Que
lógica, afinal, há na memória? Lembramos de muita coisa quando
queremos, e grande parte de nossa vida se baseia nisso. Mas também
lembramos do que não queremos, do que nos faz mal, de coisas
desimportantes e esquecemos do que gostamos, do que nos fez bem, de
algo de que precisaríamos com urgência. E nem falo dos efeitos mais
compreensíveis da idade, que, como com todo o resto, também agem
sobre a lembrança e o esquecimento. O contrassenso é total, quando
penso, por exemplo, que, aos cinquenta e cinco anos — idade para já
se esquecer, ao abrir a geladeira, o que é que se foi pegar lá —,
esqueço do nome de uma de minhas primas mais queridas, e, por outro
lado, lembro dos nomes de todos os jogadores da seleção de 74, time
de pouca importância e no qual eu mal prestei atenção. Por que
lembro desses nomes? O que faz com que minha memória traga coisas
que não me dizem respeito, não me dizem mesmo nada, não têm
relação com algo que me traumatizou, nada absolutamente? Teria a
memória também a função de fixar amenidades, simplesmente porque
sim, porque, como o espancador de Kafka, cuja tarefa é só espancar,
a memória lembra assim, à toa, só por lembrar?
Se
não fosse assim, por que esqueço de como era o braço de meu pai
sobre meu ombro, mas lembro de sua camisa para fora da calça; da
coca-cola que ele bebia inteira, direto do gargalo da garrafa, num
único gole, e que eu olhava admirada e invejosa; do sorvete Ki-Show
que nós comíamos juntos e escondidos de minha mãe no boteco da
esquina de casa; da linguiça que devorávamos na rua São Bento, ele
que não podia comer carne de porco; do elástico de borracha que
envolvia o maço de dinheiro que ele guardava no bolso lateral da
calça de tergal; do caranguejo de plástico que ele comprava no
centro da cidade e punha sem ninguém ver no sofá de casa para que,
quando eu voltasse da escola, sem dar pela coisa, me assustasse e eu
na verdade não me assustava, mas fingia que sim para agradá-lo; do
contorno de seu nariz enorme que eu desenhei com a mão quando o vi
morto sob um lençol; do momento em que eu disse que não gostava
dele e ele saiu desembestado pela rua, dizendo que tinha criado um
monstro e eu indo atrás me desculpando, pai, pelo amor de Deus, pai,
me desculpe, não foi isso o que eu quis dizer, só desabafei; de
quando eu ia junto com ele ao banco na rua da Graça e ria porque ele
fazia contas em voz alta e porque “vezes” em iugoslavo se diz
“puta” e ele falava: “tri puta tri puta dva”; de como ele me
agarrava pelas mãos, quando eu era bem pequena, na praia, e me
lançava por baixo de suas pernas ou por cima dos ombros; de quando
implorava que eu fosse para o mar junto com ele, porque afinal o mar
é que era a melhor terapia, e que eu parasse de frequentar o
psicólogo, porque nada se resolvia falando; de como o filme que ele
mais amava na vida era Horizonte
perdido,
e que Shangri-lá, sim, é que era o lugar perfeito e não esse país
ridículo onde vivíamos; de como ele admirava tanto Jânio Quadros
como Fidel Castro porque ambos eram seguros do que diziam e realmente
se interessavam pelo povo; de como ele era a favor de uma ditadura do
proletariado; como ele queria ser “ou guarda de trânsito ou
presidente da República ou um milionário da fundição, igual ao
Antônio Ermírio de Moraes”; como ele achava que os grandes males
do século XX tinham sido “a empregada doméstica, a pílula
anticoncepcional e a televisão”; da forma nostálgica e sensual
como ele admirava as pernas da Elba Ramalho; da caneta Bic que ele
mantinha sempre no bolso da camisa como se fosse uma Mont Blanc, não
permitindo que ninguém a pegasse emprestado; como ele chamava os
funcionários de sua pequena fábrica de “Ilustre!”; como ele
pedia que eu lhe desse um beijo na bochecha, dizendo “aplica”;
como ele gostava de bife com batatas fritas e só pedia esse único
prato em todos os restaurantes aonde íamos, fosse na churrascaria
mais cara da cidade ou na cantina do bairro; como ele conversava com
os mendigos da rua, que frequentavam sua mesa e a quem ele dava
mesadas ou semanadas regulares; como ele me dizia “conta alguma
coisa, para de estudar um pouco e vem conversar com o teu pai”;
como ele perguntava para todos os amigos que chegavam em casa: “que
acha da conjuntura política e econômica internacional?”; como ele
odiava borrachudos e largou uma casa alugada por um mês em Ilhabela
depois de apenas dois dias, por causa deles; como ele e minha mãe
sempre pediam os mesmos sabores de sorvete no Alaska, limão e
pistache; como ele não gostava de viajar porque dizia que em todas
as cidades se vê sempre a mesma coisa: igrejas, monumentos e museus;
como ele se trancava com o primeiro neto em seu quarto, pendurando do
lado de fora da porta um aviso “não perturbe”, e ficava por mais
de quatro, cinco horas brincando com ele; de como quando, ao ser
advertido por mim sobre a grande quantidade de brinquedos que ele
comprava para esse neto e de como isso podia fazer mal ao menino, ele
respondeu, mas se ele fica feliz, e então eu fico também, qual é o
problema?; como ele se orgulhava, nas cartas que escrevia aos
clientes, de usar a palavra “referente”, porque a considerava uma
palavra chique; como ele fingia ter um caso com uma de suas
costureiras, ou talvez tivesse mesmo; como ele me pedia que apertasse
a cabeça dele, que sempre doía, e quando eu apertava, ele dizia,
“ai de ió”, que eu nunca quis saber o que quer dizer, mas
intuitivamente sabia.
Mas
de seu braço, que, tenho certeza, ele colocava sobre meu ombro, com
aquela sua mão grande, a sensação desse peso leve e quente eu não
consigo lembrar.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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