sábado, 31 de outubro de 2020
O menino educado
Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta
Explicação de Miguel de José de João
absurdo, ele é o homem mais triste do mundo, seu
espinho é o mais fundo e tudo é prenúncio da morte,
de seu triunfo. Uma palavra antiga, lembra: infortúnio.
Entre ele, pensa, e tudo em volta haverá para sempre
um muro e depois do muro o que houver há de ser
fútil; onde está é o certo, no escuro. Uma lembrança
flutua sobre o tumulto. Talvez nem seja exatamente
pensamento o que pensa se o que pensa, parado,
não vasculha coisa alguma que não o próprio soluço
e toda perspectiva, num instante, coagula-se. Ter vivido,
pesa, não foi senão preâmbulo de sua condição viúva.
Convulsa, jejua, recapitula, murcha; perscruta
as variações mínimas do vazio, quando uns pontos
claros que se desenham sobre o fundo de seu luto
parecem vagos turvos como o passado vistos
dali, do seu pensamento, que sobre a dor e doer
se debruça. O mundo é um espinho absurdo,
cada coisa. Quer morrer; por um minuto, não
pensa.
Eucanaã Ferraz
Maja Thurup
Charles Bukowski, in Ao sul de lugar nenhum
Epígrafes
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
Salvo Se
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
Abafar
Alberto Villas, in Pequeno dicionário brasileiro da língua morta
Morte do compositor
Era uma cidade antiga e pequena onde havia as coisas que todas as cidades antigas e pequenas tinham: casas brancas de taipa, janelas e portas de madeira grossa, galinhas e cabras andando pelas ruas, os fogões de lenha acesos o dia inteiro, café com queijo e biscoito de polvilho pelo meio da tarde e cadeiras de vime na calçada ao cair da tarde. E havia também uma banda de música que era a alegria da molecada quando passava e fazia retretas no coreto nas noites de domingo. Vivia também nessa cidade um músico compositor que alimentava a banda com as suas composições. Relata-se que suas composições tiveram um destino inglório. Morto o maestro e não sabendo que destino dar-lhes, a família decidiu deixá-las guardadas no porão. Aconteceu, entretanto, que por descuido de alguém a porta do porão ficou aberta. Um cabrito, passando por ali e vendo a porta aberta, resolveu entrar para ver o que havia dentro do porão. Qual não foi a sua surpresa quando se viu diante daquela refeição deliciosa formada pelas partituras do compositor, que ele devorou inteiras. Conta-se que esse mesmo compositor estava na cama, vivendo seus últimos momentos de vida, toda a família reunida ao seu redor esperando suas últimas palavras e o desfecho. Nesse momento, a banda veio marchando e tocando pela rua do maestro. Foi então que ele, quando a banda passou defronte a sua casa, sofreu um estremeção, seu rosto se contorceu aflito e ele fez menção de que desejava falar. Todos se aproximaram, levantaram-no do travesseiro para que falasse com mais facilidade. E foi isto que ele falou: ”A clarineta desafinou o si bemol...”. E morreu.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba
A boa sorte de Babette
Karen Blixen, in A festa de Babette
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
Alquimia e farmácia
Mamede Mustafa Jarouche, in Histórias para ler sem pressa
Azul sobre amarelo, maravilha e roxo
um caminho de areia margeado de boninas,
onde só cabem a bicicleta e seu dono.
Desejo, como uma funda saudade
de homem ficado órfão pequenino,
um regaço e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos
para um forte carinho em minha nuca.
Brotam os matinhos depois da chuva,
brotam os desejos do corpo.
Na alma, o querer de um mundo tão pequeno,
como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga.
Adélia Prado
Claro e lógico
Enquanto a autoridade inspirar temor reverencial, a confusão e o absurdo irão consolidar as tendências conservadoras da sociedade. Primeiramente, porque o pensamento claro e lógico conduz à acumulação de conhecimentos (cujo melhor exemplo é fornecido pelo progresso das ciências naturais), e o avanço do conhecimento cedo ou tarde solapa a ordem tradicional. Pensamento confuso, por outro lado, leva a lugar nenhum e pode ser tolerado indefinidamente sem produzir nenhum impacto no mundo.
Stanislav Andreski, in Social Sciences as Sorcery
Finalmente, era um tropeiro
R. Tavares, in Andarilhos
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
Ao linotipista
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Uma paixão não correspondida (trecho inicial)
Mario Vargas Llosa, in A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary
Nossos gostos
Prólogo de Dernières chansons, de Louis Bouilhet
Por uma vida menos gourmet
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
terça-feira, 27 de outubro de 2020
Exemplos
Quando desejares deleitar-te a ti mesmo, pensa nas boas qualidades dos que convivem contigo; por exemplo, a atividade de um, a modéstia de outro, a liberalidade de outro e outras qualidades de outros. Pois nada deleita mais que os exemplos das virtudes, quando elas se mostram na conduta dos que vivem conosco e se apresentam a nossos olhos no maior número possível. Por isso é preciso tê-las sempre à mão.
Marco Aurélio, in Meditações