segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Os Nascimentos | 1544 – Lima

Carvajal

As luzes do amanhecer dão forma e rosto às sombras penduradas nos faróis da praça. Algum madrugador, espantado, as reconhece: dois conquistadores de primeira hora, daqueles que capturaram o Inca Atahualpa em Catamarca, balançam com a língua de fora e os olhos arregalados.
Soar de tambores, estrépito de cavalos: a cidade desperta de um salto. Grita o pregoeiro com toda força e ao seu lado Francisco de Carvajal dita e escuta. O pregoeiro anuncia que todos os senhores principais de Lima serão enforcados como esses dois, e não ficará pedra sobre pedra, se o cabildo não aceitar como governador Gonzalo Pizarro. O general Carvajal, comandante de campo das tropas rebeldes, dá de prazo até o meio-dia.
Carvajal!
Antes que se apague o eco, já os auditores da Real Audiência e os notáveis de Lima vestiram alguma roupa e meio desabotoados chegaram correndo até o palácio e estão assinando, sem discussão, a ata que reconhece Gonzalo Pizarro como autoridade única e absoluta.
Falta apenas a assinatura do advogado Zárate, que acaricia o próprio pescoço e duvida enquanto os demais esperam, atordoados, tremelicantes, escutando ou pensando escutar e resfolegar dos cavalos e a maldições dos soldados que tomam campo, com as rédeas curtas, ansiosos por desembestar.
Depressa! – suplicam.
Zárate pensa que deixa um bom dote à sua filha casadeira, Teresa, e que suas quantiosas oferendas à Igreja pagaram de sobra outra vida mais serena que esta.
Que espera vosmecê?
Curta é a paciência de Carvajal!
Carvajal: mais de trinta anos de guerras na Europa, dez na América. Bateu-se em Ravena e em Pávia. Esteve no saqueio de Roma. Lutou ao lado de Cortez no México e no Peru junto a Francisco Pizarro. Seis vezes atravessou a cordilheira.
O demônio dos Andes!
No meio da batalha, sabe-se, o gigante joga fora o elmo e a couraça e oferece o peito. Come e dorme em cima de seu cavalo.
Calma, senhores, calma!
Correrá sangue de inocentes!
Não há tempo para perder!
A sombra da forca se fecha sobre os recém-comprados títulos de nobreza.
Assinai, senhor! Evitemos ao Peru novas tragédias!
O advogado Zárate molha a pluma de ganso, desenha uma cruz e embaixo, antes de assinar, escreve: Juro por Deus e por esta Cruz e pelas palavras dos Santos Evangelhos, que assino por três motivos: por modo, por medo e por medo.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

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