quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Torto arado / 2

          Nossos pais retornaram da roça e encontraram minha avó desorientada, com nossas cabeças mergulhadas numa tina de água, gritando: “Ela perdeu a língua, ela cortou a língua.” Repetia tanto que, certamente, naqueles primeiros momentos, Zeca Chapéu Grande e Salustiana Nicolau acharam que as duas filhas haviam se mutilado num ritual misterioso que, nas suas crenças, precisaria de muita imaginação para explicar. A tina era uma poça vermelha e nós duas chorávamos. Quanto mais chorávamos abraçadas, querendo pedir desculpas, mais ficava difícil saber quem tinha perdido a língua, quem teria que ir para o hospital a léguas de Água Negra. O gerente da fazenda chegou numa Ford Rural branca e verde para nos conduzir ao hospital. Essa Rural, como chamávamos, servia aos proprietários quando estavam na fazenda, servia a Sutério para os trabalhos como gerente, se deslocando entre a cidade e Água Negra, ou percorrendo as distâncias na própria fazenda, quando não queria fazer a cavalo.
Minha mãe se muniu de colchas e toalhas que recobriam as camas e a mesa, para tentar estancar o sangue. Ela gritava para meu pai, que colhia com as mãos trêmulas ervas nos canteiros próximos à casa, impaciente, transmitindo seu desespero na voz, que se tornou mais aguda, além do olhar espantado. As ervas eram para ser usadas no caminho até o hospital, em rezas e encantos. Os olhos de Belonísia estavam vermelhos de tanto choro, os meus eu não conseguia sequer sentir, e minha mãe perguntava perplexa o que havia acontecido, com o que brincávamos, mas nossas respostas eram longos gemidos difíceis de interpretar. Meu pai segurava a língua envolta numa de suas poucas camisas. Mesmo naquelas horas, meu medo era que o órgão em arrebatamento se dispusesse a falar sozinho no colo dele sobre o que havíamos feito. Que falasse sobre nossa curiosidade, nossa teimosia, nossa transgressão, nossa falta de zelo e respeito por Donana e por suas coisas. Mais ainda, sobre a nossa irresponsabilidade de colocar uma faca na boca, sabendo que facas sangram caças, sangram as crias do quintal e matam homens.
Meu pai recobriu a pequena trouxa com as folhas que havia colhido antes de sair. Da janela do carro vi meus irmãos ao redor de Donana, dona Tonha a amparando pelo braço e a levando de volta para casa. Anos depois viria a sentir remorso por esse dia, por ter deixado minha avó desnorteada, aos prantos, se sentindo incapaz de cuidar de qualquer pessoa. Durante a viagem, ouvimos a angústia de minha mãe transmitida nos sussurros de suas preces e por suas mãos calosas e sempre quentes, mas que agora pareciam saídas de uma bacia de água que dormiu ao relento no sereno da noite.
No hospital, demoramos a ser atendidas. Nossos pais estavam encolhidos em um canto ao nosso lado. Vi as calças sujas de terra que ele não teve tempo de trocar. Minha mãe tinha um lenço colorido amarrado na cabeça. Era o mesmo lenço que usava embaixo do chapéu que levava para se proteger do sol na roça. Ela limpava nossos rostos com peças da trouxa de roupa, a cada momento com um novo tecido com cheiro de guardado, e que não conseguia identificar. Meu pai ainda segurava a língua envolta na mesma camisa. As folhas estavam guardadas nos bolsos de sua calça, talvez por vergonha de o apontarem com desdém como feiticeiro dentro daquele lugar que ele não conhecia. Foi o primeiro lugar em que vi mais gente branca que preta. E vi como as pessoas nos olhavam com curiosidade, mas sem se aproximar.
Quando o médico nos levou para a sala e meu pai lhe mostrou a língua como uma flor murcha entre as mãos, vi sua cabeça balançar num sinal de negação. Vi também o suspiro que deu ao abrir nossas bocas quase ao mesmo tempo. Ela terá que ficar aqui. Terá problemas na fala, para deglutir. Não tem como reimplantar. Hoje sei que se diz assim, mas à época nem passava por minha cabeça o que tudo aquilo significava, e muito menos na cabeça de meu pai e de minha mãe. Belonísia nesse instante sequer me olhava, mas ainda continuávamos unidas.
Nossas feridas foram suturadas, e permanecemos juntas por mais dois dias. Saímos com um carregamento de antibióticos e analgésicos nas mãos. Teríamos que voltar dali a duas semanas para retirar os pontos. Teríamos que comer mingaus e purês, alimentos pastosos. Minha mãe deixaria o trabalho na roça nas semanas que se seguiriam para se dedicar integralmente aos nossos cuidados. Somente uma das filhas teria a fala e deglutição prejudicada. Mas o silêncio passaria a ser nosso mais proeminente estado a partir desse evento.
Nunca havíamos saído da fazenda. Nunca tínhamos visto uma estrada larga com carros passando para os dois lados, seguindo para os mais distantes lugares da Terra. Foi o que Sutério disse. No caminho de ida, estávamos tomados de aflição, pelo cheiro de sangue coagulando, pelas preces de meu pai e de minha mãe, atônitos. O gerente da fazenda apenas ria dizendo que crianças são iguais a gatos, que cegam, uma hora estão num lugar outra hora estão em outro, quase sempre aprontando algo para dar dor de cabeça aos pais. Que ele tinha filhos e sabia. Na volta estávamos bastante doloridas, uma mais que a outra, esgotadas da mesma forma, apesar da extensão das lesões ter sido distinta. Uma havia amputado a língua, a outra tinha tido um corte profundo, mas estava longe de perdê-la.
Nunca havíamos andado no Ford Rural da fazenda ou em qualquer outro automóvel. E como era diferente o mundo além de Água Negra! Como era diferente a cidade com suas casas grudadas uma às outras, dividindo paredes. As ruas calçadas com pedras. O chão das nossas casas e dos caminhos da fazenda eram de terra. De barro, apenas, que também servia para fazer a comida de nossas bonecas de sabugo, e de onde brotava quase tudo que comíamos. Onde enterrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos. Onde enterrávamos os restos de nossos corpos. Para onde todos desceriam algum dia. Ninguém escaparia. Só pudemos observar tudo aquilo durante o retorno, em lados opostos do veículo, com nossa mãe ao meio, absorta em pensamentos que nosso alarido havia precipitado em seu íntimo.
Ao chegarmos à casa, só estavam Zezé e Domingas, pequenos, acompanhados de dona Tonha. Vi meu pai perguntar por Donana enquanto minha mãe nos segurava pelas mãos diante da porta. Desceu faz umas duas horas para o rumo do rio, foi o que dona Tonha respondeu. Sozinha?, quiseram saber. Sim, saiu levando um embrulho.

Itamar Vieira Júnior, in Torto arado

Nenhum comentário:

Postar um comentário