domingo, 31 de janeiro de 2021

Nkali

          É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma palavra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer “ser maior do que outro”. Assim como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo princípio de nkali: como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas depende muito de poder.
O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva. O poeta palestino Mourid Barghouti escreveu que, se você quiser espoliar um povo, a maneira mais simples é contar a história dele e começar com “em segundo lugar”. Comece a história com as flechas dos indígenas americanos, e não com a chegada dos britânicos, e a história será completamente diferente. Comece a história com o fracasso do Estado africano, e não com a criação colonial do Estado africano, e a história será completamente diferente.
Há pouco tempo dei uma palestra numa universidade e um aluno me disse que era uma grande pena que os homens nigerianos fossem agressivos como o personagem do pai no meu romance. Eu disse a ele que tinha acabado de ler um livro chamado O psicopata americano e que achava que era uma grande pena que os jovens americanos fossem assassinos em série.
Bem, obviamente eu disse isso num leve ataque de irritação. Mas jamais teria me ocorrido pensar que, só porque li um romance no qual o personagem era um assassino em série, ele de alguma maneira representava todos os americanos. Não digo isso porque me considero uma pessoa melhor do que esse aluno, mas porque, graças ao poder econômico e cultural dos Estados Unidos, tive acesso a muitas histórias sobre esse país. Já tinha lido Tyler, Updike, Steinbeck e Gaitskill. Não tinha uma história única dos Estados Unidos.

Quando descobri, alguns anos atrás, que se esperava que os escritores tivessem tido infâncias muito infelizes para ser bem-sucedidos, comecei a pensar em como inventar coisas horríveis que meus pais poderiam ter feito comigo. Mas a verdade é que tive uma infância muito feliz, cheia de riso e amor, numa família muito próxima.
Também tive avós que morreram em campos de refugiados. Meu primo Polle morreu porque não recebeu tratamento médico adequado. Um dos meus melhores amigos, Okoloma, morreu num acidente de avião porque nossos caminhões de bombeiros não tinham água. Minha infância transcorreu durante governos militares que desvalorizavam a educação, de modo que às vezes meus pais não recebiam seus salários. Então, quando eu era criança, vi a geleia desaparecer da mesa do café, depois a margarina, depois o pão ficou caro demais, depois o leite foi racionado. Acima de tudo, uma espécie de medo político normalizado invadiu nossa vida.
Todas essas histórias me fazem quem eu sou. Mas insistir só nas histórias negativas é simplificar minha experiência e não olhar para as muitas outras histórias que me formaram.
A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história.
É claro que a África é um continente repleto de catástrofes. Existem algumas enormes, como os estupros aterradores no Congo, e outras deprimentes, como o fato de que 5 mil pessoas se candidatam a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas existem outras histórias que não são sobre catástrofes, e é muito importante, igualmente importante, falar sobre elas.

Chimamanda Ngozi Adichie, in O perigo de uma história única

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