quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Finalmente, era um tropeiro

        Mesmo dentro do quarto dos empregados, João Fôia podia sentir a presença da coruja que descansava na corticeira ao lado do galpão. Escutava seus pios e ficava ainda mais inquieto. Era sempre assim em dia de tropeada. Deve ser bobagem da minha cabeça, pensou. Soltou um longo suspiro e levantou da sua cama no alojamento dos peões da Estância da Província.
João vestiu as bombachas e calçou as botas. Era pesado, mas não de todo gordo. Tinha cabelos volumosos e barba rebelde e falha. Coçou a cicatriz no rosto e afivelou sua rastra, tentando fazer pouco barulho para não acordar os que ainda conseguiam dormir. Colocou o chapéu sobre a cabeça.
Sentiu aquele cheiro nauseabundo e olhou para os homens espalhados pelo recinto. A maioria deles vivia há muitos anos por ali e nem conhecia outra forma de vida. Trabalhavam de sol a sol. Poucos eram os que subiam na hierarquia das estâncias, virando sota-capataz, capataz ou posteiro. A maioria continuava como peão a vida inteira. Dividiam os mesmos quartos, as mesmas angústias, e não tinham praticamente nada que pudessem chamar de seu. No inverno, aqueles que não tinham abrigo encarangavam de frio. Poucos reclamavam.
João Fôia tinha pena, achava-os um bando de coitados e miseráveis. Mas eles mesmos nem tinham noção disso. Eram, a seu modo, felizes e devotos aos patrões que lhe davam teto, comida e um pouco de dinheiro. Ontem mesmo, achara graça da alegria do mulato Anastácio quando o seu Herculano, capataz, entrou no galpão perto da hora da janta e lhe entregou um poncho, um pelego e um quarto de ovelha. O empregado não entendeu o que se passava, e o outro explicou a situação: o patrão mandava aqueles regalos quando o peão completava um ano de casa. Surpreso com o acontecido, Anastácio agradeceu e assou a carne pra peonada. Não pôde se estender na comemoração, pois cedo seguiriam viagem.
Não eram nem cinco horas da manhã quando João Fôia deixou o quarto cheio de gente. Desviou os olhos da árvore em que a coruja piava. Depois, entrou na cozinha dos homens, deu “buenos dias” e preparou seu mate. Alguns peões já aprontavam suas coisas, engraxavam seus arreamentos com sebo e se preparavam para a jornada.
Estavam todos inquietos, pensativos e com olhares soturnos. Herculano olhou de modo desconfiado para o João. Ninguém entendia aquela sua mania de andar, seja noite ou dia, com seu chapelão de feltro negro e aba larga, enfiado na cabeça melenuda.
Pegou sua cuia e foi yerbear ao ar livre. Logo mais fariam uma grande tropeada. Levariam trezentas cabeças de gado até uma charqueada distante umas quantas léguas. Não tinha bons pressentimentos.
Na noite anterior, bebeu mais do que devia na festa do Anastácio e, quando já ia se recolher, escutou a vaca do leite, que havia entrado sozinha na mangueira, a mugir tristemente. Curioso, João resolveu averiguar o que estava acontecendo e foi se aproximando, forçando os olhos embaçados para enxergar na escuridão. Naquele momento, ele viu uma muçurana mamando no ubre da vaca. Diós mio , fez um sinal da cruz, mais por costume do que por devoção, e saiu apressado, querendo esquecer do acontecido.
Sabia que ver cobra que toma leite na teta era um mau agouro. Não comentou com ninguém, mas ficou preocupado. Roncou a cuia do mate e puxou a faca presa na rastra de couro cru e se pôs a picar o fumo, taciturno.
O capataz Herculano saiu da cozinha dos homens e já foi convocando:
Quem tem poncho vai, quem não tem poncho vai também!
A tropeada teria início.
O gado, que passara a noite encerrado, mugia impaciente. De pouco em pouco, os peões começaram a conduzir os animais a passos lentos rumo à charqueada. Seria quase um mês de chão.
Quando o sol despontou no horizonte, a tropa já estava cruzando as fronteiras da Estância da Província. Os peões conduziam o gado de forma lenta e calma. Herculano ficava na culatra, a observar e zelar pelos animais. Não podiam apurar o passo, pois, se a tropa emagrecesse e chegasse suja de esterco, isso evidenciaria a falta de perícia dos tropeiros.
João Fôia estava montado em um cavalo zaino, com o pelo de um vermelho queimado, crinas negras e orelhas alertas. Nem mesmo o jeito corpulento, pesado, fazia com que ele tivesse menos destreza sobre o lombo do animal. Ele olhava atentamente o gado. Esperava pelo pior, mas não sabia exatamente o quê. Por cacoete, alisava o farto bigode negro e coçava o rosto de barba falhada.
A tropeada era sempre uma lida difícil. Passavam aproximadamente quinze horas por dia sobre o lombo dos cavalos. Dormiam pouco e descansavam menos ainda. Nesse primeiro dia, conduziram os animais até a hora do almoço, pois não prestava tropear no sol alto, judiando a tropa. Depois da breve parada, subiram nos cavalos e tocaram o lote calmamente.
Com o passar dos dias, os animais ficavam tensos. E a canseira começava a bater no lombo dos homens, que corriam o risco de ficarem desatentos. A grande ameaça sempre fora o estouro da tropa. Não podiam se distrair, pois isso resultaria em trabalho dobrado e perigoso, podendo até mesmo acontecer algum acidente fatal.
Os primeiros dias de viagem transcorreram dentro da normalidade. Mas, no quarto dia de tropeada, os menos acostumados já começavam a sofrer com as câimbras e o inchaço dos pés e das mãos.
João avistou, mais à sua esquerda, o jovem Anastácio, mulatinho novo, fazendo força para se manter concentrado. Com a cabeça pendendo do pescoço, bocejava e tentava se espichar, mudando a posição do corpo sobre os arreios, para aguentar a dor que sentia nos baixos. Era a primeira tropeada dele. João olhava-o e esboçava um sorriso. Lembrou de sua estreia como tropeiro, quando tinha pouco mais de treze anos.
Numa primavera, não muito diferente daquela, seu pai precisara levar o gado que estava no posto onde eles moravam para outro campo do patrão. Seriam no máximo oito dias de tropa. O pai dissera:
Vais comigo mais um peão da estância. Tens que ir pra aprender. Prepara tuas coisas que às três da manhã partimos.
João não pensou duas vezes e, em pouco tempo, já estava com o poncho emalado e a mala de garupa com algumas das precisões. Cedo da madrugada, partiram. Ele encilhava um petiço tobiano meio assustadiço e andava sempre ao lado do pai, ouvindo seus conselhos.
Guri, vamos levar esse gado pro melhor campo da estância. Dar uma última engordada nele, que logo mais o patrão já vende pra fazer os pilas. Quando eles já estão nesse estado, basta dá uma última forçada que ficam estourando de gordo.
João prestava atenção em tudo. Um dia, teria seu próprio posto. Ficava a imaginar o futuro: queria uma vida tranquila e simples como a do pai. A tropeada foi árdua. Quando finalmente abriram as porteiras do campo onde o gado ficaria, João não tinha mais forças: suas mãos tremiam, suas nádegas contraíam-se em câimbras violentas, e suas costas estavam duras. De tanta dor, mal conseguia mexer o pescoço. Os dedos das mãos, além de inchados, exibiam pequenos cortes, pois havia esquecido de engraxar as rédeas, e o couro cru endurecido estava afiado, fazendo de cada segundo uma pequena tortura.
Ao chegar de volta ao seu rancho, atirou-se do cavalo e saiu em direção à mãe, meio que se arrastando e bastante pálido.
O que é isso meu filho? — perguntou ela.
Não há de ser nada... — respondeu João.
O que se passou com ele? — perguntou a mulher ao marido.
Nada, mãe. Estou cansado, no más.
João olhou para o pai, que ainda estava sobre seu cavalo. O velho fez um aceno e sorriu para o filho. Ele foi para dentro de casa cheio de orgulho.
Agora, finalmente, era um tropeiro.

R. Tavares, in Andarilhos

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