Ignoro como foi que chegou às mãos do
meu pai aquele exemplar do Almanak Sul-Mineiro do século XIX.
Estava num lamentável estado de conservação, faltando-lhe as
páginas iniciais onde normalmente aparecem o nome do autor, o nome
da gráfica e a data de publicação. Examinei atentamente o que
restava, folhas rasgadas, soltas, em busca de alguma pista que me
permitisse inferir a data. Meu esforço não foi em vão. Na parte
dedicada ao município de Lavras, à folha 586, deparei-me com uma
cifra referente ao número de escravos existentes no município, que
somavam, em dezembro de 1882, 6053, número menor que os 7452 que
havia em 28 de setembro de 1873. O Almanak explica que esse
declínio no número de escravos se deveu a alforrias de negros,
patrocinadas por um Fundo de Emancipação de Escravos, no valor de
64:660$000. A publicação do dito Almanak, então, se deu em
alguma data entre o ano de 1882 e 1888, data em que escravidão foi
abolida. A cidade onde nasci encontra-se ali referida com o nome de
Dores da Boa Esperança. Entretanto, por ocasião do meu nascimento,
em 1933, o “Boa Esperança” estava em desuso e a cidade era
conhecida simplesmente como Dores. Nasci “dorense”.
O Almanak descreve a geografia, a
cidade, a religião, as atividades culturais, as organizações de
caridade, nomeia os profissionais mais importantes e relata os
acontecimentos dignos de nota, como foi o caso de uma ventania nunca
vista que fez voar uma rodeira de carro de bois por uma légua. No
outro Almanach Sul-Mineiro de que disponho, organizado e editado por
Bernardo Saturnino da Veiga e publicado em 1874, o autor diz que
“o terreno é de conhecida uberdade e banhado pelo caudaloso rio
Grande, que passa á duas léguas da cidade ”. “Compõe-se a
cidade de 240 casas, das quaes 5 de sobrado e 24 assobradadas,
formando ellas seis largos ou praças e dez ruas. Existe no largo da
matriz um chafariz público.”
Os chafarizes eram marca do progresso de
uma cidade. Além de serem as fontes de água que abasteciam as casas
da cidade, eles eram os lugares onde as pessoas se encontravam para
conversar e namorar.
O autor do Almanak continua:
Os cereais são cultivados para o
consumo local, mas já se faz também considerável exportação de
queijos fabricados em muitas fazendas, que são os melhores da
província no consenso geral e tão bons como os mais afamados da
Europa. Possui um serviço de correios, a cargo de estafetas que
levam a correspondência para Três Pontas aos dias 4, 10, 16, 22 e
28 de cada mês.
A seguir são nomeados os açougues, os
advogados, o vigário, os alfaiates, os capitalistas, os fabricantes
de cerveja e de licores, os fazendeiros, os ferradores, o fogueteiro,
as costureiras, os cigarreiros, as doceiras, as floristas, os
ourives, as parteiras, o pharmaceutico, o pintor, os rancheiros, os
pedreiros, entre eles vários escravos, os selleiros, os sapateiros,
as tecedeiras, os hotéis, os marceneiros, o médico, os
estabelecimentos de secos e molhados, o encarregado da música, as
olarias, os depósitos de sal.
Relata ainda o Almanak de data
incerta que havia em Boa Esperança quatro pianos.
Meu pai não se interessou por esses
detalhes. O que lhe importava era outra coisa. Ajustados os óculos,
ele deslizava o dedo sobre a lista dos notáveis da cidade, na
esperança de ali encontrar algum antepassado ilustre com o sobrenome
“Espírito Santo”. Encontrou o “Espírito Santo” entre os
tropeiros. Ele não se abateu. Ele nunca se abatia. Era um
feiticeiro. Mudava tudo pelo poder das palavras. Assim, ele falou e a
mágica aconteceu: “Tropeiro. Esse meu antepassado era dono de uma
empresa de transportes...” .
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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