Mesmo em maio — com manhãs secas e
frias — sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convicção
e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim.
Desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado
pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri
imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A
vida me pareceu inteiramente concluída. Inventei-me mais inverdades
para vencer o dia amanhecendo sob névoa. Preencher um dia é
demasiadamente penoso, se não me ocupo das mentiras.
Dói. Dói muito. Dói pelo corpo
inteiro. Principia nas unhas, passa pelos cabelos, contagia os ossos,
penaliza a memória e se estende pela altura da pele. Nada fica sem
dor. Também os olhos, que só armazenam as imagens do que já fora,
doem. A dor vem de afastadas distâncias, sepultados tempos,
inconvenientes lugares, inseguros futuros. Não se chora pelo amanhã.
Só se salga a carne morta.
No princípio, se um de nós caía, a dor
doía ligeiro. Um beijo seu curava a cabeça batida na terra, o dedo
espremido na dobradiça da porta, o pé tropeçado no degrau da
escada, o braço torcido no galho da árvore. Seu beijo de mãe era
um santo remédio. Ao machucar, pedia-se: mãe, beija aqui!
Há que experimentar o prazer para, só
depois, bem suportar a dor. Vim ao mundo molhado pelo desenlace. A
dor do parto é também de quem nasce. Todo parto decreta um pesaroso
abandono. Nascer é afastar-se — em lágrimas — do paraíso, é
condenar-se à liberdade. Houve, e só depois, o tempo da alegria ao
enxergar o mundo como o mais absoluto e sucessivo milagre: fogo,
terra, água, ar e o impiedoso tempo.
Sem a mãe, a casa veio a ser um lugar
provisório. Uma estação com indecifrável plataforma, onde
espreitávamos um cargueiro para ignorado destino. Não se desata com
delicadeza o nó que nos amarra à mãe.
Impossível adivinhar, ao certo, a
direção do nosso bilhete de partida. Sem poder recuar, os trilhos
corriam exatos diante de nossos corações imprecisos. Os cômodos
sombrios da casa — antes bem-aventurança primavera — abrigavam
passageiros sem linha do horizonte. Se fora o lugar da mãe, hoje
ventilava obstinado exílio. Oito. A madrasta retalhava um tomate em
fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos. Era possível
entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua
transparência. Com a saudade evaporando pelos olhos, eu insistia em
justificar a economia que administrava seus gestos. Afiando a faca no
cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo,
maduro, como se degolasse cada um de nós. Seis.
O pai, amparado pela prateleira da
cozinha, com o suor desinfetando o ar, tamanho o cheiro do álcool,
reparava na fome dos filhos. Enxergava o manejo da faca desafiando o
tomate e, por certo, nos pensava devorados pelo vento ou tempestade,
segundo decretava a nova mulher. Todos os dias — cotidianamente —
havia tomate para o almoço. Eles germinavam em todas as estações.
Jabuticaba, manga, laranja, floresciam cada uma em seu tempo. Tomate,
não. Ele frutificava, continuamente, sem demandar adubo além do
ciúme. Eu desconhecia se era mais importante o tomate ou o ritual de
cortá-lo. As fatias delgadas escreviam um ódio e só aqueles que se
sentem intrusos ao amor podem tragar.
Sem o colo da mãe eu me fartava em falta
de amor. O medo de permanecer desamado fazia de mim o mais inquieto
dos enredos. Para abrandar minha impaciência, sujeitava-me aos
caprichos de muitos. Exercia a arte de me supor capaz de adivinhar os
desejos de todos que me cercavam. Engolia o tomate imaginando ser
ambrosia ou claras em neve, batidas com açúcar e nadando num mar de
leite, como praticava minha mãe — ilha flutuante — com as mãos
do amor.
Eu desconhecia o amor, mesmo fantasiando
em me sentir amado. Repetia o verbo amar a Deus sobre todas as
coisas, amar o próximo como a si mesmo, não matar, não pecar
contra a castidade, honrar pai e mãe, por frequentar a catequese,
nas tardes ociosas dos sábados. Decorar os dez mandamentos encurtava
o caminho para o céu, tantos me repetiam. E contrito, mãos
amarradas sobre o peito, eu duvidava da fé, mas insistia em crer em
Deus Pai, todo-poderoso. Atravessar do infinito ao infinito e
alcançar o pleno azul, sobre a bicicleta do padre, negociada em
pecado e segredo, tornava o céu mais viável.
A mãe partiu cedo — manhã seca e fria
de maio — sem levar o amor que diziam eu ter por ela. Daí, veio me
sobrar amor e sem ter a quem amar. Nas manhãs de maio o ar é frio e
seco, assim como retruca o coração nos abandonos. Ela viajou
indignada, por não ser consultada. Evadiu-se, sem suplicar um
socorro. Nem murmurou um “com licença” — eu confirmo — para
adentrar em outra vida, como nos era recomendado. Já não cantava,
sobrevivia isenta, respirando o medo pelo desconhecido. A mão da
morte soterrou até sua sombra. Foi um adeus inteiro, definitivo,
rigoroso, sem escutar nosso pesar. Eu pronunciava, seguidamente, a
palavra amor, amor, sem ter a presença amada.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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