sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A irresistível necessidade de acreditar

          Ao discutirmos a complexa relação entre ciência e religião, com frequência nos deparamos com posições polarizadas: ou se afirma “acredito” ou se afirma “não acredito”, com total convicção em ambos os casos. Com frequência ainda maior, se perguntarmos no quê, exatamente, a pessoa acredita, ou de onde vem a necessidade de sua fé, nos deparamos com respostas vagas, que incluem “tradição”, “comunidade”, “mortalidade”. Um grupo menor, que se dá a reflexões mais profundas, examina, questiona e reavalia sua fé regularmente, sabendo que o crer é fluido. Nossas convicções mudam com a idade e, com essas mudanças, muda, também, nossa relação com a fé.
Nessa polarização milenar, muita animosidade desnecessária vem da convicção infundada de que os que têm opinião diferente da nossa em relação à fé, ou os que acreditam de forma diferente, estão profundamente equivocados, ou são simplesmente tolos ou, pior, são infiéis que não merecem viver. Deixando de lado a radicalização trágica dos muçulmanos de organizações terroristas como ISIS ou Al-Qaeda, vimos exemplos mais amenos, mas não menos sintomáticos, do radicalismo entre ateus e cristãos nos debates presidenciais durante a eleição de Donald Trump nos EUA, e em várias eleições no Brasil, onde ateus são considerados os candidatos menos elegíveis.
É impensável, hoje, ter um presidente que se proclama não crente nos Estados Unidos ou no Brasil. Essa dicotomia é uma distorção cultural que precisa ser repensada. Na realidade, existe todo um espectro de modalidades da fé humana, que ocupam o espaço entre o radicalismo extremo dos dois polos. Por exemplo, Francis Collins, diretor do Instituto Nacional de Saúde dos EUA – o órgão governamental que administra o maior número de bolsas de pesquisa nas áreas da medicina e da biologia –, não vê qualquer conflito entre ser cristão e ser cientista. Como ele, muitos cientistas veem a prática científica como mais um modo de admirar a obra divina, ou seja, como uma forma de devoção religiosa. Essa é uma tradição antiga, que inclui alguns dos patriarcas da ciência moderna, como Copérnico, Newton, Kepler e Descartes.
A ruptura veio mais tarde, com o Iluminismo do século XVIII. Para ateus radicais conhecidos do público, como o biólogo inglês Richard Dawkins, o escritor americano Sam Harris e o falecido jornalista inglês Christopher Hitchens, esse tipo de posição intermediária é inconsistente com os fundamentos da ciência: a Natureza é material, e a matéria é organizada segundo leis quantitativas. O objetivo da ciência é descobrir essas leis; não existe espaço para mais nada. Segundo eles, qualquer posição conciliatória entre ciência e religião cria uma série de problemas filosóficos. Como exemplo, citam a coexistência incompatível do natural com o sobrenatural. Como a Natureza pode ser tanto natural quanto sobrenatural? Por definição, chamar um evento que ocorre e é percebido por alguém como sendo um “fenômeno sobrenatural” cria uma inconsistência básica: para que o fenômeno tenha sido observado, teve que emitir algum tipo de radiação eletromagnética (luz visível, radiação infravermelha etc.), que foi detectada por algum observador ou instrumento. “Eu vi um fantasma!” Em outras palavras, para um fenômeno ser detectado, tem que trocar energia com quem (ou com o que) o observa.
É claro que um fenômeno chamado de sobrenatural, uma vez observado, é perfeitamente natural, mesmo se misterioso ou aparentemente inexplicável. Um fantasma que é visto não é mais uma entidade sobrenatural. E agora? Os ateus usam essa incompatibilidade como argumento definitivo contra a crença no sobrenatural e, por extensão, contra a religião. Sem se dar conta, acabam usando sua fé na não fé como prova, e acabam caindo em uma contradição, como veremos adiante. Outros adotam a posição que o biólogo americano Stephen Jay Gould chamou de NOMA (do inglês, Non-Overlapping Magisteria, magistérios que não se superpõem), e compartimentalizam a ciência e a religião dentro de esferas limitadas de influência, afirmando algo como “a religião começa onde a ciência termina”. Apesar de cômoda, essa posição não vai muito longe.
À medida que a ciência avança, a fronteira entre os dois magistérios vai migrando, refletindo uma posição teológica antiquada conhecida como “Deus dos Vãos”, a religião tapando os buracos da nossa ignorância científica. Isso é um tanto indignante para Deus, dado que o espaço para a crença vai diminuindo ao entendermos mais sobre o funcionamento do mundo natural. Me parece bem mais prudente basear a fé em algo mais abstrato do que nossa ignorância sobre o mundo. Além disso, afirmar categoricamente que o sobrenatural tem uma existência intangível e imensurável posiciona sua natureza além do discurso científico, anulando qualquer possibilidade de uma troca construtiva de ideias. O fato é que a ciência e a religião claramente se superpõem na cabeça das pessoas, nas escolhas que fazemos na vida, nos desafios morais que a sociedade moderna enfrenta.
É tragicamente inocente negar o poder da religião no mundo, com bilhões de pessoas declarando-se seguidores de algum tipo de fé, mesmo que muitas delas definam sua fé de forma vaga. Para muitos, a necessidade da fé vai além da crença, tendo um papel social essencial: ela cria alianças que restituem um senso de dignidade e de comunidade que governos muitas vezes deixam de oferecer. Numa realidade miserável, a visão divina enaltece o espírito. Ademais, a posição dos ateus radicais é inconsistente com os parâmetros do método científico, algo que talvez surpreenda muita gente. Para entender isso, basta ver que o ateísmo é a crença na não crença, já que nega categoricamente a possibilidade da existência de qualquer tipo de divindade. O problema é que a ciência só pode negar categoricamente a existência de algo após observações absolutamente conclusivas.
E observações absolutamente conclusivas não existem. Existem apenas convicções, baseadas num conhecimento parcial da realidade. Toda medida científica tem uma margem de erro e um limite de precisão.
Como podemos ter certeza do que ainda não medimos? A posição mais consistente com o método científico é a do agnóstico, como haviam já percebido Thomas Huxley e Bertrand Russell, entre muitos outros: não vejo qualquer razão para crer, mas baseado no que sei não posso negar absolutamente a possibilidade de que alguma entidade divina exista. Como escreveu Huxley, criador do termo “agnóstico”:
É errôneo afirmar que se tem certeza da verdade objetiva de uma proposição, a menos que seja fornecida evidência que justifique logicamente esta certeza.” Em vista da diversidade de posições, a questão essencial é a origem dessa necessidade de acreditar, que identificamos na maioria absoluta das culturas do passado e do presente. O que a crença oferece que tantos precisam? Pertencer a um grupo religioso confere um senso de comunidade imediato. Ao encontrar outros membros de sua comunidade na igreja ou no templo, a pessoa vê sua crença justificada, dado que é compartilhada por tantos outros. Mais do que a crença em si, a pessoa se vê integrada num grupo com valores afins. Isso é tanto verdade para as pessoas de fé quanto para aquelas seculares, sejam elas ateias ou agnósticas.
Seres humanos são criaturas tribais, e tribos definem-se a partir de certos símbolos, mitos ou código moral. Não há dúvida de que nossos ancestrais entenderam que existe uma enorme vantagem em pertencer a um grupo. Fazer parte de uma tribo oferecia uma proteção que aumentava as chances de sobrevivência num ambiente extremamente hostil: unidos venceremos. Tanto no passado quanto no presente, fazer parte de uma tribo confere legitimidade social imediata. Para muita gente, a fé pode ser a justificativa oferecida para participar de um grupo religioso, mas é o senso de comunidade, de valores divididos pelo grupo, que está por trás da devoção. Existe, no entanto, outro aspecto da fé, bem mais subjetivo do que este tribal. Como descreveu o psicólogo americano William James em sua obra-prima.
As variedades da experiência religiosa, a experiência religiosa atinge seu clímax na subjetividade da experiência individual, na comunhão da pessoa com o desconhecido, na percepção de transcendência dos limites da existência humana, delineada pelas barreiras do espaço e do tempo. As visões e revelações dos profetas e dos santos, a experiência emocional do divino, ocorrem no indivíduo, mesmo quando induzidas pelo grupo (por exemplo, através de rituais). Existe muito mais no mundo do que aquilo que percebemos ou podemos medir, e essas características “ocultas” são igualmente importantes na nossa construção do que definimos como realidade. Como escreveu James, “toda a sua vida subconsciente, seus impulsos, suas crenças, suas necessidades, são a premissa da sua existência consciente; existe algo dentro de você que sabe de forma absoluta que o resultado disso tudo deve ser mais verdadeiro do que qualquer tipo de argumento lógico, por mais articulado que seja, que tente contradizer essas convicções subconscientes”.
Mesmo que o filósofo George Santayana e outros tenham criticado James por “encorajar a superstição”, ninguém pode negar o fato de que a razão tem alcance limitado. A ciência, se vista como expressão da razão humana, espalha-se por todos os cantos do conhecimento de forma magnífica. Mas seu alcance não é ilimitado. Existe outra dimensão da fé, separada dos rituais tribais e da religião organizada, que dá expressão a uma necessidade primária que temos de comunhão com o desconhecido. Este é o aspecto mais universal da necessidade humana de crer, que transcende divisões arbitrárias da fé criadas no decorrer da história; as religiões, as tradições, os cultos, as tribos e suas regras. Não falo aqui de uma supersticiosidade irracional ou mística. O que identificamos é a necessidade individual da crença, expressa por cada um de forma variada.
Quando Einstein mencionou sua “emoção religiosa cósmica” para descrever sua conexão espiritual com a Natureza, tentava expressar precisamente essa atração humana pelo mistério, pelo desconhecido. “Espiritual” não implica necessariamente na crença em uma dimensão não material ou sobrenatural. O que pode surpreender a muitos – especialmente aos que veem cientistas por meio do estereótipo do racionalista frio – é que essa atração pelo mistério, em essência, uma atração espiritual pela Natureza, inspira muitos cientistas em seu trabalho. Não é Deus que se busca no questionamento científico, mas a transcendência do humano, a busca por uma dimensão além do cotidiano que dá sentido à nossa busca por sentido. Ao estender sua curiosidade ao oceano do desconhecido, mesmo o cientista secular está praticando essa crença, expressando a necessidade universal que temos de conhecer nossa história e de explorar o novo, ampliando, assim, nossa visão da realidade.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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