domingo, 31 de janeiro de 2021

Brasileirinho: por que tanta gente gosta? | Hamilton de Holanda

Hora de visita

Gostei de nascer, doutor,
mas, agora, já chega.

O médico baixou o rosto, incapaz de palavra.
Depois, se acertou e disse:

Amanhã, o senhor volta para sua casa.

O velho doente
superou o cansaço das palavras:

Agora, doutor,
a minha casa é a minha cama.

Que ele se ia afeiçoando
ao tamanho dos que partem.

O médico cortou no drama:

Já é hora da visita.
Já lhes ouço os passos no corredor.

Sorriu: a solidão preferia.

Cada visita
é uma despedida,
os parentes junto ao leito,
contemplam apenas a dor de serem eles,
amanhã, os visitados.

Estão-me velando sem velas.

Depois entraram os parentes,
numerosos,
mas nenhum chegando nunca a estar ali,
nenhuma ponte cruzando os dolorosos abismos.

Então,
uma mão pequena,
asa sem ave,
ascendeu do chão
e sobre o leito pousou.

Seria,
por certo,
a mão de um neto
que buscava o abraço sem braço
e ali se quedou em desajeitada carícia.

Ou talvez fosse
a mão de um anjo.

Só então,
começou a visita.

Mia Couto

Armandinho

 

Sobre meus ombros

          Que lógica, afinal, há na memória? Lembramos de muita coisa quando queremos, e grande parte de nossa vida se baseia nisso. Mas também lembramos do que não queremos, do que nos faz mal, de coisas desimportantes e esquecemos do que gostamos, do que nos fez bem, de algo de que precisaríamos com urgência. E nem falo dos efeitos mais compreensíveis da idade, que, como com todo o resto, também agem sobre a lembrança e o esquecimento. O contrassenso é total, quando penso, por exemplo, que, aos cinquenta e cinco anos — idade para já se esquecer, ao abrir a geladeira, o que é que se foi pegar lá —, esqueço do nome de uma de minhas primas mais queridas, e, por outro lado, lembro dos nomes de todos os jogadores da seleção de 74, time de pouca importância e no qual eu mal prestei atenção. Por que lembro desses nomes? O que faz com que minha memória traga coisas que não me dizem respeito, não me dizem mesmo nada, não têm relação com algo que me traumatizou, nada absolutamente? Teria a memória também a função de fixar amenidades, simplesmente porque sim, porque, como o espancador de Kafka, cuja tarefa é só espancar, a memória lembra assim, à toa, só por lembrar?
Se não fosse assim, por que esqueço de como era o braço de meu pai sobre meu ombro, mas lembro de sua camisa para fora da calça; da coca-cola que ele bebia inteira, direto do gargalo da garrafa, num único gole, e que eu olhava admirada e invejosa; do sorvete Ki-Show que nós comíamos juntos e escondidos de minha mãe no boteco da esquina de casa; da linguiça que devorávamos na rua São Bento, ele que não podia comer carne de porco; do elástico de borracha que envolvia o maço de dinheiro que ele guardava no bolso lateral da calça de tergal; do caranguejo de plástico que ele comprava no centro da cidade e punha sem ninguém ver no sofá de casa para que, quando eu voltasse da escola, sem dar pela coisa, me assustasse e eu na verdade não me assustava, mas fingia que sim para agradá-lo; do contorno de seu nariz enorme que eu desenhei com a mão quando o vi morto sob um lençol; do momento em que eu disse que não gostava dele e ele saiu desembestado pela rua, dizendo que tinha criado um monstro e eu indo atrás me desculpando, pai, pelo amor de Deus, pai, me desculpe, não foi isso o que eu quis dizer, só desabafei; de quando eu ia junto com ele ao banco na rua da Graça e ria porque ele fazia contas em voz alta e porque “vezes” em iugoslavo se diz “puta” e ele falava: “tri puta tri puta dva”; de como ele me agarrava pelas mãos, quando eu era bem pequena, na praia, e me lançava por baixo de suas pernas ou por cima dos ombros; de quando implorava que eu fosse para o mar junto com ele, porque afinal o mar é que era a melhor terapia, e que eu parasse de frequentar o psicólogo, porque nada se resolvia falando; de como o filme que ele mais amava na vida era Horizonte perdido, e que Shangri-lá, sim, é que era o lugar perfeito e não esse país ridículo onde vivíamos; de como ele admirava tanto Jânio Quadros como Fidel Castro porque ambos eram seguros do que diziam e realmente se interessavam pelo povo; de como ele era a favor de uma ditadura do proletariado; como ele queria ser “ou guarda de trânsito ou presidente da República ou um milionário da fundição, igual ao Antônio Ermírio de Moraes”; como ele achava que os grandes males do século XX tinham sido “a empregada doméstica, a pílula anticoncepcional e a televisão”; da forma nostálgica e sensual como ele admirava as pernas da Elba Ramalho; da caneta Bic que ele mantinha sempre no bolso da camisa como se fosse uma Mont Blanc, não permitindo que ninguém a pegasse emprestado; como ele chamava os funcionários de sua pequena fábrica de “Ilustre!”; como ele pedia que eu lhe desse um beijo na bochecha, dizendo “aplica”; como ele gostava de bife com batatas fritas e só pedia esse único prato em todos os restaurantes aonde íamos, fosse na churrascaria mais cara da cidade ou na cantina do bairro; como ele conversava com os mendigos da rua, que frequentavam sua mesa e a quem ele dava mesadas ou semanadas regulares; como ele me dizia “conta alguma coisa, para de estudar um pouco e vem conversar com o teu pai”; como ele perguntava para todos os amigos que chegavam em casa: “que acha da conjuntura política e econômica internacional?”; como ele odiava borrachudos e largou uma casa alugada por um mês em Ilhabela depois de apenas dois dias, por causa deles; como ele e minha mãe sempre pediam os mesmos sabores de sorvete no Alaska, limão e pistache; como ele não gostava de viajar porque dizia que em todas as cidades se vê sempre a mesma coisa: igrejas, monumentos e museus; como ele se trancava com o primeiro neto em seu quarto, pendurando do lado de fora da porta um aviso “não perturbe”, e ficava por mais de quatro, cinco horas brincando com ele; de como quando, ao ser advertido por mim sobre a grande quantidade de brinquedos que ele comprava para esse neto e de como isso podia fazer mal ao menino, ele respondeu, mas se ele fica feliz, e então eu fico também, qual é o problema?; como ele se orgulhava, nas cartas que escrevia aos clientes, de usar a palavra “referente”, porque a considerava uma palavra chique; como ele fingia ter um caso com uma de suas costureiras, ou talvez tivesse mesmo; como ele me pedia que apertasse a cabeça dele, que sempre doía, e quando eu apertava, ele dizia, “ai de ió”, que eu nunca quis saber o que quer dizer, mas intuitivamente sabia.
Mas de seu braço, que, tenho certeza, ele colocava sobre meu ombro, com aquela sua mão grande, a sensação desse peso leve e quente eu não consigo lembrar.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

Nkali

          É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma palavra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer “ser maior do que outro”. Assim como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo princípio de nkali: como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas depende muito de poder.
O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva. O poeta palestino Mourid Barghouti escreveu que, se você quiser espoliar um povo, a maneira mais simples é contar a história dele e começar com “em segundo lugar”. Comece a história com as flechas dos indígenas americanos, e não com a chegada dos britânicos, e a história será completamente diferente. Comece a história com o fracasso do Estado africano, e não com a criação colonial do Estado africano, e a história será completamente diferente.
Há pouco tempo dei uma palestra numa universidade e um aluno me disse que era uma grande pena que os homens nigerianos fossem agressivos como o personagem do pai no meu romance. Eu disse a ele que tinha acabado de ler um livro chamado O psicopata americano e que achava que era uma grande pena que os jovens americanos fossem assassinos em série.
Bem, obviamente eu disse isso num leve ataque de irritação. Mas jamais teria me ocorrido pensar que, só porque li um romance no qual o personagem era um assassino em série, ele de alguma maneira representava todos os americanos. Não digo isso porque me considero uma pessoa melhor do que esse aluno, mas porque, graças ao poder econômico e cultural dos Estados Unidos, tive acesso a muitas histórias sobre esse país. Já tinha lido Tyler, Updike, Steinbeck e Gaitskill. Não tinha uma história única dos Estados Unidos.

Quando descobri, alguns anos atrás, que se esperava que os escritores tivessem tido infâncias muito infelizes para ser bem-sucedidos, comecei a pensar em como inventar coisas horríveis que meus pais poderiam ter feito comigo. Mas a verdade é que tive uma infância muito feliz, cheia de riso e amor, numa família muito próxima.
Também tive avós que morreram em campos de refugiados. Meu primo Polle morreu porque não recebeu tratamento médico adequado. Um dos meus melhores amigos, Okoloma, morreu num acidente de avião porque nossos caminhões de bombeiros não tinham água. Minha infância transcorreu durante governos militares que desvalorizavam a educação, de modo que às vezes meus pais não recebiam seus salários. Então, quando eu era criança, vi a geleia desaparecer da mesa do café, depois a margarina, depois o pão ficou caro demais, depois o leite foi racionado. Acima de tudo, uma espécie de medo político normalizado invadiu nossa vida.
Todas essas histórias me fazem quem eu sou. Mas insistir só nas histórias negativas é simplificar minha experiência e não olhar para as muitas outras histórias que me formaram.
A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história.
É claro que a África é um continente repleto de catástrofes. Existem algumas enormes, como os estupros aterradores no Congo, e outras deprimentes, como o fato de que 5 mil pessoas se candidatam a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas existem outras histórias que não são sobre catástrofes, e é muito importante, igualmente importante, falar sobre elas.

Chimamanda Ngozi Adichie, in O perigo de uma história única

sábado, 30 de janeiro de 2021

2000 e Louco / Mateus Alves

Os Almanaks

          Ignoro como foi que chegou às mãos do meu pai aquele exemplar do Almanak Sul-Mineiro do século XIX. Estava num lamentável estado de conservação, faltando-lhe as páginas iniciais onde normalmente aparecem o nome do autor, o nome da gráfica e a data de publicação. Examinei atentamente o que restava, folhas rasgadas, soltas, em busca de alguma pista que me permitisse inferir a data. Meu esforço não foi em vão. Na parte dedicada ao município de Lavras, à folha 586, deparei-me com uma cifra referente ao número de escravos existentes no município, que somavam, em dezembro de 1882, 6053, número menor que os 7452 que havia em 28 de setembro de 1873. O Almanak explica que esse declínio no número de escravos se deveu a alforrias de negros, patrocinadas por um Fundo de Emancipação de Escravos, no valor de 64:660$000. A publicação do dito Almanak, então, se deu em alguma data entre o ano de 1882 e 1888, data em que escravidão foi abolida. A cidade onde nasci encontra-se ali referida com o nome de Dores da Boa Esperança. Entretanto, por ocasião do meu nascimento, em 1933, o “Boa Esperança” estava em desuso e a cidade era conhecida simplesmente como Dores. Nasci “dorense”.
O Almanak descreve a geografia, a cidade, a religião, as atividades culturais, as organizações de caridade, nomeia os profissionais mais importantes e relata os acontecimentos dignos de nota, como foi o caso de uma ventania nunca vista que fez voar uma rodeira de carro de bois por uma légua. No outro Almanach Sul-Mineiro de que disponho, organizado e editado por Bernardo Saturnino da Veiga e publicado em 1874, o autor diz que “o terreno é de conhecida uberdade e banhado pelo caudaloso rio Grande, que passa á duas léguas da cidade ”. “Compõe-se a cidade de 240 casas, das quaes 5 de sobrado e 24 assobradadas, formando ellas seis largos ou praças e dez ruas. Existe no largo da matriz um chafariz público.”
Os chafarizes eram marca do progresso de uma cidade. Além de serem as fontes de água que abasteciam as casas da cidade, eles eram os lugares onde as pessoas se encontravam para conversar e namorar.
O autor do Almanak continua:

Os cereais são cultivados para o consumo local, mas já se faz também considerável exportação de queijos fabricados em muitas fazendas, que são os melhores da província no consenso geral e tão bons como os mais afamados da Europa. Possui um serviço de correios, a cargo de estafetas que levam a correspondência para Três Pontas aos dias 4, 10, 16, 22 e 28 de cada mês.
A seguir são nomeados os açougues, os advogados, o vigário, os alfaiates, os capitalistas, os fabricantes de cerveja e de licores, os fazendeiros, os ferradores, o fogueteiro, as costureiras, os cigarreiros, as doceiras, as floristas, os ourives, as parteiras, o pharmaceutico, o pintor, os rancheiros, os pedreiros, entre eles vários escravos, os selleiros, os sapateiros, as tecedeiras, os hotéis, os marceneiros, o médico, os estabelecimentos de secos e molhados, o encarregado da música, as olarias, os depósitos de sal.
Relata ainda o Almanak de data incerta que havia em Boa Esperança quatro pianos.
Meu pai não se interessou por esses detalhes. O que lhe importava era outra coisa. Ajustados os óculos, ele deslizava o dedo sobre a lista dos notáveis da cidade, na esperança de ali encontrar algum antepassado ilustre com o sobrenome “Espírito Santo”. Encontrou o “Espírito Santo” entre os tropeiros. Ele não se abateu. Ele nunca se abatia. Era um feiticeiro. Mudava tudo pelo poder das palavras. Assim, ele falou e a mágica aconteceu: “Tropeiro. Esse meu antepassado era dono de uma empresa de transportes...” .

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

A mulher de 50 é o elo perdido

          Eu vi Vera Fischer nua e você tem todo o direito de dizer grande coisa, meu chapa, porque só não viu quem não tem 50 pratas para gastar com teatro. Vi Vera à vera, naquela hora em que os meninos se transformam em homens, como anunciava o velho filme sobre tempestade no mar, e acho, a propósito, que é um slogan perfeito também para se anunciar uma peça, como a que ela está fazendo, sobre a primeira noite de um homem. São eventos das mesmas proporções monumentais. Divisores de água. Há quem medre. Há quem enfrente as ondas e nesse momento faça surgir dali um leão com forças que ele próprio julgava impossíveis.
Eu vi Vera Fischer nua, mas deve ter sido por isso que me perco em rodopios e não vou direto ao ponto. Não quero falar de tempestade marítima nem leões-marinhos nem furacões louros. Nada disso. Eu vi Vera Fischer nua e, nessa eterna busca em que sempre acabo me metendo atrás das delícias perdidas, nessa caça insaciável do prazer que às vezes julgo terem nos surrupiado, eu, ao mesmo tempo que me alumbrava por estar tão perto da quinta estrela no céu de Vénus, eu, ao mesmo tempo, fui conduzido por meus hormônios peripatéticos a imediatamente viajar no tempo.
Caraca, onde mesmo foram parar essas doidas redondas?!
Elas vinham aos borbotões e ainda esta semana eu vi, já que hoje tomei afeição pelo verbo, eu vi uma das mais estupefacientes delas na chanchada “Camelô da Rua Larga”, participando do time das girls que simulavam uma praia na produção, de 1958, da Herbert Richers. Vista assim de agora, coitada, a moça era desprovida, pela fartura das carnes, de qualquer atributo que a levasse ao pano de boca de um filme. Totalmente fora do peso. No entanto, toda desenhada em compasso, foi diante dela que o camelô Zé Trindade parou na chanchada e disparou o elogio ao sabor da época. “Com tanta curva assim”, galanteava o pseudogalã nordestino, “não há motorista que não derrape, minha filha.”
Eu vi Vera Fischer cheia de curvas no primeiro ato de “A primeira noite de um homem” e sei da vida e do teatro apenas o suficiente para entender que nesses momentos um homem normal teme pela possibilidade de não chegar com o equi- líbrio ajustado ao segundo ato dessa grande peça em que nos meteram. Vi-a nua, já o disse. Fiquei confuso, como já se percebeu. Mas depois de pensar na tempestade que define o caráter dos meninos, depois de lembrar como eram desenhadas essas senhoras que nos endoideciam, eu acabei chegando ao ponto cronical do assunto, e antes ainda de anunciá-lo aqui, faço um parêntese para agradecer ao Lavolho, o colírio com aquele baldezinho azul que me abriu a vista na infância e hoje me permite botar em foco o que interessa nesta crônica.
Caraca!, como podem ser bonitas as mulheres entradas nos cinquentanos!
Jamais serei visto desenhando escala de valores numa matéria desse tipo, eu que sempre tive como tipo preferido aquela que, primeiro, está respirando, e, em seguida, a que me dá bola. Todas deusas, todas merecedoras de epifanias, hosanas, e é o que aqui se tem feito quando há inspiração. Das de 20, não mais me ocupo. Foram genialmente flagradas por Paulo Mendes Campos em “Ser brotinho”, no justo momento em que lançavam fogo pelos olhos – e pelo que vejo ao redor, continuam mais ou menos assim, com o detalhe tão 2004 que agora marcam para sempre o corpo do outro com o piercing em brasa.
As de 30, que vibravam tristonhas na voz de Miltinho, agora pisam aceleradas e planam, entre petulantes e angustiadas, como se estivessem sobre a mesma sandália de US$ 400 da Carrie em “Sex and the City”. As de 40 batem o fino. Todos os filhos postos, vagam com aquela determinação de quem sabe direitinho onde é o ponto G e também o melhor endereço para decorar o apartamento deixado pelo ex.
Eu vi Vera Fischer nua aos 52 anos e, não sei se foi porque a peça começou com “Dream a little dream of me”, com os Mamas and Papas, e acabou com “There’s a kind of hush”, dos Herman’s Hermits, eu só sei que me emocionei em pensar que uma mulher nessa idade, hoje, não pode mais passar adiante nem as canções românticas que ouviu na juventude nem a educação que recebeu dos pais.
Ela foi a primeira a ouvir rock e a última a debutar. A primeira a saber da pílula e a última a casar virgem. A primeira a escrever liberdade no muro e a última a sonhar da vida apenas o que fosse a saia plissada do curso normal, a mesa posta na janta e a firme determinação de ser fiel até que a morte a separasse do sacrossanto marido. A mulher dos 50 é o elo perdido, o bastão de passagem que caiu no chão. De nada lhe serviu o curso da mamãe para ser a rainha do lar, de nada do que aprendeu pode tirar o chip que ajude a filha a se conectar na banda larga da nova felicidade.
E, no entanto, há uma geração de mulheres aos 50, aos 60, que sobreviveu ao marido machista, ao preconceito careta, pegou o bastão no chão e reconstruiu a corrida de um jeito próprio, como Vera faz no teatro, que permite mostrar beleza, humor, vivacidade e tesão num prazo muito além dos 40, que era mais ou menos quando mamãe se recolheu ao tricô, ao truco e ao triste.
Eu vi, acho que já disse, Vera Fischer nua aos 52, a mais que perfeita tradução da última fornada de mulheres a ser educada com repressão e, em seguida, obrigada a aprender, com o bonde andando, a viver num mundo onde é proibido proibir. Ela estava nua à vera, eu na segunda fila, e como não sou crítico de teatro, não entendo nada dos rigores de uma encenação, fico muito à vontade para dizer que tirei como útil daquela noite a impressão de que pode ter sido o rock and roll. Não sei. Pode ter sido essa dieta à base de ômega 3 que ela anda fazendo. Pode ter sido o efeito de malhar ferro todo dia. Não importa. Fiquei com a impressão de que Vera, 52, é o exemplo mais evidente de um grupo que já viveu, que já sofreu, e chegou ao segundo tempo da existência com tudo em cima. Sem cabelo azul. Na hora de ir ao teatro, ela não vai de van. Vai nua.
Não há muito mais o que fazer. A vida já se mostra avançada no tempo, não dá para reescrever todo o texto. Depois de Vera, espero ver outras. É irresistível a mulher que chega aos 50 pacificada com seu delicioso projeto de apenas melhorar e encher de beleza a biografia.

Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido

Calvin e Haroldo

 

Uma experiência

          Talvez seja uma das experiências humanas e animais mais importantes. A de pedir socorro e, por pura bondade e compreensão do outro, o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu já pedi socorro. E não me foi negado. Senti-me então como se eu fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então uma pessoa tivesse sentido que um tigre ferido é apenas tão perigoso como uma criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podem agradecer. Então eu, o tigre, dei umas voltas vagarosas em frente à pessoa, hesitei, lambi uma das patas e depois, como não é a palavra o que tem importância, afastei-me silenciosamente.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Manhãs de maio

          Mesmo em maio — com manhãs secas e frias — sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convicção e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim. Desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A vida me pareceu inteiramente concluída. Inventei-me mais inverdades para vencer o dia amanhecendo sob névoa. Preencher um dia é demasiadamente penoso, se não me ocupo das mentiras.
Dói. Dói muito. Dói pelo corpo inteiro. Principia nas unhas, passa pelos cabelos, contagia os ossos, penaliza a memória e se estende pela altura da pele. Nada fica sem dor. Também os olhos, que só armazenam as imagens do que já fora, doem. A dor vem de afastadas distâncias, sepultados tempos, inconvenientes lugares, inseguros futuros. Não se chora pelo amanhã. Só se salga a carne morta.
No princípio, se um de nós caía, a dor doía ligeiro. Um beijo seu curava a cabeça batida na terra, o dedo espremido na dobradiça da porta, o pé tropeçado no degrau da escada, o braço torcido no galho da árvore. Seu beijo de mãe era um santo remédio. Ao machucar, pedia-se: mãe, beija aqui!
Há que experimentar o prazer para, só depois, bem suportar a dor. Vim ao mundo molhado pelo desenlace. A dor do parto é também de quem nasce. Todo parto decreta um pesaroso abandono. Nascer é afastar-se — em lágrimas — do paraíso, é condenar-se à liberdade. Houve, e só depois, o tempo da alegria ao enxergar o mundo como o mais absoluto e sucessivo milagre: fogo, terra, água, ar e o impiedoso tempo.
Sem a mãe, a casa veio a ser um lugar provisório. Uma estação com indecifrável plataforma, onde espreitávamos um cargueiro para ignorado destino. Não se desata com delicadeza o nó que nos amarra à mãe.
Impossível adivinhar, ao certo, a direção do nosso bilhete de partida. Sem poder recuar, os trilhos corriam exatos diante de nossos corações imprecisos. Os cômodos sombrios da casa — antes bem-aventurança primavera — abrigavam passageiros sem linha do horizonte. Se fora o lugar da mãe, hoje ventilava obstinado exílio. Oito. A madrasta retalhava um tomate em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos. Era possível entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua transparência. Com a saudade evaporando pelos olhos, eu insistia em justificar a economia que administrava seus gestos. Afiando a faca no cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro, como se degolasse cada um de nós. Seis.
O pai, amparado pela prateleira da cozinha, com o suor desinfetando o ar, tamanho o cheiro do álcool, reparava na fome dos filhos. Enxergava o manejo da faca desafiando o tomate e, por certo, nos pensava devorados pelo vento ou tempestade, segundo decretava a nova mulher. Todos os dias — cotidianamente — havia tomate para o almoço. Eles germinavam em todas as estações. Jabuticaba, manga, laranja, floresciam cada uma em seu tempo. Tomate, não. Ele frutificava, continuamente, sem demandar adubo além do ciúme. Eu desconhecia se era mais importante o tomate ou o ritual de cortá-lo. As fatias delgadas escreviam um ódio e só aqueles que se sentem intrusos ao amor podem tragar.
Sem o colo da mãe eu me fartava em falta de amor. O medo de permanecer desamado fazia de mim o mais inquieto dos enredos. Para abrandar minha impaciência, sujeitava-me aos caprichos de muitos. Exercia a arte de me supor capaz de adivinhar os desejos de todos que me cercavam. Engolia o tomate imaginando ser ambrosia ou claras em neve, batidas com açúcar e nadando num mar de leite, como praticava minha mãe — ilha flutuante — com as mãos do amor.
Eu desconhecia o amor, mesmo fantasiando em me sentir amado. Repetia o verbo amar a Deus sobre todas as coisas, amar o próximo como a si mesmo, não matar, não pecar contra a castidade, honrar pai e mãe, por frequentar a catequese, nas tardes ociosas dos sábados. Decorar os dez mandamentos encurtava o caminho para o céu, tantos me repetiam. E contrito, mãos amarradas sobre o peito, eu duvidava da fé, mas insistia em crer em Deus Pai, todo-poderoso. Atravessar do infinito ao infinito e alcançar o pleno azul, sobre a bicicleta do padre, negociada em pecado e segredo, tornava o céu mais viável.
A mãe partiu cedo — manhã seca e fria de maio — sem levar o amor que diziam eu ter por ela. Daí, veio me sobrar amor e sem ter a quem amar. Nas manhãs de maio o ar é frio e seco, assim como retruca o coração nos abandonos. Ela viajou indignada, por não ser consultada. Evadiu-se, sem suplicar um socorro. Nem murmurou um “com licença” — eu confirmo — para adentrar em outra vida, como nos era recomendado. Já não cantava, sobrevivia isenta, respirando o medo pelo desconhecido. A mão da morte soterrou até sua sombra. Foi um adeus inteiro, definitivo, rigoroso, sem escutar nosso pesar. Eu pronunciava, seguidamente, a palavra amor, amor, sem ter a presença amada.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Diego Figueiredo & Chiara Izzi / Doralice

A irresistível necessidade de acreditar

          Ao discutirmos a complexa relação entre ciência e religião, com frequência nos deparamos com posições polarizadas: ou se afirma “acredito” ou se afirma “não acredito”, com total convicção em ambos os casos. Com frequência ainda maior, se perguntarmos no quê, exatamente, a pessoa acredita, ou de onde vem a necessidade de sua fé, nos deparamos com respostas vagas, que incluem “tradição”, “comunidade”, “mortalidade”. Um grupo menor, que se dá a reflexões mais profundas, examina, questiona e reavalia sua fé regularmente, sabendo que o crer é fluido. Nossas convicções mudam com a idade e, com essas mudanças, muda, também, nossa relação com a fé.
Nessa polarização milenar, muita animosidade desnecessária vem da convicção infundada de que os que têm opinião diferente da nossa em relação à fé, ou os que acreditam de forma diferente, estão profundamente equivocados, ou são simplesmente tolos ou, pior, são infiéis que não merecem viver. Deixando de lado a radicalização trágica dos muçulmanos de organizações terroristas como ISIS ou Al-Qaeda, vimos exemplos mais amenos, mas não menos sintomáticos, do radicalismo entre ateus e cristãos nos debates presidenciais durante a eleição de Donald Trump nos EUA, e em várias eleições no Brasil, onde ateus são considerados os candidatos menos elegíveis.
É impensável, hoje, ter um presidente que se proclama não crente nos Estados Unidos ou no Brasil. Essa dicotomia é uma distorção cultural que precisa ser repensada. Na realidade, existe todo um espectro de modalidades da fé humana, que ocupam o espaço entre o radicalismo extremo dos dois polos. Por exemplo, Francis Collins, diretor do Instituto Nacional de Saúde dos EUA – o órgão governamental que administra o maior número de bolsas de pesquisa nas áreas da medicina e da biologia –, não vê qualquer conflito entre ser cristão e ser cientista. Como ele, muitos cientistas veem a prática científica como mais um modo de admirar a obra divina, ou seja, como uma forma de devoção religiosa. Essa é uma tradição antiga, que inclui alguns dos patriarcas da ciência moderna, como Copérnico, Newton, Kepler e Descartes.
A ruptura veio mais tarde, com o Iluminismo do século XVIII. Para ateus radicais conhecidos do público, como o biólogo inglês Richard Dawkins, o escritor americano Sam Harris e o falecido jornalista inglês Christopher Hitchens, esse tipo de posição intermediária é inconsistente com os fundamentos da ciência: a Natureza é material, e a matéria é organizada segundo leis quantitativas. O objetivo da ciência é descobrir essas leis; não existe espaço para mais nada. Segundo eles, qualquer posição conciliatória entre ciência e religião cria uma série de problemas filosóficos. Como exemplo, citam a coexistência incompatível do natural com o sobrenatural. Como a Natureza pode ser tanto natural quanto sobrenatural? Por definição, chamar um evento que ocorre e é percebido por alguém como sendo um “fenômeno sobrenatural” cria uma inconsistência básica: para que o fenômeno tenha sido observado, teve que emitir algum tipo de radiação eletromagnética (luz visível, radiação infravermelha etc.), que foi detectada por algum observador ou instrumento. “Eu vi um fantasma!” Em outras palavras, para um fenômeno ser detectado, tem que trocar energia com quem (ou com o que) o observa.
É claro que um fenômeno chamado de sobrenatural, uma vez observado, é perfeitamente natural, mesmo se misterioso ou aparentemente inexplicável. Um fantasma que é visto não é mais uma entidade sobrenatural. E agora? Os ateus usam essa incompatibilidade como argumento definitivo contra a crença no sobrenatural e, por extensão, contra a religião. Sem se dar conta, acabam usando sua fé na não fé como prova, e acabam caindo em uma contradição, como veremos adiante. Outros adotam a posição que o biólogo americano Stephen Jay Gould chamou de NOMA (do inglês, Non-Overlapping Magisteria, magistérios que não se superpõem), e compartimentalizam a ciência e a religião dentro de esferas limitadas de influência, afirmando algo como “a religião começa onde a ciência termina”. Apesar de cômoda, essa posição não vai muito longe.
À medida que a ciência avança, a fronteira entre os dois magistérios vai migrando, refletindo uma posição teológica antiquada conhecida como “Deus dos Vãos”, a religião tapando os buracos da nossa ignorância científica. Isso é um tanto indignante para Deus, dado que o espaço para a crença vai diminuindo ao entendermos mais sobre o funcionamento do mundo natural. Me parece bem mais prudente basear a fé em algo mais abstrato do que nossa ignorância sobre o mundo. Além disso, afirmar categoricamente que o sobrenatural tem uma existência intangível e imensurável posiciona sua natureza além do discurso científico, anulando qualquer possibilidade de uma troca construtiva de ideias. O fato é que a ciência e a religião claramente se superpõem na cabeça das pessoas, nas escolhas que fazemos na vida, nos desafios morais que a sociedade moderna enfrenta.
É tragicamente inocente negar o poder da religião no mundo, com bilhões de pessoas declarando-se seguidores de algum tipo de fé, mesmo que muitas delas definam sua fé de forma vaga. Para muitos, a necessidade da fé vai além da crença, tendo um papel social essencial: ela cria alianças que restituem um senso de dignidade e de comunidade que governos muitas vezes deixam de oferecer. Numa realidade miserável, a visão divina enaltece o espírito. Ademais, a posição dos ateus radicais é inconsistente com os parâmetros do método científico, algo que talvez surpreenda muita gente. Para entender isso, basta ver que o ateísmo é a crença na não crença, já que nega categoricamente a possibilidade da existência de qualquer tipo de divindade. O problema é que a ciência só pode negar categoricamente a existência de algo após observações absolutamente conclusivas.
E observações absolutamente conclusivas não existem. Existem apenas convicções, baseadas num conhecimento parcial da realidade. Toda medida científica tem uma margem de erro e um limite de precisão.
Como podemos ter certeza do que ainda não medimos? A posição mais consistente com o método científico é a do agnóstico, como haviam já percebido Thomas Huxley e Bertrand Russell, entre muitos outros: não vejo qualquer razão para crer, mas baseado no que sei não posso negar absolutamente a possibilidade de que alguma entidade divina exista. Como escreveu Huxley, criador do termo “agnóstico”:
É errôneo afirmar que se tem certeza da verdade objetiva de uma proposição, a menos que seja fornecida evidência que justifique logicamente esta certeza.” Em vista da diversidade de posições, a questão essencial é a origem dessa necessidade de acreditar, que identificamos na maioria absoluta das culturas do passado e do presente. O que a crença oferece que tantos precisam? Pertencer a um grupo religioso confere um senso de comunidade imediato. Ao encontrar outros membros de sua comunidade na igreja ou no templo, a pessoa vê sua crença justificada, dado que é compartilhada por tantos outros. Mais do que a crença em si, a pessoa se vê integrada num grupo com valores afins. Isso é tanto verdade para as pessoas de fé quanto para aquelas seculares, sejam elas ateias ou agnósticas.
Seres humanos são criaturas tribais, e tribos definem-se a partir de certos símbolos, mitos ou código moral. Não há dúvida de que nossos ancestrais entenderam que existe uma enorme vantagem em pertencer a um grupo. Fazer parte de uma tribo oferecia uma proteção que aumentava as chances de sobrevivência num ambiente extremamente hostil: unidos venceremos. Tanto no passado quanto no presente, fazer parte de uma tribo confere legitimidade social imediata. Para muita gente, a fé pode ser a justificativa oferecida para participar de um grupo religioso, mas é o senso de comunidade, de valores divididos pelo grupo, que está por trás da devoção. Existe, no entanto, outro aspecto da fé, bem mais subjetivo do que este tribal. Como descreveu o psicólogo americano William James em sua obra-prima.
As variedades da experiência religiosa, a experiência religiosa atinge seu clímax na subjetividade da experiência individual, na comunhão da pessoa com o desconhecido, na percepção de transcendência dos limites da existência humana, delineada pelas barreiras do espaço e do tempo. As visões e revelações dos profetas e dos santos, a experiência emocional do divino, ocorrem no indivíduo, mesmo quando induzidas pelo grupo (por exemplo, através de rituais). Existe muito mais no mundo do que aquilo que percebemos ou podemos medir, e essas características “ocultas” são igualmente importantes na nossa construção do que definimos como realidade. Como escreveu James, “toda a sua vida subconsciente, seus impulsos, suas crenças, suas necessidades, são a premissa da sua existência consciente; existe algo dentro de você que sabe de forma absoluta que o resultado disso tudo deve ser mais verdadeiro do que qualquer tipo de argumento lógico, por mais articulado que seja, que tente contradizer essas convicções subconscientes”.
Mesmo que o filósofo George Santayana e outros tenham criticado James por “encorajar a superstição”, ninguém pode negar o fato de que a razão tem alcance limitado. A ciência, se vista como expressão da razão humana, espalha-se por todos os cantos do conhecimento de forma magnífica. Mas seu alcance não é ilimitado. Existe outra dimensão da fé, separada dos rituais tribais e da religião organizada, que dá expressão a uma necessidade primária que temos de comunhão com o desconhecido. Este é o aspecto mais universal da necessidade humana de crer, que transcende divisões arbitrárias da fé criadas no decorrer da história; as religiões, as tradições, os cultos, as tribos e suas regras. Não falo aqui de uma supersticiosidade irracional ou mística. O que identificamos é a necessidade individual da crença, expressa por cada um de forma variada.
Quando Einstein mencionou sua “emoção religiosa cósmica” para descrever sua conexão espiritual com a Natureza, tentava expressar precisamente essa atração humana pelo mistério, pelo desconhecido. “Espiritual” não implica necessariamente na crença em uma dimensão não material ou sobrenatural. O que pode surpreender a muitos – especialmente aos que veem cientistas por meio do estereótipo do racionalista frio – é que essa atração pelo mistério, em essência, uma atração espiritual pela Natureza, inspira muitos cientistas em seu trabalho. Não é Deus que se busca no questionamento científico, mas a transcendência do humano, a busca por uma dimensão além do cotidiano que dá sentido à nossa busca por sentido. Ao estender sua curiosidade ao oceano do desconhecido, mesmo o cientista secular está praticando essa crença, expressando a necessidade universal que temos de conhecer nossa história e de explorar o novo, ampliando, assim, nossa visão da realidade.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Contrição

Quero banhar-me nas águas límpidas
Quero banhar-me nas águas puras
Sou a mais baixa das criaturas
Me sinto sórdido

Confiei às feras as minhas lágrimas
Rolei de borco pelas calçadas
Cobri meu rosto de bofetadas
Meu Deus valei-me

Vozes da infância contai a história
Da vida boa que nunca veio
E eu caia ouvindo-a no calmo seio
Da eternidade.

Manuel Bandeira

O Impressionismo inglês de Laura Knight

 

Vento e Sol (1913), de Laura Knight

Ajuda ao semelhante

          “Feliz aquele que atravessou a vida ajudando o seu semelhante, que não conheceu o medo e se manteve alheio à agressividade e ao ressentimento! É dessa madeira que são esculpidas as figuras ideais, que consolam a Humanidade nas situações de sofrimento que ela própria criou.”

Albert Einstein, in Como vejo o mundo

Kid Foguete no matadouro

          Me vi de novo na lona e desta vez nervoso demais de tanto tomar vinho; o olhar desvairado, caindo de fraqueza; tão deprimido que nem podia pensar em recorrer ao quebra-galho de sempre, à minha pausa para recalibrar, topando qualquer serviço em departamento de expedição ou almoxarifado. por isso resolvi ir ao matadouro.
entrei no escritório.
não te conheço?, perguntou o cara.
que eu saiba não, menti.
já tinha estado lá duas ou três vezes, preenchendo toda aquela papelada, passando por exame médico etc. e tal, e então me levaram até uma escada, por onde descemos quatro andares, o frio cada vez pior, o chão reluzente de sangue, ladrilhos verdes e o azulejo das paredes também. Explicaram o que eu tinha que fazer: consistia em apertar um botão e aí, pelo buraco aberto na parede, se escutava um barulhão semelhante ao estouro de uma boiada ou 2 elefantes caindo pesadamente no chão para trepar, e lá vinha aquela enorme posta de carne morta, pingando sangue, e o cara me mostrou: você pega isso aí e joga dentro do caminhão. depois aperta de novo o botão e vem outro pedaço. aí se afastou. quando me vi sozinho, tirei o avental, o capacete, as botas (sempre davam 3 números menor que o da gente), subi a escada e dei o fora. agora estava ali de volta, outra vez na pior.
tá me parecendo meio velho pro trabalho.
tenho que endurecer os músculos. preciso de serviço pesado, pesado à beça, menti.
acha que vai aguentar?
sou forte pra burro. já lutei como profissional. enfrentei campeões.
não diga, é mesmo?
é, sim.
hum, tem cara. pelo que vejo, te pegaram de jeito.
deixa a minha cara de lado. eu era um raio com as mãos. ainda sou. também tive que me abaixar, senão ia ficar parecendo marmelada.
eu costumo acompanhar as lutas de boxe. teu nome não me diz nada.
é que eu tinha apelido. Kid Foguete.
Kid Foguete? não me lembro de ninguém com esse nome.
lutei na América do Sul, na África, na Europa, nas ilhas. Em cidades do interior. por isso é que tem todos esses espaços em branco aí na minha carteira – não gosto de escrever pugilista porque são capazes de pensar que estou brincando ou mentindo. simplesmente deixo em branco. e o resto que se dane.
tá bom. aparece amanhã de manhã às 9 pro exame médico que eu tenho um serviço pra você. quer dizer que quer um trabalho pesado?
bem, se não tiver outra coisa...
não, de momento não. sabe que você aparenta ter quase cinquenta anos? será que não estou cometendo um erro? aqui ninguém gosta de perder tempo com qualquer mocorongo que aparece.
não sou nenhum mocorongo, sou Kid Foguete.
tá legal, Kid. – deu uma risada –, vamos te botar pra TRABALHAR mesmo!
não gostei do jeito que ele disse isso.
dois dias depois passei pelo portão e entrei no galpão de madeira, onde mostrei a um velhote o crachá com o meu nome: Henry Charles Bukowski Jr., e ele me mandou procurar o Thurman no pavilhão de carga. fui até lá. tinha uma fila de sujeitos sentados num banco de madeira que me olharam como se fosse bicha ou débil mental.
encarei o grupo com ar de sereno desdém e caprichei no meu melhor estilo de boçal.
quedê o Thurman? me disseram que tenho que falar com esse cara.
um deles apontou.
Thurman?
quê?
vou trabalhar com você.
é?
é.
olhou bem para mim.
cadê as botas?
(botas?)
não tenho, respondi.
meteu a mão embaixo do banco e me entregou um par. velho e mais duro que bacalhau. calcei no pé. a mesma história de sempre: 3 números menor. me esmagava os dedos, que viraram para baixo.
depois me deu um avental sujo de sangue e o capacete. fiquei ali parado enquanto ele acendia um cigarro. jogou o fósforo longe com calma digna de macho.
vem cá.
eram todos negros. quando cheguei perto me olharam como se fossem Muçulmanos. tenho quase 1 metro e 80, mas não havia nenhum que não fosse mais alto que eu ou 2 ou 3 vezes mais corpulento.
Charley! berrou Thurman. Charley, pensei. Charley, que nem eu. que bom.
já estava suando por baixo do capacete.
bota ele pra TRABALHAR!
ah meu deus do céu. que fim levaram as noites suaves e tranquilas? por que isso não acontece com o Walter Winchell, que acredita piamente no Sistema Americano? não fui um dos mais brilhantes alunos de antropologia? o que foi que houve? Charley me pegou pelo braço e me levou para a frente de um caminhão vazio, do tamanho da metade de um quarteirão, que estava parado na plataforma.
fica esperando aqui.
aí então um bando de negros Muçulmanos veio correndo com carrinhos de mão pintados com uma tinta branca pastosa e grudenta, como se tivesse sido misturada com merda de galinha, cada carrinho trazendo um montão de pernas de porco boiando no meio de um sangue ralo e aguado. não, não boiavam no meio do sangue. estavam mergulhadas nele, que nem chumbo, feito balas de canhão, que nem mortas.
um dos negros saltou para dentro do caminhão atrás de mim e outro começou a me atirar as pernas de porco, que eu pegava e jogava para o cara parado às minhas costas, que se virava e lançava para a parte traseira do caminhão. as pernas vinham rápidas RÁPIDAS, eram pesadas e foram ficando cada vez mais. mal pegava uma e me virava, e já vinha outra a caminho, pelo ar. sabia que estavam dispostos a liquidar com o meu couro. não demorou muito comecei a suar, a suar, feito água jorrando de torneira aberta com toda a força, e a sentir dores nas costas, nos pulsos, nos braços. me doía tudo, e os joelhos, no limite da resistência possível, já baqueavam de tanto tentar manter o equilíbrio. nem conseguia enxergar direito, fazendo um esforço tremendo para apanhar mais uma perna e atirar, mais uma perna e atirar. todo salpicado de sangue e aparando com as mãos aquele PLOFT macio, morto e pesado, a carne cedendo feito nádegas de mulher ao contato dos dedos, e eu fraco demais para poder abrir a boca e reclamar, ei caras, que bicho mordeu vocês, PORRA? as pernas de porco continuavam vindo e eu a girar, pregado no chão, que nem um crucificado de capacete, e não acabavam mais de chegar, carrinhos e mais carrinhos, cheios de pernas e mais pernas de porco, até que afinal ficaram todos vazios, e eu ali parado, zonzo, o corpo oscilante, respirando o fulgor amarelado das lâmpadas elétricas. uma verdadeira noite no inferno. ué, por que estou me queixando? sempre gostei de trabalho noturno.
venha!
me levaram para outro lugar. Lá em cima, dependurada no ar, através de uma vasta abertura no alto da parede distante, a metade de um novilho, ou talvez até fosse um inteiro, sim, pensando bem, eram novilhos inteiros, com todas as quatro patas, e um deles veio saindo pelo buraco, preso a um gancho, tinha acabado de ser morto, e parou exatamente em cima de mim. ficou ali imóvel, bem na minha cabeça, suspenso por aquele gancho.
acabou de ser morto, pensei, mataram essa joça. como poderiam diferenciar um homem de um novilho? como é que iriam saber que não sou um novilho?
TÁ BOM – SACODE ELE!
sacudir ele?
isso mesmo – DANÇA COM ELE!
quê?
ah pelo amor de deus! GEORGE, vem cá!
George se colocou embaixo do novilho morto. agarrou a carcaça. UM. vacilou para a frente. DOIS. vacilou para trás. TRÊS. tomou impulso e saiu correndo. o novilho ia quase rente ao chão. alguém apertou um botão e estava tudo pronto. tudo pronto para os açougues do mundo. tudo pronto para as donas de casa fofoqueiras, rabugentas, bem descansadas e burras, espalhadas por todo este planeta, às 2 da tarde, com suas batas caseiras, tragando cigarros sujos de batom e não sentindo praticamente nada. me colocaram embaixo do novilho seguinte.
UM.
DOIS.
TRÊS.
já estava com ele. aqueles ossos inertes contra os meus vivos, aquela carne morta contra a minha palpitante, e o osso e o peso superpostos, pensei em óperas de Wagner, em cerveja gelada, na buceta provocante sentada num sofá na minha frente, com as pernas dela cruzadas e eu segurando o copo de bebida na mão e, aos poucos e com firmeza, falando e abrindo caminho para penetrar na mentalidade insensível daquele corpo, e aí Charley berrou PENDURA NO CAMINHÃO!
tomei a direção indicada. com medo do fracasso inculcado em mim quando criança no pátio de recreio das escolas americanas, sabia que não podia deixar o novilho cair no chão porque provaria que, em vez de ser homem, era um covarde e portanto só digno de escárnio, risadas e surras. na América a gente tem que ser vitorioso, não há escapatória, e é preciso aprender a lutar por ninharias, sem discutir, e de mais a mais, caso deixasse cair o novilho, era bem capaz de ter que levantá-lo sozinho. além disso, ele ficaria todo sujo. e não quero que fique, ou melhor – eles é que não querem que se suje.
Levei-o para o caminhão.
PENDURA!
o gancho que pendia do teto era liso com um polegar sem unha. deixava-se escorregar a parte traseira para trás e procurava-se a ponta superior, tateando à procura do gancho, fincando 1, 2, 3 vezes, e não havia jeito do desgraçado furar a carne. FILHA DA MÃE! !! era pura cartilagem e gordura, resistente e duro como uma pedra.
ANDA DE UMA VEZ! VAMOS LOGO COM ISSO!
empreguei minhas últimas forças e consegui enfiar o gancho. foi uma visão maravilhosa, um verdadeiro milagre, aquele gancho cravado na carne, aquele novilho dependurado ali por si mesmo, completamente – enfim! – longe do meu ombro, exposto às batas caseiras e às fofocas de açougue.
SAI DA FRENTE!
um negro de 150 quilos, insolente, brusco, frio, homicida, entrou, pendurou com estrépito a carne que trazia, e olhou lá de cima pra mim.
aqui a gente fica na fila!
tá legal, campeão.
saí andando na frente dele. já tinha outro novilho à minha espera. cada vez que carregava um, ficava certo de que era o último que daria para aguentar, mas continuava dizendo
mais um
só mais um
aí eu paro.
fodam-se.
estavam esperando que desistisse, dava para notar nos olhares, nos sorrisos, quando pensavam que não estava vendo. Não queria dar o braço a torcer. fui buscar outro novilho. o lutador, na última investida do pugilista famoso liquidado, foi buscar a carne.
passaram-se 2 horas e aí alguém berrou PAUSA.
tinha conseguido. um descanso de 10 minutos, um pouco de café e nunca que iam me fazer desistir. saí andando atrás deles em direção a uma carrocinha de lanches que havia se aproximado. dava para enxergar a fumaça do café se levantando na noite; as rosquinhas, cigarros, os bolos e sanduíches, sob as lâmpadas acesas.
EI, VOCÊ AÍ!
era Charley. Charley que nem eu.
que é, Charley?
antes de descansar, pega esse caminhão aí, tira ele daqui e leva lá pro pavilhão 18.
era o caminhão que tínhamos acabado de carregar, o de meio quarteirão de comprimento. o pavilhão 18 ficava do outro lado do pátio.
consegui abrir a porta e subi para a cabine. tinha um assento de couro macio e tão confortável que logo vi que teria que lutar para não pegar no sono. não era motorista de caminhão. baixei os olhos e deparei com meia dúzia de caixas de mudanças, freios, pedais e sei lá mais o quê. girei a chave e dei um jeito de ligar o motor. manobrei pedais e mudanças até que o caminhão começou a andar e aí saí dirigindo pelo pátio afora até chegar no pavilhão 18, o tempo todo pensando – quando voltar, a carrocinha de lanches já foi embora. para mim isso significava uma tragédia, uma verdadeira calamidade. estacionei o caminhão, desliguei o motor e fiquei ali sentado um instante, aproveitando o conforto macio daquele assento de couro. depois abri a porta e saltei. errei o degrau ou seja lá o que for que deveria estar ali e caí no chão com aquela porra de avental e merda de capacete, feito um homem que levou um tiro. não doeu nada, nem deu para sentir. me levantei ainda a tempo de ver a carrocinha de lanches saindo pelo portão e desaparecendo na rua. o grupo todo já estava voltando para a plataforma, dando risadas e acendendo cigarros.
tirei as botas, o avental e o capacete e fui até o galpão de madeira na entrada do pátio. joguei tudo em cima do balcão. o velhote olhou para mim.
quê? vai largar um emprego BOM desses? diz pra eles me mandarem o cheque de 2 horas de trabalho pelo correio. ou então pra enfiar ele no cu. pouco tou ligando, porra!
saí. atravessei a rua, entrei num bar mexicano, tomei cerveja, depois peguei o ônibus. tinha sido novamente derrotado pelo pátio de recreio das escolas americanas.

Charles Bukowski, in A mulher mais linda da cidade

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Djavan / Passou

Desespero e felicidade

          Renda anual de vinte libras, despesa de dezenove libras, dezenove xelins e seis pence, resultado: felicidade. Renda anual de vinte libras, despesa anual de vinte libras e seis pence, resultado: desespero.”

Charles Dickens, in David Copperfield

Torto arado / 2

          Nossos pais retornaram da roça e encontraram minha avó desorientada, com nossas cabeças mergulhadas numa tina de água, gritando: “Ela perdeu a língua, ela cortou a língua.” Repetia tanto que, certamente, naqueles primeiros momentos, Zeca Chapéu Grande e Salustiana Nicolau acharam que as duas filhas haviam se mutilado num ritual misterioso que, nas suas crenças, precisaria de muita imaginação para explicar. A tina era uma poça vermelha e nós duas chorávamos. Quanto mais chorávamos abraçadas, querendo pedir desculpas, mais ficava difícil saber quem tinha perdido a língua, quem teria que ir para o hospital a léguas de Água Negra. O gerente da fazenda chegou numa Ford Rural branca e verde para nos conduzir ao hospital. Essa Rural, como chamávamos, servia aos proprietários quando estavam na fazenda, servia a Sutério para os trabalhos como gerente, se deslocando entre a cidade e Água Negra, ou percorrendo as distâncias na própria fazenda, quando não queria fazer a cavalo.
Minha mãe se muniu de colchas e toalhas que recobriam as camas e a mesa, para tentar estancar o sangue. Ela gritava para meu pai, que colhia com as mãos trêmulas ervas nos canteiros próximos à casa, impaciente, transmitindo seu desespero na voz, que se tornou mais aguda, além do olhar espantado. As ervas eram para ser usadas no caminho até o hospital, em rezas e encantos. Os olhos de Belonísia estavam vermelhos de tanto choro, os meus eu não conseguia sequer sentir, e minha mãe perguntava perplexa o que havia acontecido, com o que brincávamos, mas nossas respostas eram longos gemidos difíceis de interpretar. Meu pai segurava a língua envolta numa de suas poucas camisas. Mesmo naquelas horas, meu medo era que o órgão em arrebatamento se dispusesse a falar sozinho no colo dele sobre o que havíamos feito. Que falasse sobre nossa curiosidade, nossa teimosia, nossa transgressão, nossa falta de zelo e respeito por Donana e por suas coisas. Mais ainda, sobre a nossa irresponsabilidade de colocar uma faca na boca, sabendo que facas sangram caças, sangram as crias do quintal e matam homens.
Meu pai recobriu a pequena trouxa com as folhas que havia colhido antes de sair. Da janela do carro vi meus irmãos ao redor de Donana, dona Tonha a amparando pelo braço e a levando de volta para casa. Anos depois viria a sentir remorso por esse dia, por ter deixado minha avó desnorteada, aos prantos, se sentindo incapaz de cuidar de qualquer pessoa. Durante a viagem, ouvimos a angústia de minha mãe transmitida nos sussurros de suas preces e por suas mãos calosas e sempre quentes, mas que agora pareciam saídas de uma bacia de água que dormiu ao relento no sereno da noite.
No hospital, demoramos a ser atendidas. Nossos pais estavam encolhidos em um canto ao nosso lado. Vi as calças sujas de terra que ele não teve tempo de trocar. Minha mãe tinha um lenço colorido amarrado na cabeça. Era o mesmo lenço que usava embaixo do chapéu que levava para se proteger do sol na roça. Ela limpava nossos rostos com peças da trouxa de roupa, a cada momento com um novo tecido com cheiro de guardado, e que não conseguia identificar. Meu pai ainda segurava a língua envolta na mesma camisa. As folhas estavam guardadas nos bolsos de sua calça, talvez por vergonha de o apontarem com desdém como feiticeiro dentro daquele lugar que ele não conhecia. Foi o primeiro lugar em que vi mais gente branca que preta. E vi como as pessoas nos olhavam com curiosidade, mas sem se aproximar.
Quando o médico nos levou para a sala e meu pai lhe mostrou a língua como uma flor murcha entre as mãos, vi sua cabeça balançar num sinal de negação. Vi também o suspiro que deu ao abrir nossas bocas quase ao mesmo tempo. Ela terá que ficar aqui. Terá problemas na fala, para deglutir. Não tem como reimplantar. Hoje sei que se diz assim, mas à época nem passava por minha cabeça o que tudo aquilo significava, e muito menos na cabeça de meu pai e de minha mãe. Belonísia nesse instante sequer me olhava, mas ainda continuávamos unidas.
Nossas feridas foram suturadas, e permanecemos juntas por mais dois dias. Saímos com um carregamento de antibióticos e analgésicos nas mãos. Teríamos que voltar dali a duas semanas para retirar os pontos. Teríamos que comer mingaus e purês, alimentos pastosos. Minha mãe deixaria o trabalho na roça nas semanas que se seguiriam para se dedicar integralmente aos nossos cuidados. Somente uma das filhas teria a fala e deglutição prejudicada. Mas o silêncio passaria a ser nosso mais proeminente estado a partir desse evento.
Nunca havíamos saído da fazenda. Nunca tínhamos visto uma estrada larga com carros passando para os dois lados, seguindo para os mais distantes lugares da Terra. Foi o que Sutério disse. No caminho de ida, estávamos tomados de aflição, pelo cheiro de sangue coagulando, pelas preces de meu pai e de minha mãe, atônitos. O gerente da fazenda apenas ria dizendo que crianças são iguais a gatos, que cegam, uma hora estão num lugar outra hora estão em outro, quase sempre aprontando algo para dar dor de cabeça aos pais. Que ele tinha filhos e sabia. Na volta estávamos bastante doloridas, uma mais que a outra, esgotadas da mesma forma, apesar da extensão das lesões ter sido distinta. Uma havia amputado a língua, a outra tinha tido um corte profundo, mas estava longe de perdê-la.
Nunca havíamos andado no Ford Rural da fazenda ou em qualquer outro automóvel. E como era diferente o mundo além de Água Negra! Como era diferente a cidade com suas casas grudadas uma às outras, dividindo paredes. As ruas calçadas com pedras. O chão das nossas casas e dos caminhos da fazenda eram de terra. De barro, apenas, que também servia para fazer a comida de nossas bonecas de sabugo, e de onde brotava quase tudo que comíamos. Onde enterrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos. Onde enterrávamos os restos de nossos corpos. Para onde todos desceriam algum dia. Ninguém escaparia. Só pudemos observar tudo aquilo durante o retorno, em lados opostos do veículo, com nossa mãe ao meio, absorta em pensamentos que nosso alarido havia precipitado em seu íntimo.
Ao chegarmos à casa, só estavam Zezé e Domingas, pequenos, acompanhados de dona Tonha. Vi meu pai perguntar por Donana enquanto minha mãe nos segurava pelas mãos diante da porta. Desceu faz umas duas horas para o rumo do rio, foi o que dona Tonha respondeu. Sozinha?, quiseram saber. Sim, saiu levando um embrulho.

Itamar Vieira Júnior, in Torto arado

Hagar, o Horrível

 

Acerca de ateus e cristãos

          Perguntaram um dia a alguém se havia ateus verdadeiros. Você acredita, respondeu ele, que haja cristãos verdadeiros?

Denis Diderot, in Pensamentos filosóficos

Uma histórias dos diabos (trecho)

[...]
Recordava tudo isso e não parava de refletir. É sabido que, por vezes, nos passam pela cabeça séries completas de raciocínios no espaço de um breve instante, na forma de um qualquer tipo de sensações, sem tradução para a linguagem humana corrente e, muito menos, para a língua literária. Tentaremos no entanto traduzir todas essas sensações do nosso herói e apresentar ao leitor nem que seja apenas a sua essência, isto é, o que nelas foi, por assim dizer, o mais importante e verosímil. É que muitas das nossas sensações, traduzidas para a linguagem normal, podem parecer absolutamente inverosímeis. É por isso que nunca surgem à luz do dia, embora cada qual as tenha. As sensações e os pensamentos de Ivan Iliitch eram, evidentemente, um pouco incoerentes. Bom, o leitor já sabe porquê.
Pois é! — passou-lhe pela cabeça. — Falamos, falamos, mas, na hora da verdade, nada. Por exemplo, este Pseldonímov: chegou a casa, depois da cerimónia do casamento, emocionado, cheio de esperança, à espera do momento delicioso... É um dos dias mais venturosos da sua vida... Agora está a receber os convidados, a fazer a festa... modesto, pobre, mas alegre, feliz, sincero... Então se soubesse que eu, neste preciso momento, eu, o seu chefe, estou aqui, mesmo ao lado de sua casa, a ouvir a sua música! Na verdade, o que sentiria ele? Mais: o que sentiria ele se eu, agora mesmo, entrasse de repente em casa dele? Humm... É claro que a princípio se assustaria, ficaria paralisado de embaraço. Eu ia ser um estorvo, talvez estragasse tudo... Sim, mas isso era se entrasse ali um outro general qualquer, mas não eu...
Sim, Stepan Nikiforovitch! O senhor não me compreendeu, mas aqui está um exemplo real.
Pois. Não paramos de gritar sobre o humanismo, mas somos incapazes do heroísmo, da façanha.
Qual heroísmo? Veja bem: nas relações atualmente existentes entre todos os membros da sociedade, se eu entrar, eu, depois da meia-noite, nas bodas do meu subordinado, um registador com dez rublos mensais de ordenado, será uma atrapalhação, um turbilhão de ideias, o último dia de Pompeia, o pânico! Ninguém vai compreender. Stepan Nikiforovitch nem por nada deste mundo compreenderá. Não foi ele quem disse: não vamos aguentar? Pois não, mas isso é para vós, os velhos, gente da paralisia e da estagnação. Porque eu, eu aguento! Transformo o último dia de Pompeia no mais doce dos dias para o meu subordinado, transformo um gesto louco num ato normal, patriarcal, elevado e moral. Como? Pois faça o favor de ouvir...
Bom... eu, digamos, entro; eles ficam espantados, param de dançar, olham-me como bichos do buraco, recuam. É aí, então, que eu me mostro tal como sou: vou direito a Pseldonímov e, com o mais carinhoso dos sorrisos, com as palavras mais simples, com simplíssimas palavras, digo: “Tal e tal, acabo de visitar sua excelência Stepan Nikiforovitch. Suponho que sabes que é perto daqui, na vizinhança...” E conto logo, de uma forma cômica, a minha desventura com Trífon. Depois do Trífon, passo a contar como me meti a pé... “Foi então que ouvi a música, perguntei ao polícia e fiquei a saber, meu amigo, que eram as tuas bodas. “Ora, vou visitar o meu subordinado, pensei, vou ver como é que se divertem os meus funcionários e... como são os casamentos deles. Não me vais expulsar, suponho eu!” Expulsar! Que palavra para um subordinado! Qual expulsar, qual quê! Acho é que vai ficar doido, todo afobado para me chegar uma cadeira, a tremer de exaltação, enfim, no primeiro momento vai ficar de cabeça perdida!...
O que pode haver de mais simples, de mais elegante do que este procedimento? E porque é que eu entraria lá? Isso já é outro problema. Trata-se, por assim dizer, do lado moral da questão. É esse o cerne da questão!
Humm... Onde é que eu ia? Ah, pois!
Vão com certeza sentar-me ao lado do convidado mais importante, um qualquer conselheiro titular ou parente, um capitão na reserva de nariz vermelho... Gógol descrevia lindamente esses originais. Bom, então apresento-me à noiva, é claro, apresento-lhe os meus cumprimentos, animo os convidados. Peço que não se acanhem, que se divirtam, que continuem a dançar, digo umas piadas, rio, brinco, enfim, sou amável e simpático. Aliás, sou sempre amável e simpático quando estou satisfeito comigo próprio... Humm... Na verdade, parece que ainda estou... enfim, um tanto embriagado, mas só...
... Evidentemente, eu, como gentleman, ponho-me em pé de igualdade com eles e não exijo de modo algum qualquer tratamento de privilégio... Mas, moralmente, moralmente é outra coisa: eles vão compreender e vão dar o devido valor... O meu procedimento ressuscitará neles toda a nobreza... E pronto, fico lá meia hora... Uma hora, vá lá... Saio antes da ceia, evidentemente, mas eles vão azafamar-se a assar coisas, a fritar, depois convidam-me, com muitas vênias, mas eu bebo apenas um copo, dou os parabéns, e recuso-me a cear. Direi: tenho assuntos para tratar. E quando eu pronunciar a palavra “assuntos”, vão fazer todos umas caras de respeito, sisudas. E assim, delicadamente, lembro-lhes que entre mim e eles há uma certa diferença, há sim senhor. Terra e céu. Não é que eu queira impor semelhante ideia, mas é preciso... é uma coisa necessária, até no sentido moral, nada a fazer. Aliás, logo a seguir sorrio, até me rio um pouco, pronto, e toda a gente vai ficar animada... Brinco mais uma vez com a noiva, humm... até pode ser assim: insinuo que volto dentro de nove meses na qualidade de padrinho, ih, ih! De certeza que ela vai dar à luz nesse prazo. É que eles reproduzem-se como coelhos. Então todos se riem, a noiva fica muito corada; eu dou-lhe um beijo sentido na fronte, até a abençoo e... pronto, amanhã já o meu feito é conhecido no serviço. Mas amanhã volto a ser rigoroso, exigente, até implacável, mas entretanto já eles sabem como eu sou, já conhecem a minha alma, a minha essência: “Como chefe é muito rigoroso, mas como pessoa é um anjo!” É esta a minha vitória: apanhá-los com uma pequena ação que a vós, meus senhores, nem passaria pela cabeça; torná-los meus: eu sou o pai, eles são os filhos... Ora veja lá Vossa Excelência, Stepan Nikiforovitch, se é capaz de fazer o mesmo...
Será que não sabe, Stepan Nikiforovitch, será que não compreende que o Pseldonímov contará mais tarde aos filhos que nas suas bodas até esteve o general, a beber com ele! Depois os filhos contarão aos seus filhos, e estes aos seus netos, como um caso lendário e sagrado, que um tal dignitário, um homem de Estado (nessa altura serei tudo isso) os honrou, etc., etc. Elevarei moralmente o humilhado, devolvê-lo-ei a si mesmo... É que ele recebe dez rublos mensais de vencimento!... Pois é, e se eu repetir isto cinco ou dez vezes, ou qualquer outra coisa do gênero, adquiro popularidade por todo o lado... Fico gravado em todos os corações, e só o diabo sabe o que virá depois disso, da popularidade...”
Assim, ou quase assim, raciocinava Ivan Iliitch (é que, meus senhores, a gente às vezes diz cada coisa mentalmente, sobretudo num estado um pouco excêntrico!). Todos estes raciocínios relampejaram na sua cabeça no espaço de uns trinta segundos, e seria de prever que, depois de ter envergonhado mentalmente Stepan Nikiforovitch, Ivan Iliitch iria tranquilamente para casa deitar-se. E faria muito bem! Mas, infelizmente, o momento era mesmo excêntrico.
Nem de propósito, neste momento desenharam-se-lhe de súbito na sua imaginação desconcertada as caras convencidas de Stepan Nikiforovitch e Semion Ivánovitch.
Não vamos aguentar! — voltava a dizer Stepan Nikiforovitch, sorrindo com altivez.
Ih, ih, ih! — secundava-o Semion Ivánovitch com o mais abominável dos seus sorrisos.
Vamos lá a ver se não aguentaremos! — disse resolutamente Ivan Iliitch, e até o calor lhe subiu ao rosto. Saiu do passeio e atravessou em passo firme a rua, a caminho da casa do seu subordinado, o registador Pseldonímov.
[…]

Fiodor Dostoiévski, Uma histórias dos diabos