domingo, 31 de janeiro de 2021

Sobre meus ombros

          Que lógica, afinal, há na memória? Lembramos de muita coisa quando queremos, e grande parte de nossa vida se baseia nisso. Mas também lembramos do que não queremos, do que nos faz mal, de coisas desimportantes e esquecemos do que gostamos, do que nos fez bem, de algo de que precisaríamos com urgência. E nem falo dos efeitos mais compreensíveis da idade, que, como com todo o resto, também agem sobre a lembrança e o esquecimento. O contrassenso é total, quando penso, por exemplo, que, aos cinquenta e cinco anos — idade para já se esquecer, ao abrir a geladeira, o que é que se foi pegar lá —, esqueço do nome de uma de minhas primas mais queridas, e, por outro lado, lembro dos nomes de todos os jogadores da seleção de 74, time de pouca importância e no qual eu mal prestei atenção. Por que lembro desses nomes? O que faz com que minha memória traga coisas que não me dizem respeito, não me dizem mesmo nada, não têm relação com algo que me traumatizou, nada absolutamente? Teria a memória também a função de fixar amenidades, simplesmente porque sim, porque, como o espancador de Kafka, cuja tarefa é só espancar, a memória lembra assim, à toa, só por lembrar?
Se não fosse assim, por que esqueço de como era o braço de meu pai sobre meu ombro, mas lembro de sua camisa para fora da calça; da coca-cola que ele bebia inteira, direto do gargalo da garrafa, num único gole, e que eu olhava admirada e invejosa; do sorvete Ki-Show que nós comíamos juntos e escondidos de minha mãe no boteco da esquina de casa; da linguiça que devorávamos na rua São Bento, ele que não podia comer carne de porco; do elástico de borracha que envolvia o maço de dinheiro que ele guardava no bolso lateral da calça de tergal; do caranguejo de plástico que ele comprava no centro da cidade e punha sem ninguém ver no sofá de casa para que, quando eu voltasse da escola, sem dar pela coisa, me assustasse e eu na verdade não me assustava, mas fingia que sim para agradá-lo; do contorno de seu nariz enorme que eu desenhei com a mão quando o vi morto sob um lençol; do momento em que eu disse que não gostava dele e ele saiu desembestado pela rua, dizendo que tinha criado um monstro e eu indo atrás me desculpando, pai, pelo amor de Deus, pai, me desculpe, não foi isso o que eu quis dizer, só desabafei; de quando eu ia junto com ele ao banco na rua da Graça e ria porque ele fazia contas em voz alta e porque “vezes” em iugoslavo se diz “puta” e ele falava: “tri puta tri puta dva”; de como ele me agarrava pelas mãos, quando eu era bem pequena, na praia, e me lançava por baixo de suas pernas ou por cima dos ombros; de quando implorava que eu fosse para o mar junto com ele, porque afinal o mar é que era a melhor terapia, e que eu parasse de frequentar o psicólogo, porque nada se resolvia falando; de como o filme que ele mais amava na vida era Horizonte perdido, e que Shangri-lá, sim, é que era o lugar perfeito e não esse país ridículo onde vivíamos; de como ele admirava tanto Jânio Quadros como Fidel Castro porque ambos eram seguros do que diziam e realmente se interessavam pelo povo; de como ele era a favor de uma ditadura do proletariado; como ele queria ser “ou guarda de trânsito ou presidente da República ou um milionário da fundição, igual ao Antônio Ermírio de Moraes”; como ele achava que os grandes males do século XX tinham sido “a empregada doméstica, a pílula anticoncepcional e a televisão”; da forma nostálgica e sensual como ele admirava as pernas da Elba Ramalho; da caneta Bic que ele mantinha sempre no bolso da camisa como se fosse uma Mont Blanc, não permitindo que ninguém a pegasse emprestado; como ele chamava os funcionários de sua pequena fábrica de “Ilustre!”; como ele pedia que eu lhe desse um beijo na bochecha, dizendo “aplica”; como ele gostava de bife com batatas fritas e só pedia esse único prato em todos os restaurantes aonde íamos, fosse na churrascaria mais cara da cidade ou na cantina do bairro; como ele conversava com os mendigos da rua, que frequentavam sua mesa e a quem ele dava mesadas ou semanadas regulares; como ele me dizia “conta alguma coisa, para de estudar um pouco e vem conversar com o teu pai”; como ele perguntava para todos os amigos que chegavam em casa: “que acha da conjuntura política e econômica internacional?”; como ele odiava borrachudos e largou uma casa alugada por um mês em Ilhabela depois de apenas dois dias, por causa deles; como ele e minha mãe sempre pediam os mesmos sabores de sorvete no Alaska, limão e pistache; como ele não gostava de viajar porque dizia que em todas as cidades se vê sempre a mesma coisa: igrejas, monumentos e museus; como ele se trancava com o primeiro neto em seu quarto, pendurando do lado de fora da porta um aviso “não perturbe”, e ficava por mais de quatro, cinco horas brincando com ele; de como quando, ao ser advertido por mim sobre a grande quantidade de brinquedos que ele comprava para esse neto e de como isso podia fazer mal ao menino, ele respondeu, mas se ele fica feliz, e então eu fico também, qual é o problema?; como ele se orgulhava, nas cartas que escrevia aos clientes, de usar a palavra “referente”, porque a considerava uma palavra chique; como ele fingia ter um caso com uma de suas costureiras, ou talvez tivesse mesmo; como ele me pedia que apertasse a cabeça dele, que sempre doía, e quando eu apertava, ele dizia, “ai de ió”, que eu nunca quis saber o que quer dizer, mas intuitivamente sabia.
Mas de seu braço, que, tenho certeza, ele colocava sobre meu ombro, com aquela sua mão grande, a sensação desse peso leve e quente eu não consigo lembrar.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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