sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Confissões de um resenhista


Num apartamento conjugado frio, mas abafado, cheio de pontas de cigarro e xícaras de chá pela metade, um homem de roupão surrado está sentado a uma mesa bamba, tentando achar espaço para a máquina de escrever entre as pilhas de papéis empoeirados que a rodeiam. Não pode jogar os papéis fora porque a cesta de lixo já está transbordando, e, além disso, em algum lugar entre as cartas não respondidas e as contas não pagas, é possível que haja um cheque no valor de dois guinéus que ele quase com certeza esqueceu de depositar no banco. Há ainda cartas com endereços que ele tem de passar para a agenda. Perdeu a agenda, e pensar em procurá-la, ou mesmo em procurar qualquer coisa, aflige-o com impulsos suicidas agudos.
É um homem de trinta e cinco anos, mas aparenta cinquenta. É calvo, tem varizes e usa óculos, ou os usaria se o único par não estivesse perdido o tempo todo. Se as coisas estiverem normais com ele, ele está sofrendo de subnutrição, mas se recentemente teve um período de sorte, está sofrendo de ressaca. No momento são onze e meia da manhã, e de acordo com os planos ele deveria ter começado a trabalhar duas horas atrás; mas mesmo que tivesse feito algum esforço sério para começar, teria se frustrado com os quase contínuos toques do telefone, os berros do bebê, o estrépito de uma perfuradora elétrica na rua e o ressoar dos sapatos pesados de seus credores subindo e descendo a escada. A interrupção mais recente foi a segunda entrega de correspondência, que lhe trouxe duas circulares e uma cobrança do imposto de renda impressa em vermelho.
Desnecessário dizer que essa pessoa é um escritor. Poderia ser um poeta, um romancista ou um escritor de roteiros para cinema ou programas de rádio, porque todos os literatos são bastante semelhantes, mas digamos que ele seja um resenhista literário. Meio escondido entre as pilhas de papéis está um opulento pacote contendo cinco volumes mandados por seu editor junto com um bilhete em que sugere que “formam um bom conjunto”. Chegaram há quatro dias, mas por quarenta e oito horas a paralisia moral impediu o resenhista de abrir o pacote. Ontem, num momento de decisão, ele arrancou o barbante e constatou que os cinco volumes eram Palestine at the cross roads [Palestina nas encruzilhadas], Scientific dairy farming [A fazenda de leite científica], A short history of European democracy [Breve história da democracia européia](este com 680 páginas e quase dois quilos), Tribal customs in Portuguese east Africa [Costumes tribais na África portuguesa do leste] e um romance, It’s nicer lying down [Melhor quando deitados], provavelmente incluído por engano. A resenha — de oitocentas palavras, digamos — tem de estar “lá” até o meio-dia de amanhã.
Três desses livros tratam de assuntos que ele desconhece de tal maneira que terá de ler ao menos cinquenta páginas, se quiser evitar algum disparate que o denuncie não só para o autor (que, é claro, conhece todos os hábitos de um resenhista) como até mesmo para o leitor em geral. Às quatro da tarde terá tirado o papel que embrulhava os livros, mas ainda estará sofrendo de uma incapacidade nervosa para abri-los. A perspectiva de precisar lê-los, e até o cheiro do papel, abala-o tanto quanto a perspectiva de comer pudim de arroz frio temperado com óleo de rícino. E no entanto, curiosamente, seu texto chegará à redação na hora. De alguma maneira sempre chega lá na hora. Por volta das nove da noite, sua cabeça estará de certa forma mais clara e até a madrugada ele ficará sentado num cômodo que se torna cada vez mais frio, enquanto a fumaça de cigarro se torna cada vez mais densa, passando habilmente de um livro para outro e pondo cada um de lado com um comentário conclusivo: “Meu Deus, que porcaria!”. De manhã, com a vista inflamada, mal-humorado e barba por fazer, fitará uma folha de papel em branco por uma ou duas horas até que, assustado com o ponteiro ameaçador do relógio, entrará em ação. Então, de repente, dá-lhe um estalo. Todas as velhas frases batidas — “um livro que ninguém deve perder”, “algo memorável em cada página”, “de especial valor são os capítulos que abordam” etc. etc. — encaixam-se em seus lugares num salto, como limalha de ferro obedecendo ao ímã, e a resenha terminará exatamente no tamanho certo e faltando cerca de três minutos para ser despachada. Enquanto isso, outro monte de livros heterogêneos e insossos terá chegado pelo correio. E assim vai. No entanto, com que grandes esperanças essa criatura oprimida e exasperada iniciou a carreira, há apenas alguns anos.
Pareço exagerar? Pergunto a qualquer resenhista regular — qualquer um que resenhe, digamos, um mínimo de cem livros por ano — se pode afirmar com honestidade que seus hábitos e caráter não são como os que descrevi. Todo escritor é bem esse tipo de pessoa, mas a resenha de livros indiscriminada e prolongada é uma tarefa exaustiva, irritante e excepcionalmente ingrata. Envolve não só elogiar a produção sem valor — embora envolva isso, como vou mostrar daqui a pouco — como inventar a todo tempo reações a livros em relação aos quais não se tem nenhum sentimento espontâneo. O resenhista, conquanto possa estar embotado, é profissionalmente interessado em livros e, dos milhares que aparecem todo ano, é quase certo que existam cinquenta ou cem sobre os quais teria prazer em escrever. Se for de primeira categoria na profissão, pode conseguir dez ou vinte deles: é mais provável que consiga dois ou três. O resto de seu trabalho, por mais consciencioso que ele possa ser ao elogiar ou desaprovar, é em essência uma farsa. Ele desperdiça seu espírito imortal despejando-o na pia, meio litro por vez.
A grande maioria das resenhas oferece um relato inadequado e enganoso do livro que aborda. Desde a guerra, as editoras têm sido menos capazes do que antes de influenciar os editores dos suplementos literários e invocar um peã de louvores para cada livro que produzem, mas de outro lado o padrão da recensão caiu, devido à falta de espaço e a outros inconvenientes. Diante dos resultados, as pessoas às vezes sugerem que a solução reside em tirar a resenha de livros das mãos de escrevinhadores. Livros sobre assuntos especializados deveriam ser abordados por especialistas e, de outro lado, uma boa quantidade de resenhas, em especial de romances, poderia ser feita por amadores. Quase todo livro é capaz de provocar sentimentos apaixonados, mesmo que apenas uma aversão apaixonada, neste ou naquele leitor, cujas ideias sobre ele decerto valeriam mais do que as de um profissional entediado. Mas lamentavelmente, como todo editor sabe, é muito difícil organizar esse tipo de coisa. Na prática, o editor sempre se vê recorrendo de novo à sua equipe de escrevinhadores — os “fixos”, como os chama.
Nada disso é remediável enquanto se supuser que todo livro merece ser resenhado. É quase impossível mencionar livros a granel sem enaltecer de forma grosseira a grande maioria deles. Antes de se ter algum tipo de relação profissional com livros, não se descobre quão ruim é a maioria deles. Em bem mais do que nove entre dez casos, a única crítica objetivamente verdadeira seria: “Este livro não tem mérito”, enquanto a verdade sobre a reação do próprio resenhista provavelmente seria: “Este livro não me interessa de forma alguma, e não escreveria sobre ele a não ser que fosse pago para isso”. O público, entretanto, não pagará para ler esse tipo de coisa. Por que deveria? O público quer algum tipo de orientação para os livros que é convidado a ler, e quer algum tipo de avaliação. Mas assim que valores são mencionados, os padrões caem. Porque se alguém diz — e quase todo resenhista diz esse tipo de coisa ao menos uma vez por semana — que Rei Lear é uma boa peça e The four just men [Os quatro homens justos, de Edgar Wallace] é um bom thriller, o que significa a palavra “bom”?
Sempre me pareceu que a melhor prática seria simplesmente ignorar a grande maioria dos livros e dedicar resenhas bastante longas — mil palavras no mínimo — aos poucos que parecem importar. Notas breves de uma ou duas linhas sobre livros a serem lançados podem ser úteis, mas a habitual resenha de tamanho médio de cerca de seiscentas palavras está destinada a ser inútil, ainda que o resenhista deseje com toda a sinceridade escrevê-la. De modo geral ele não deseja escrevê-la, e a produção de excertos semana após semana logo o reduz à figura oprimida de roupão que descrevi no início deste artigo. No entanto, todos neste mundo têm alguém que podem desprezar, e devo dizer, com base em minha experiência nas duas atividades, que o crítico de livros está numa situação melhor que a do crítico de cinema, que não pode sequer fazer seu trabalho em casa, devendo comparecer a eventos promocionais às onze da manhã, e de quem se espera, com uma ou duas exceções notáveis, que venda sua honra por um copo de xerez ordinário.

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

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