Rubem
Braga é, sabidamente, um conhecedor de passarinhos. Suas crônicas
alegram-se e se entristecem com frequência de nomes de pássaros
nacionais que eu só conheço de ouvir dizer – o que me dá um
certo complexo de inferioridade. Já andei, certa vez, planejando
estudar ornitologia por causa disto, e lembro-me de que na viagem que
fiz com ele à sua Cachoeiro do Itapemirim, quando da homenagem que
lhe prestou a cidade, foi com um sentimento de gula que recebi o
maravilhoso disco de pios artificiais de passarinhos, feito pela
família Coelho, que disso criou uma pequena indústria local. Tais
projetos nunca foram adiante, como vários outros, entre os quais um
de estudar carpintaria: e este, inclusive, concertado com o próprio
Rubem – e que resultou em arrancarmos, ato contínuo, a porta da
garagem da minha antiga casa, sairmos meia hora depois para matar o
calor com uma cerveja gelada, e nunca mais voltarmos à dita porta,
que se quedou jazente por dias a fio, vítima de nossa impostura.
O
Braga conhece bem sua passarada, isso ninguém lhe tira. O que não
impede, porém, que tenha dado um “baixo” ornitológico que
merece registro, segundo me conta minha irmã Lygia, testemunha
ocular do mesmo. Pois o que se deduz da história é que o Braga pode
conhecer muito bem tico-tico, curió, sanhaço, cardeal, tiê-sangue,
sabiá, gaturamo, cambaxirra e até mesmo vira-bosta – mas em
matéria de canário trata-se de um otário completo e acabado. Dito
o quê, passemos à narrativa.
Parece
que o Braga vinha um dia assim muito bem pela Cinelândia, quando
topou com um vendedor de passarinho oferecendo a preço de ocasião
um casal de canários dentro de uma gaiola cuja bossinha era ser
dividida por uma separação levadiça em dois compartimentos, um
para o macho, outro para a fêmea. A gracinha era abrir a portinhola
do macho, deixá-lo fugir e depois vê-lo voltar docemente, no pio da
fêmea.
O
Braguinha, que além de gostar de pássaros não é tolo (imagina
para quanta mulherzinha ele não ia poder fazer aquele truque!),
assistiu com o maior interesse a mais essa demonstração de que,
como diz o samba, o homem sem mulher não vale nada, entregou o
dinheiro, meteu a gaiola debaixo do braço e tocou-se para o Leblon,
sequioso de mostrar seu novo brinco ao aborígene. E deu-lhe a sorte
de encontrar minha irmã Lygia, que além de ser uma esplêndida
assistência para demonstrações desse teor, é pessoa mais de se
apiedar que de caçoar da desdita alheia.
O
Braga colocou a gaiola em posição, abriu a porta e lá se foi o
canarinho pelo azul afora, em lindas evoluções. A fêmea, como
previsto, abriu o bico e o canário, ao ouvi-la, fez direitinho como
mandava o figurino: voltou e posou junto à porta aberta. Mas o
divórcio entrou? Nem o canário. O bichinho ficou prudentemente à
porta, mas entrar dentro mesmo da gaiola que é bom... ahn-ahn. O
Braga animou a ave canora com milhões de piu-pius, fez-lhe
mentalmente enérgicas perorações contra a sua calhordice – tudo
isso, conta minha irmã Lygia, com olhos onde se começava a notar
uma certa apreensão. O canário, nada.
Quem
sabe, ponderou minha irmã, um elemento verde qualquer colocado junto
à porta, uma folha de alface, por exemplo, não animaria o bichinho?
Foi trazida a folha de alface e colocada junto à porta. Durante essa
operação o canário levantou voo, e a canarinha, aproveitando-se da
ocupação dos dois, fez força com o biquinho e acabou por erguer a
portinhola da separação; dali para o Jardim Botânico, não teve
nem graça.
Diz
minha irmã que o Braga ficou triste, triste. E como a esperança é
a última que morre, antes de ir embora ainda ajeitou a gaiolinha
para uma espera: quem sabe os pilantras não voltariam à noite...
Canário,
hein Braguinha?…
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
Nenhum comentário:
Postar um comentário