sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Kid Foguete no matadouro

          Me vi de novo na lona e desta vez nervoso demais de tanto tomar vinho; o olhar desvairado, caindo de fraqueza; tão deprimido que nem podia pensar em recorrer ao quebra-galho de sempre, à minha pausa para recalibrar, topando qualquer serviço em departamento de expedição ou almoxarifado. por isso resolvi ir ao matadouro.
entrei no escritório.
não te conheço?, perguntou o cara.
que eu saiba não, menti.
já tinha estado lá duas ou três vezes, preenchendo toda aquela papelada, passando por exame médico etc. e tal, e então me levaram até uma escada, por onde descemos quatro andares, o frio cada vez pior, o chão reluzente de sangue, ladrilhos verdes e o azulejo das paredes também. Explicaram o que eu tinha que fazer: consistia em apertar um botão e aí, pelo buraco aberto na parede, se escutava um barulhão semelhante ao estouro de uma boiada ou 2 elefantes caindo pesadamente no chão para trepar, e lá vinha aquela enorme posta de carne morta, pingando sangue, e o cara me mostrou: você pega isso aí e joga dentro do caminhão. depois aperta de novo o botão e vem outro pedaço. aí se afastou. quando me vi sozinho, tirei o avental, o capacete, as botas (sempre davam 3 números menor que o da gente), subi a escada e dei o fora. agora estava ali de volta, outra vez na pior.
tá me parecendo meio velho pro trabalho.
tenho que endurecer os músculos. preciso de serviço pesado, pesado à beça, menti.
acha que vai aguentar?
sou forte pra burro. já lutei como profissional. enfrentei campeões.
não diga, é mesmo?
é, sim.
hum, tem cara. pelo que vejo, te pegaram de jeito.
deixa a minha cara de lado. eu era um raio com as mãos. ainda sou. também tive que me abaixar, senão ia ficar parecendo marmelada.
eu costumo acompanhar as lutas de boxe. teu nome não me diz nada.
é que eu tinha apelido. Kid Foguete.
Kid Foguete? não me lembro de ninguém com esse nome.
lutei na América do Sul, na África, na Europa, nas ilhas. Em cidades do interior. por isso é que tem todos esses espaços em branco aí na minha carteira – não gosto de escrever pugilista porque são capazes de pensar que estou brincando ou mentindo. simplesmente deixo em branco. e o resto que se dane.
tá bom. aparece amanhã de manhã às 9 pro exame médico que eu tenho um serviço pra você. quer dizer que quer um trabalho pesado?
bem, se não tiver outra coisa...
não, de momento não. sabe que você aparenta ter quase cinquenta anos? será que não estou cometendo um erro? aqui ninguém gosta de perder tempo com qualquer mocorongo que aparece.
não sou nenhum mocorongo, sou Kid Foguete.
tá legal, Kid. – deu uma risada –, vamos te botar pra TRABALHAR mesmo!
não gostei do jeito que ele disse isso.
dois dias depois passei pelo portão e entrei no galpão de madeira, onde mostrei a um velhote o crachá com o meu nome: Henry Charles Bukowski Jr., e ele me mandou procurar o Thurman no pavilhão de carga. fui até lá. tinha uma fila de sujeitos sentados num banco de madeira que me olharam como se fosse bicha ou débil mental.
encarei o grupo com ar de sereno desdém e caprichei no meu melhor estilo de boçal.
quedê o Thurman? me disseram que tenho que falar com esse cara.
um deles apontou.
Thurman?
quê?
vou trabalhar com você.
é?
é.
olhou bem para mim.
cadê as botas?
(botas?)
não tenho, respondi.
meteu a mão embaixo do banco e me entregou um par. velho e mais duro que bacalhau. calcei no pé. a mesma história de sempre: 3 números menor. me esmagava os dedos, que viraram para baixo.
depois me deu um avental sujo de sangue e o capacete. fiquei ali parado enquanto ele acendia um cigarro. jogou o fósforo longe com calma digna de macho.
vem cá.
eram todos negros. quando cheguei perto me olharam como se fossem Muçulmanos. tenho quase 1 metro e 80, mas não havia nenhum que não fosse mais alto que eu ou 2 ou 3 vezes mais corpulento.
Charley! berrou Thurman. Charley, pensei. Charley, que nem eu. que bom.
já estava suando por baixo do capacete.
bota ele pra TRABALHAR!
ah meu deus do céu. que fim levaram as noites suaves e tranquilas? por que isso não acontece com o Walter Winchell, que acredita piamente no Sistema Americano? não fui um dos mais brilhantes alunos de antropologia? o que foi que houve? Charley me pegou pelo braço e me levou para a frente de um caminhão vazio, do tamanho da metade de um quarteirão, que estava parado na plataforma.
fica esperando aqui.
aí então um bando de negros Muçulmanos veio correndo com carrinhos de mão pintados com uma tinta branca pastosa e grudenta, como se tivesse sido misturada com merda de galinha, cada carrinho trazendo um montão de pernas de porco boiando no meio de um sangue ralo e aguado. não, não boiavam no meio do sangue. estavam mergulhadas nele, que nem chumbo, feito balas de canhão, que nem mortas.
um dos negros saltou para dentro do caminhão atrás de mim e outro começou a me atirar as pernas de porco, que eu pegava e jogava para o cara parado às minhas costas, que se virava e lançava para a parte traseira do caminhão. as pernas vinham rápidas RÁPIDAS, eram pesadas e foram ficando cada vez mais. mal pegava uma e me virava, e já vinha outra a caminho, pelo ar. sabia que estavam dispostos a liquidar com o meu couro. não demorou muito comecei a suar, a suar, feito água jorrando de torneira aberta com toda a força, e a sentir dores nas costas, nos pulsos, nos braços. me doía tudo, e os joelhos, no limite da resistência possível, já baqueavam de tanto tentar manter o equilíbrio. nem conseguia enxergar direito, fazendo um esforço tremendo para apanhar mais uma perna e atirar, mais uma perna e atirar. todo salpicado de sangue e aparando com as mãos aquele PLOFT macio, morto e pesado, a carne cedendo feito nádegas de mulher ao contato dos dedos, e eu fraco demais para poder abrir a boca e reclamar, ei caras, que bicho mordeu vocês, PORRA? as pernas de porco continuavam vindo e eu a girar, pregado no chão, que nem um crucificado de capacete, e não acabavam mais de chegar, carrinhos e mais carrinhos, cheios de pernas e mais pernas de porco, até que afinal ficaram todos vazios, e eu ali parado, zonzo, o corpo oscilante, respirando o fulgor amarelado das lâmpadas elétricas. uma verdadeira noite no inferno. ué, por que estou me queixando? sempre gostei de trabalho noturno.
venha!
me levaram para outro lugar. Lá em cima, dependurada no ar, através de uma vasta abertura no alto da parede distante, a metade de um novilho, ou talvez até fosse um inteiro, sim, pensando bem, eram novilhos inteiros, com todas as quatro patas, e um deles veio saindo pelo buraco, preso a um gancho, tinha acabado de ser morto, e parou exatamente em cima de mim. ficou ali imóvel, bem na minha cabeça, suspenso por aquele gancho.
acabou de ser morto, pensei, mataram essa joça. como poderiam diferenciar um homem de um novilho? como é que iriam saber que não sou um novilho?
TÁ BOM – SACODE ELE!
sacudir ele?
isso mesmo – DANÇA COM ELE!
quê?
ah pelo amor de deus! GEORGE, vem cá!
George se colocou embaixo do novilho morto. agarrou a carcaça. UM. vacilou para a frente. DOIS. vacilou para trás. TRÊS. tomou impulso e saiu correndo. o novilho ia quase rente ao chão. alguém apertou um botão e estava tudo pronto. tudo pronto para os açougues do mundo. tudo pronto para as donas de casa fofoqueiras, rabugentas, bem descansadas e burras, espalhadas por todo este planeta, às 2 da tarde, com suas batas caseiras, tragando cigarros sujos de batom e não sentindo praticamente nada. me colocaram embaixo do novilho seguinte.
UM.
DOIS.
TRÊS.
já estava com ele. aqueles ossos inertes contra os meus vivos, aquela carne morta contra a minha palpitante, e o osso e o peso superpostos, pensei em óperas de Wagner, em cerveja gelada, na buceta provocante sentada num sofá na minha frente, com as pernas dela cruzadas e eu segurando o copo de bebida na mão e, aos poucos e com firmeza, falando e abrindo caminho para penetrar na mentalidade insensível daquele corpo, e aí Charley berrou PENDURA NO CAMINHÃO!
tomei a direção indicada. com medo do fracasso inculcado em mim quando criança no pátio de recreio das escolas americanas, sabia que não podia deixar o novilho cair no chão porque provaria que, em vez de ser homem, era um covarde e portanto só digno de escárnio, risadas e surras. na América a gente tem que ser vitorioso, não há escapatória, e é preciso aprender a lutar por ninharias, sem discutir, e de mais a mais, caso deixasse cair o novilho, era bem capaz de ter que levantá-lo sozinho. além disso, ele ficaria todo sujo. e não quero que fique, ou melhor – eles é que não querem que se suje.
Levei-o para o caminhão.
PENDURA!
o gancho que pendia do teto era liso com um polegar sem unha. deixava-se escorregar a parte traseira para trás e procurava-se a ponta superior, tateando à procura do gancho, fincando 1, 2, 3 vezes, e não havia jeito do desgraçado furar a carne. FILHA DA MÃE! !! era pura cartilagem e gordura, resistente e duro como uma pedra.
ANDA DE UMA VEZ! VAMOS LOGO COM ISSO!
empreguei minhas últimas forças e consegui enfiar o gancho. foi uma visão maravilhosa, um verdadeiro milagre, aquele gancho cravado na carne, aquele novilho dependurado ali por si mesmo, completamente – enfim! – longe do meu ombro, exposto às batas caseiras e às fofocas de açougue.
SAI DA FRENTE!
um negro de 150 quilos, insolente, brusco, frio, homicida, entrou, pendurou com estrépito a carne que trazia, e olhou lá de cima pra mim.
aqui a gente fica na fila!
tá legal, campeão.
saí andando na frente dele. já tinha outro novilho à minha espera. cada vez que carregava um, ficava certo de que era o último que daria para aguentar, mas continuava dizendo
mais um
só mais um
aí eu paro.
fodam-se.
estavam esperando que desistisse, dava para notar nos olhares, nos sorrisos, quando pensavam que não estava vendo. Não queria dar o braço a torcer. fui buscar outro novilho. o lutador, na última investida do pugilista famoso liquidado, foi buscar a carne.
passaram-se 2 horas e aí alguém berrou PAUSA.
tinha conseguido. um descanso de 10 minutos, um pouco de café e nunca que iam me fazer desistir. saí andando atrás deles em direção a uma carrocinha de lanches que havia se aproximado. dava para enxergar a fumaça do café se levantando na noite; as rosquinhas, cigarros, os bolos e sanduíches, sob as lâmpadas acesas.
EI, VOCÊ AÍ!
era Charley. Charley que nem eu.
que é, Charley?
antes de descansar, pega esse caminhão aí, tira ele daqui e leva lá pro pavilhão 18.
era o caminhão que tínhamos acabado de carregar, o de meio quarteirão de comprimento. o pavilhão 18 ficava do outro lado do pátio.
consegui abrir a porta e subi para a cabine. tinha um assento de couro macio e tão confortável que logo vi que teria que lutar para não pegar no sono. não era motorista de caminhão. baixei os olhos e deparei com meia dúzia de caixas de mudanças, freios, pedais e sei lá mais o quê. girei a chave e dei um jeito de ligar o motor. manobrei pedais e mudanças até que o caminhão começou a andar e aí saí dirigindo pelo pátio afora até chegar no pavilhão 18, o tempo todo pensando – quando voltar, a carrocinha de lanches já foi embora. para mim isso significava uma tragédia, uma verdadeira calamidade. estacionei o caminhão, desliguei o motor e fiquei ali sentado um instante, aproveitando o conforto macio daquele assento de couro. depois abri a porta e saltei. errei o degrau ou seja lá o que for que deveria estar ali e caí no chão com aquela porra de avental e merda de capacete, feito um homem que levou um tiro. não doeu nada, nem deu para sentir. me levantei ainda a tempo de ver a carrocinha de lanches saindo pelo portão e desaparecendo na rua. o grupo todo já estava voltando para a plataforma, dando risadas e acendendo cigarros.
tirei as botas, o avental e o capacete e fui até o galpão de madeira na entrada do pátio. joguei tudo em cima do balcão. o velhote olhou para mim.
quê? vai largar um emprego BOM desses? diz pra eles me mandarem o cheque de 2 horas de trabalho pelo correio. ou então pra enfiar ele no cu. pouco tou ligando, porra!
saí. atravessei a rua, entrei num bar mexicano, tomei cerveja, depois peguei o ônibus. tinha sido novamente derrotado pelo pátio de recreio das escolas americanas.

Charles Bukowski, in A mulher mais linda da cidade

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