A madrugada estava justo acabando, mas eu já estava de pé, pronto, de café tomado, à espera. A ansiedade era demais. Tio João Gordo, um homem muito magro, de fala mansa, meio rouca, ia me levar à fazenda. Chegou ele a cavalo puxando um outro, que seria o meu. Cheiro bom de cavalo, mistura de suor, couro de arreio e o cheiro próprio dos cavalos. Todo bicho tem cheiro próprio, até os humanos. Mas cheiro próprio de cavalo é melhor que cheiro próprio de humano, como afirmou com justiça um presidente da República. E lá fomos os dois, o tio João Gordo nos seus sessenta anos e eu nos meus sete. Friozinho, o ar esbranquiçado de neblina, ninguém na rua, a cidade ainda não havia despertado para fora, estava despertando para dentro e prova disso eram a chaminés dos fogões de lenha soltando fumaça, sinal de que estavam acesos e de que o café estava sendo coado. Só o barulho das ferraduras batendo pontudas nas pedras e algum canto de galo, a gente não falava, acho que para não perturbar o silêncio, aí o bater pontudo das ferraduras ficou macio, surdo, tínhamos saído da cidade, estávamos na estrada de terra. De cima do morro se via a várzea esbranquiçada de neblina lá embaixo. Aí o tio João Gordo fez um sinal, apontou para a direita, uma trilha no meio do pasto, embicou o cavalo e eu fui seguindo. O silêncio tinha o perfume de capim gordura e a música da água de um riachinho que nem se via, coberto que estava pelo capim, só se adivinhava que ele existia por causa do barulho da água, os grilos arranhavam seus últimos cantos antes que chegasse a sua noite com o nascer do sol, uma garça planou, os cavalos saltaram o riozinho, foi um susto, eu não estava esperando o pulo, quase caí, mas não caí, e lá fomos nós até que a neblina nos cobriu. E quem olhasse do alto do morro não adivinharia que invisíveis no branco da neblina iam um homem sem surpresas, curtido pelos pastos e cavalos, e um menino que não sabia nada e estava encantado com a beleza do mundo…
Rubem Alves, em O Velho que Acordou Menino
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