Ao discutirmos a complexa relação entre
ciência e religião, com frequência nos deparamos com posições
polarizadas: ou se afirma “acredito” ou se afirma “não
acredito”, com total convicção em ambos os casos. Com frequência
ainda maior, se perguntarmos no quê, exatamente, a pessoa acredita,
ou de onde vem a necessidade de sua fé, nos deparamos com respostas
vagas, que incluem “tradição”, “comunidade”, “mortalidade”.
Um grupo menor, que se dá a reflexões mais profundas, examina,
questiona e reavalia sua fé regularmente, sabendo que o crer é
fluido. Nossas convicções mudam com a idade e, com essas mudanças,
muda, também, nossa relação com a fé.
Nessa polarização milenar, muita
animosidade desnecessária vem da convicção infundada de que os que
têm opinião diferente da nossa em relação à fé, ou os que
acreditam de forma diferente, estão profundamente equivocados, ou
são simplesmente tolos ou, pior, são infiéis que não merecem
viver. Deixando de lado a radicalização trágica dos muçulmanos de
organizações terroristas como ISIS ou Al-Qaeda, vimos exemplos mais
amenos, mas não menos sintomáticos, do radicalismo entre ateus e
cristãos nos debates presidenciais durante a eleição de Donald
Trump nos EUA, e em várias eleições no Brasil, onde ateus são
considerados os candidatos menos elegíveis.
É impensável, hoje, ter um presidente
que se proclama não crente nos Estados Unidos ou no Brasil. Essa
dicotomia é uma distorção cultural que precisa ser repensada. Na
realidade, existe todo um espectro de modalidades da fé humana, que
ocupam o espaço entre o radicalismo extremo dos dois polos. Por
exemplo, Francis Collins, diretor do Instituto Nacional de Saúde dos
EUA – o órgão governamental que administra o maior número de
bolsas de pesquisa nas áreas da medicina e da biologia –, não vê
qualquer conflito entre ser cristão e ser cientista. Como ele,
muitos cientistas veem a prática científica como mais um modo de
admirar a obra divina, ou seja, como uma forma de devoção
religiosa. Essa é uma tradição antiga, que inclui alguns dos
patriarcas da ciência moderna, como Copérnico, Newton, Kepler e
Descartes.
A ruptura veio mais tarde, com o
Iluminismo do século XVIII. Para ateus radicais conhecidos do
público, como o biólogo inglês Richard Dawkins, o escritor
americano Sam Harris e o falecido jornalista inglês Christopher
Hitchens, esse tipo de posição intermediária é inconsistente com
os fundamentos da ciência: a Natureza é material, e a matéria é
organizada segundo leis quantitativas. O objetivo da ciência é
descobrir essas leis; não existe espaço para mais nada. Segundo
eles, qualquer posição conciliatória entre ciência e religião
cria uma série de problemas filosóficos. Como exemplo, citam a
coexistência incompatível do natural com o sobrenatural. Como a
Natureza pode ser tanto natural quanto sobrenatural? Por definição,
chamar um evento que ocorre e é percebido por alguém como sendo um
“fenômeno sobrenatural” cria uma inconsistência básica: para
que o fenômeno tenha sido observado, teve que emitir algum tipo de
radiação eletromagnética (luz visível, radiação infravermelha
etc.), que foi detectada por algum observador ou instrumento. “Eu
vi um fantasma!” Em outras palavras, para um fenômeno ser
detectado, tem que trocar energia com quem (ou com o que) o observa.
É claro que um fenômeno chamado de
sobrenatural, uma vez observado, é perfeitamente natural, mesmo se
misterioso ou aparentemente inexplicável. Um fantasma que é visto
não é mais uma entidade sobrenatural. E agora? Os ateus usam essa
incompatibilidade como argumento definitivo contra a crença no
sobrenatural e, por extensão, contra a religião. Sem se dar conta,
acabam usando sua fé na não fé como prova, e acabam caindo em uma
contradição, como veremos adiante. Outros adotam a posição que o
biólogo americano Stephen Jay Gould chamou de NOMA (do inglês,
Non-Overlapping Magisteria, magistérios que não se superpõem), e
compartimentalizam a ciência e a religião dentro de esferas
limitadas de influência, afirmando algo como “a religião começa
onde a ciência termina”. Apesar de cômoda, essa posição não
vai muito longe.
À medida que a ciência avança, a
fronteira entre os dois magistérios vai migrando, refletindo uma
posição teológica antiquada conhecida como “Deus dos Vãos”, a
religião tapando os buracos da nossa ignorância científica. Isso é
um tanto indignante para Deus, dado que o espaço para a crença vai
diminuindo ao entendermos mais sobre o funcionamento do mundo
natural. Me parece bem mais prudente basear a fé em algo mais
abstrato do que nossa ignorância sobre o mundo. Além disso, afirmar
categoricamente que o sobrenatural tem uma existência intangível e
imensurável posiciona sua natureza além do discurso científico,
anulando qualquer possibilidade de uma troca construtiva de ideias. O
fato é que a ciência e a religião claramente se superpõem na
cabeça das pessoas, nas escolhas que fazemos na vida, nos desafios
morais que a sociedade moderna enfrenta.
É tragicamente inocente negar o poder da
religião no mundo, com bilhões de pessoas declarando-se seguidores
de algum tipo de fé, mesmo que muitas delas definam sua fé de forma
vaga. Para muitos, a necessidade da fé vai além da crença, tendo
um papel social essencial: ela cria alianças que restituem um senso
de dignidade e de comunidade que governos muitas vezes deixam de
oferecer. Numa realidade miserável, a visão divina enaltece o
espírito. Ademais, a posição dos ateus radicais é inconsistente
com os parâmetros do método científico, algo que talvez surpreenda
muita gente. Para entender isso, basta ver que o ateísmo é a crença
na não crença, já que nega categoricamente a possibilidade da
existência de qualquer tipo de divindade. O problema é que a
ciência só pode negar categoricamente a existência de algo após
observações absolutamente conclusivas.
E observações absolutamente conclusivas
não existem. Existem apenas convicções, baseadas num conhecimento
parcial da realidade. Toda medida científica tem uma margem de erro
e um limite de precisão.
Como podemos ter certeza do que ainda não
medimos? A posição mais consistente com o método científico é a
do agnóstico, como haviam já percebido Thomas Huxley e Bertrand
Russell, entre muitos outros: não vejo qualquer razão para crer,
mas baseado no que sei não posso negar absolutamente a possibilidade
de que alguma entidade divina exista. Como escreveu Huxley, criador
do termo “agnóstico”:
“É errôneo afirmar que se tem certeza
da verdade objetiva de uma proposição, a menos que seja fornecida
evidência que justifique logicamente esta certeza.” Em vista da
diversidade de posições, a questão essencial é a origem dessa
necessidade de acreditar, que identificamos na maioria absoluta das
culturas do passado e do presente. O que a crença oferece que tantos
precisam? Pertencer a um grupo religioso confere um senso de
comunidade imediato. Ao encontrar outros membros de sua comunidade na
igreja ou no templo, a pessoa vê sua crença justificada, dado que é
compartilhada por tantos outros. Mais do que a crença em si, a
pessoa se vê integrada num grupo com valores afins. Isso é tanto
verdade para as pessoas de fé quanto para aquelas seculares, sejam
elas ateias ou agnósticas.
Seres humanos são criaturas tribais, e
tribos definem-se a partir de certos símbolos, mitos ou código
moral. Não há dúvida de que nossos ancestrais entenderam que
existe uma enorme vantagem em pertencer a um grupo. Fazer parte de
uma tribo oferecia uma proteção que aumentava as chances de
sobrevivência num ambiente extremamente hostil: unidos venceremos.
Tanto no passado quanto no presente, fazer parte de uma tribo confere
legitimidade social imediata. Para muita gente, a fé pode ser a
justificativa oferecida para participar de um grupo religioso, mas é
o senso de comunidade, de valores divididos pelo grupo, que está por
trás da devoção. Existe, no entanto, outro aspecto da fé, bem
mais subjetivo do que este tribal. Como descreveu o psicólogo
americano William James em sua obra-prima.
As variedades da experiência religiosa,
a experiência religiosa atinge seu clímax na subjetividade da
experiência individual, na comunhão da pessoa com o desconhecido,
na percepção de transcendência dos limites da existência humana,
delineada pelas barreiras do espaço e do tempo. As visões e
revelações dos profetas e dos santos, a experiência emocional do
divino, ocorrem no indivíduo, mesmo quando induzidas pelo grupo (por
exemplo, através de rituais). Existe muito mais no mundo do que
aquilo que percebemos ou podemos medir, e essas características
“ocultas” são igualmente importantes na nossa construção do
que definimos como realidade. Como escreveu James, “toda a sua vida
subconsciente, seus impulsos, suas crenças, suas necessidades, são
a premissa da sua existência consciente; existe algo dentro de você
que sabe de forma absoluta que o resultado disso tudo deve ser mais
verdadeiro do que qualquer tipo de argumento lógico, por mais
articulado que seja, que tente contradizer essas convicções
subconscientes”.
Mesmo que o filósofo George Santayana e
outros tenham criticado James por “encorajar a superstição”,
ninguém pode negar o fato de que a razão tem alcance limitado. A
ciência, se vista como expressão da razão humana, espalha-se por
todos os cantos do conhecimento de forma magnífica. Mas seu alcance
não é ilimitado. Existe outra dimensão da fé, separada dos
rituais tribais e da religião organizada, que dá expressão a uma
necessidade primária que temos de comunhão com o desconhecido. Este
é o aspecto mais universal da necessidade humana de crer, que
transcende divisões arbitrárias da fé criadas no decorrer da
história; as religiões, as tradições, os cultos, as tribos e suas
regras. Não falo aqui de uma supersticiosidade irracional ou
mística. O que identificamos é a necessidade individual da crença,
expressa por cada um de forma variada.
Quando Einstein mencionou sua “emoção
religiosa cósmica” para descrever sua conexão espiritual com a
Natureza, tentava expressar precisamente essa atração humana pelo
mistério, pelo desconhecido. “Espiritual” não implica
necessariamente na crença em uma dimensão não material ou
sobrenatural. O que pode surpreender a muitos – especialmente aos
que veem cientistas por meio do estereótipo do racionalista frio –
é que essa atração pelo mistério, em essência, uma atração
espiritual pela Natureza, inspira muitos cientistas em seu trabalho.
Não é Deus que se busca no questionamento científico, mas a
transcendência do humano, a busca por uma dimensão além do
cotidiano que dá sentido à nossa busca por sentido. Ao estender sua
curiosidade ao oceano do desconhecido, mesmo o cientista secular está
praticando essa crença, expressando a necessidade universal que
temos de conhecer nossa história e de explorar o novo, ampliando,
assim, nossa visão da realidade.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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