Eu vi Vera Fischer nua e você tem todo o
direito de dizer grande coisa, meu chapa, porque só não viu quem
não tem 50 pratas para gastar com teatro. Vi Vera à vera, naquela
hora em que os meninos se transformam em homens, como anunciava o
velho filme sobre tempestade no mar, e acho, a propósito, que é um
slogan perfeito também para se anunciar uma peça, como a que ela
está fazendo, sobre a primeira noite de um homem. São eventos das
mesmas proporções monumentais. Divisores de água. Há quem medre.
Há quem enfrente as ondas e nesse momento faça surgir dali um leão
com forças que ele próprio julgava impossíveis.
Eu vi Vera Fischer nua, mas deve ter sido
por isso que me perco em rodopios e não vou direto ao ponto. Não
quero falar de tempestade marítima nem leões-marinhos nem furacões
louros. Nada disso. Eu vi Vera Fischer nua e, nessa eterna busca em
que sempre acabo me metendo atrás das delícias perdidas, nessa caça
insaciável do prazer que às vezes julgo terem nos surrupiado, eu,
ao mesmo tempo que me alumbrava por estar tão perto da quinta
estrela no céu de Vénus, eu, ao mesmo tempo, fui conduzido por meus
hormônios peripatéticos a imediatamente viajar no tempo.
Caraca, onde mesmo foram parar essas
doidas redondas?!
Elas vinham aos borbotões e ainda esta
semana eu vi, já que hoje tomei afeição pelo verbo, eu vi uma das
mais estupefacientes delas na chanchada “Camelô da Rua Larga”,
participando do time das girls que simulavam uma praia na
produção, de 1958, da Herbert Richers. Vista assim de agora,
coitada, a moça era desprovida, pela fartura das carnes, de qualquer
atributo que a levasse ao pano de boca de um filme. Totalmente fora
do peso. No entanto, toda desenhada em compasso, foi diante dela que
o camelô Zé Trindade parou na chanchada e disparou o elogio ao
sabor da época. “Com tanta curva assim”, galanteava o pseudogalã
nordestino, “não há motorista que não derrape, minha filha.”
Eu vi Vera Fischer cheia de curvas no
primeiro ato de “A primeira noite de um homem” e sei da vida e do
teatro apenas o suficiente para entender que nesses momentos um homem
normal teme pela possibilidade de não chegar com o equi- líbrio
ajustado ao segundo ato dessa grande peça em que nos meteram. Vi-a
nua, já o disse. Fiquei confuso, como já se percebeu. Mas depois de
pensar na tempestade que define o caráter dos meninos, depois de
lembrar como eram desenhadas essas senhoras que nos endoideciam, eu
acabei chegando ao ponto cronical do assunto, e antes ainda de
anunciá-lo aqui, faço um parêntese para agradecer ao Lavolho, o
colírio com aquele baldezinho azul que me abriu a vista na infância
e hoje me permite botar em foco o que interessa nesta crônica.
Caraca!, como podem ser bonitas as
mulheres entradas nos cinquentanos!
Jamais serei visto desenhando escala de
valores numa matéria desse tipo, eu que sempre tive como tipo
preferido aquela que, primeiro, está respirando, e, em seguida, a
que me dá bola. Todas deusas, todas merecedoras de epifanias,
hosanas, e é o que aqui se tem feito quando há inspiração. Das de
20, não mais me ocupo. Foram genialmente flagradas por Paulo Mendes
Campos em “Ser brotinho”, no justo momento em que lançavam fogo
pelos olhos – e pelo que vejo ao redor, continuam mais ou menos
assim, com o detalhe tão 2004 que agora marcam para sempre o corpo
do outro com o piercing em brasa.
As de 30, que vibravam tristonhas na voz
de Miltinho, agora pisam aceleradas e planam, entre petulantes e
angustiadas, como se estivessem sobre a mesma sandália de US$ 400 da
Carrie em “Sex and the City”. As de 40 batem o fino. Todos os
filhos postos, vagam com aquela determinação de quem sabe
direitinho onde é o ponto G e também o melhor endereço para
decorar o apartamento deixado pelo ex.
Eu vi Vera Fischer nua aos 52 anos e, não
sei se foi porque a peça começou com “Dream a little dream of
me”, com os Mamas and Papas, e acabou com “There’s a kind of
hush”, dos Herman’s Hermits, eu só sei que me emocionei em
pensar que uma mulher nessa idade, hoje, não pode mais passar
adiante nem as canções românticas que ouviu na juventude nem a
educação que recebeu dos pais.
Ela foi a primeira a ouvir rock e a
última a debutar. A primeira a saber da pílula e a última a casar
virgem. A primeira a escrever liberdade no muro e a última a sonhar
da vida apenas o que fosse a saia plissada do curso normal, a mesa
posta na janta e a firme determinação de ser fiel até que a morte
a separasse do sacrossanto marido. A mulher dos 50 é o elo perdido,
o bastão de passagem que caiu no chão. De nada lhe serviu o curso
da mamãe para ser a rainha do lar, de nada do que aprendeu pode
tirar o chip que ajude a filha a se conectar na banda larga da nova
felicidade.
E, no entanto, há uma geração de
mulheres aos 50, aos 60, que sobreviveu ao marido machista, ao
preconceito careta, pegou o bastão no chão e reconstruiu a corrida
de um jeito próprio, como Vera faz no teatro, que permite mostrar
beleza, humor, vivacidade e tesão num prazo muito além dos 40, que
era mais ou menos quando mamãe se recolheu ao tricô, ao truco e ao
triste.
Eu vi, acho que já disse, Vera Fischer
nua aos 52, a mais que perfeita tradução da última fornada de
mulheres a ser educada com repressão e, em seguida, obrigada a
aprender, com o bonde andando, a viver num mundo onde é proibido
proibir. Ela estava nua à vera, eu na segunda fila, e como não sou
crítico de teatro, não entendo nada dos rigores de uma encenação,
fico muito à vontade para dizer que tirei como útil daquela noite a
impressão de que pode ter sido o rock and roll. Não sei. Pode ter
sido essa dieta à base de ômega 3 que ela anda fazendo. Pode ter
sido o efeito de malhar ferro todo dia. Não importa. Fiquei com a
impressão de que Vera, 52, é o exemplo mais evidente de um grupo
que já viveu, que já sofreu, e chegou ao segundo tempo da
existência com tudo em cima. Sem cabelo azul. Na hora de ir ao
teatro, ela não vai de van. Vai nua.
Não há muito mais o que fazer. A vida
já se mostra avançada no tempo, não dá para reescrever todo o
texto. Depois de Vera, espero ver outras. É irresistível a mulher
que chega aos 50 pacificada com seu delicioso projeto de apenas
melhorar e encher de beleza a biografia.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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