Nossos pais retornaram da roça e
encontraram minha avó desorientada, com nossas cabeças mergulhadas
numa tina de água, gritando: “Ela perdeu a língua, ela cortou a
língua.” Repetia tanto que, certamente, naqueles primeiros
momentos, Zeca Chapéu Grande e Salustiana Nicolau acharam que as
duas filhas haviam se mutilado num ritual misterioso que, nas suas
crenças, precisaria de muita imaginação para explicar. A tina era
uma poça vermelha e nós duas chorávamos. Quanto mais chorávamos
abraçadas, querendo pedir desculpas, mais ficava difícil saber quem
tinha perdido a língua, quem teria que ir para o hospital a léguas
de Água Negra. O gerente da fazenda chegou numa Ford Rural branca
e verde para nos conduzir ao hospital. Essa Rural, como
chamávamos, servia aos proprietários quando estavam na fazenda,
servia a Sutério para os trabalhos como gerente, se deslocando entre
a cidade e Água Negra, ou percorrendo as distâncias na própria
fazenda, quando não queria fazer a cavalo.
Minha mãe se muniu de colchas e toalhas
que recobriam as camas e a mesa, para tentar estancar o sangue. Ela
gritava para meu pai, que colhia com as mãos trêmulas ervas nos
canteiros próximos à casa, impaciente, transmitindo seu desespero
na voz, que se tornou mais aguda, além do olhar espantado. As ervas
eram para ser usadas no caminho até o hospital, em rezas e encantos.
Os olhos de Belonísia estavam vermelhos de tanto choro, os meus eu
não conseguia sequer sentir, e minha mãe perguntava perplexa o que
havia acontecido, com o que brincávamos, mas nossas respostas eram
longos gemidos difíceis de interpretar. Meu pai segurava a língua
envolta numa de suas poucas camisas. Mesmo naquelas horas, meu medo
era que o órgão em arrebatamento se dispusesse a falar sozinho no
colo dele sobre o que havíamos feito. Que falasse sobre nossa
curiosidade, nossa teimosia, nossa transgressão, nossa falta de zelo
e respeito por Donana e por suas coisas. Mais ainda, sobre a nossa
irresponsabilidade de colocar uma faca na boca, sabendo que facas
sangram caças, sangram as crias do quintal e matam homens.
Meu pai recobriu a pequena trouxa com as
folhas que havia colhido antes de sair. Da janela do carro vi meus
irmãos ao redor de Donana, dona Tonha a amparando pelo braço e a
levando de volta para casa. Anos depois viria a sentir remorso por
esse dia, por ter deixado minha avó desnorteada, aos prantos, se
sentindo incapaz de cuidar de qualquer pessoa. Durante a viagem,
ouvimos a angústia de minha mãe transmitida nos sussurros de suas
preces e por suas mãos calosas e sempre quentes, mas que agora
pareciam saídas de uma bacia de água que dormiu ao relento no
sereno da noite.
No hospital, demoramos a ser atendidas.
Nossos pais estavam encolhidos em um canto ao nosso lado. Vi as
calças sujas de terra que ele não teve tempo de trocar. Minha mãe
tinha um lenço colorido amarrado na cabeça. Era o mesmo lenço que
usava embaixo do chapéu que levava para se proteger do sol na roça.
Ela limpava nossos rostos com peças da trouxa de roupa, a cada
momento com um novo tecido com cheiro de guardado, e que não
conseguia identificar. Meu pai ainda segurava a língua envolta na
mesma camisa. As folhas estavam guardadas nos bolsos de sua calça,
talvez por vergonha de o apontarem com desdém como feiticeiro dentro
daquele lugar que ele não conhecia. Foi o primeiro lugar em que vi
mais gente branca que preta. E vi como as pessoas nos olhavam com
curiosidade, mas sem se aproximar.
Quando o médico nos levou para a sala e
meu pai lhe mostrou a língua como uma flor murcha entre as mãos, vi
sua cabeça balançar num sinal de negação. Vi também o suspiro
que deu ao abrir nossas bocas quase ao mesmo tempo. Ela terá que
ficar aqui. Terá problemas na fala, para deglutir. Não tem como
reimplantar. Hoje sei que se diz assim, mas à época nem passava por
minha cabeça o que tudo aquilo significava, e muito menos na cabeça
de meu pai e de minha mãe. Belonísia nesse instante sequer me
olhava, mas ainda continuávamos unidas.
Nossas feridas foram suturadas, e
permanecemos juntas por mais dois dias. Saímos com um carregamento
de antibióticos e analgésicos nas mãos. Teríamos que voltar dali
a duas semanas para retirar os pontos. Teríamos que comer mingaus e
purês, alimentos pastosos. Minha mãe deixaria o trabalho na roça
nas semanas que se seguiriam para se dedicar integralmente aos nossos
cuidados. Somente uma das filhas teria a fala e deglutição
prejudicada. Mas o silêncio passaria a ser nosso mais proeminente
estado a partir desse evento.
Nunca havíamos saído da fazenda. Nunca
tínhamos visto uma estrada larga com carros passando para os dois
lados, seguindo para os mais distantes lugares da Terra. Foi o que
Sutério disse. No caminho de ida, estávamos tomados de aflição,
pelo cheiro de sangue coagulando, pelas preces de meu pai e de minha
mãe, atônitos. O gerente da fazenda apenas ria dizendo que crianças
são iguais a gatos, que cegam, uma hora estão num lugar outra hora
estão em outro, quase sempre aprontando algo para dar dor de cabeça
aos pais. Que ele tinha filhos e sabia. Na volta estávamos bastante
doloridas, uma mais que a outra, esgotadas da mesma forma, apesar da
extensão das lesões ter sido distinta. Uma havia amputado a língua,
a outra tinha tido um corte profundo, mas estava longe de perdê-la.
Nunca havíamos andado no Ford Rural
da fazenda ou em qualquer outro automóvel. E como era diferente o
mundo além de Água Negra! Como era diferente a cidade com suas
casas grudadas uma às outras, dividindo paredes. As ruas calçadas
com pedras. O chão das nossas casas e dos caminhos da fazenda eram
de terra. De barro, apenas, que também servia para fazer a comida de
nossas bonecas de sabugo, e de onde brotava quase tudo que comíamos.
Onde enterrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos. Onde
enterrávamos os restos de nossos corpos. Para onde todos desceriam
algum dia. Ninguém escaparia. Só pudemos observar tudo aquilo
durante o retorno, em lados opostos do veículo, com nossa mãe ao
meio, absorta em pensamentos que nosso alarido havia precipitado em
seu íntimo.
Ao chegarmos à casa, só estavam Zezé e
Domingas, pequenos, acompanhados de dona Tonha. Vi meu pai perguntar
por Donana enquanto minha mãe nos segurava pelas mãos diante da
porta. Desceu faz umas duas horas para o rumo do rio, foi o que dona
Tonha respondeu. Sozinha?, quiseram saber. Sim, saiu levando um
embrulho.
Itamar Vieira Júnior, in Torto arado
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