinta anos de guerras na Europa, dez na América. Bateu-se
em Ravena e em Pávia. Esteve no saqueio de Roma. Lutou ao lado de
Cortez no México e no Peru junto a Francisco Pizarro. Seis vezes
atravessou a cordilheira.
– O
demônio dos Andes!
No
meio da batalha, sabe-se, o gigante joga fora o elmo e a couraça e
oferece o peito. Come e dorme em cima de seu cavalo.
– Calma,
senhores, calma!
– Correrá
sangue de inocentes!
– Não
há tempo para perder!
A
sombra da forca se fecha sobre os recém-comprados títulos de
nobreza.
– Assinai,
senhor! Evitemos ao Peru novas tragédias!
O
advogado Zárate molha a pluma de ganso, desenha uma cruz e embaixo,
antes de assinar, escreve: Juro por Deus e por esta Cruz e pelas
palavras dos Santos Evangelhos, que assino por três motivos: por
modo, por medo e por medo.
Eduardo Galeano, em Os Nascimentos
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