Mesmo dentro do quarto dos empregados,
João Fôia podia sentir a presença da coruja que descansava na
corticeira ao lado do galpão. Escutava seus pios e ficava ainda mais
inquieto. Era sempre assim em dia de tropeada. Deve ser bobagem da
minha cabeça, pensou. Soltou um longo suspiro e levantou da sua cama
no alojamento dos peões da Estância da Província.
João vestiu as bombachas e calçou as
botas. Era pesado, mas não de todo gordo. Tinha cabelos volumosos e
barba rebelde e falha. Coçou a cicatriz no rosto e afivelou sua
rastra, tentando fazer pouco barulho para não acordar os que ainda
conseguiam dormir. Colocou o chapéu sobre a cabeça.
Sentiu aquele cheiro nauseabundo e olhou
para os homens espalhados pelo recinto. A maioria deles vivia há
muitos anos por ali e nem conhecia outra forma de vida. Trabalhavam
de sol a sol. Poucos eram os que subiam na hierarquia das estâncias,
virando sota-capataz, capataz ou posteiro. A maioria continuava como
peão a vida inteira. Dividiam os mesmos quartos, as mesmas
angústias, e não tinham praticamente nada que pudessem chamar de
seu. No inverno, aqueles que não tinham abrigo encarangavam de frio.
Poucos reclamavam.
João Fôia tinha pena, achava-os um
bando de coitados e miseráveis. Mas eles mesmos nem tinham noção
disso. Eram, a seu modo, felizes e devotos aos patrões que lhe davam
teto, comida e um pouco de dinheiro. Ontem mesmo, achara graça da
alegria do mulato Anastácio quando o seu Herculano, capataz, entrou
no galpão perto da hora da janta e lhe entregou um poncho, um pelego
e um quarto de ovelha. O empregado não entendeu o que se passava, e
o outro explicou a situação: o patrão mandava aqueles regalos
quando o peão completava um ano de casa. Surpreso com o acontecido,
Anastácio agradeceu e assou a carne pra peonada. Não pôde se
estender na comemoração, pois cedo seguiriam viagem.
Não eram nem cinco horas da manhã
quando João Fôia deixou o quarto cheio de gente. Desviou os olhos
da árvore em que a coruja piava. Depois, entrou na cozinha dos
homens, deu “buenos dias” e preparou seu mate. Alguns peões já
aprontavam suas coisas, engraxavam seus arreamentos com sebo e se
preparavam para a jornada.
Estavam todos inquietos, pensativos e com
olhares soturnos. Herculano olhou de modo desconfiado para o João.
Ninguém entendia aquela sua mania de andar, seja noite ou dia, com
seu chapelão de feltro negro e aba larga, enfiado na cabeça
melenuda.
Pegou sua cuia e foi yerbear ao ar
livre. Logo mais fariam uma grande tropeada. Levariam trezentas
cabeças de gado até uma charqueada distante umas quantas léguas.
Não tinha bons pressentimentos.
Na noite anterior, bebeu mais do que
devia na festa do Anastácio e, quando já ia se recolher, escutou a
vaca do leite, que havia entrado sozinha na mangueira, a mugir
tristemente. Curioso, João resolveu averiguar o que estava
acontecendo e foi se aproximando, forçando os olhos embaçados para
enxergar na escuridão. Naquele momento, ele viu uma muçurana
mamando no ubre da vaca. Diós mio , fez um sinal da cruz, mais por
costume do que por devoção, e saiu apressado, querendo esquecer do
acontecido.
Sabia que ver cobra que toma leite na
teta era um mau agouro. Não comentou com ninguém, mas ficou
preocupado. Roncou a cuia do mate e puxou a faca presa na rastra de
couro cru e se pôs a picar o fumo, taciturno.
O capataz Herculano saiu da cozinha dos
homens e já foi convocando:
— Quem tem poncho vai, quem não tem
poncho vai também!
A tropeada teria início.
O gado, que passara a noite encerrado,
mugia impaciente. De pouco em pouco, os peões começaram a conduzir
os animais a passos lentos rumo à charqueada. Seria quase um mês de
chão.
Quando o sol despontou no horizonte, a
tropa já estava cruzando as fronteiras da Estância da Província.
Os peões conduziam o gado de forma lenta e calma. Herculano ficava
na culatra, a observar e zelar pelos animais. Não podiam apurar o
passo, pois, se a tropa emagrecesse e chegasse suja de esterco, isso
evidenciaria a falta de perícia dos tropeiros.
João Fôia estava montado em um cavalo
zaino, com o pelo de um vermelho queimado, crinas negras e orelhas
alertas. Nem mesmo o jeito corpulento, pesado, fazia com que ele
tivesse menos destreza sobre o lombo do animal. Ele olhava
atentamente o gado. Esperava pelo pior, mas não sabia exatamente o
quê. Por cacoete, alisava o farto bigode negro e coçava o rosto de
barba falhada.
A tropeada era sempre uma lida difícil.
Passavam aproximadamente quinze horas por dia sobre o lombo dos
cavalos. Dormiam pouco e descansavam menos ainda. Nesse primeiro dia,
conduziram os animais até a hora do almoço, pois não prestava
tropear no sol alto, judiando a tropa. Depois da breve parada,
subiram nos cavalos e tocaram o lote calmamente.
Com o passar dos dias, os animais ficavam
tensos. E a canseira começava a bater no lombo dos homens, que
corriam o risco de ficarem desatentos. A grande ameaça sempre fora o
estouro da tropa. Não podiam se distrair, pois isso resultaria em
trabalho dobrado e perigoso, podendo até mesmo acontecer algum
acidente fatal.
Os primeiros dias de viagem transcorreram
dentro da normalidade. Mas, no quarto dia de tropeada, os menos
acostumados já começavam a sofrer com as câimbras e o inchaço dos
pés e das mãos.
João avistou, mais à sua esquerda, o
jovem Anastácio, mulatinho novo, fazendo força para se manter
concentrado. Com a cabeça pendendo do pescoço, bocejava e tentava
se espichar, mudando a posição do corpo sobre os arreios, para
aguentar a dor que sentia nos baixos. Era a primeira tropeada dele.
João olhava-o e esboçava um sorriso. Lembrou de sua estreia como
tropeiro, quando tinha pouco mais de treze anos.
Numa primavera, não muito diferente
daquela, seu pai precisara levar o gado que estava no posto onde eles
moravam para outro campo do patrão. Seriam no máximo oito dias de
tropa. O pai dissera:
— Vais comigo mais um peão da
estância. Tens que ir pra aprender. Prepara tuas coisas que às três
da manhã partimos.
João não pensou duas vezes e, em pouco
tempo, já estava com o poncho emalado e a mala de garupa com algumas
das precisões. Cedo da madrugada, partiram. Ele encilhava um petiço
tobiano meio assustadiço e andava sempre ao lado do pai, ouvindo
seus conselhos.
— Guri, vamos levar esse gado pro
melhor campo da estância. Dar uma última engordada nele, que logo
mais o patrão já vende pra fazer os pilas. Quando eles já estão
nesse estado, basta dá uma última forçada que ficam estourando de
gordo.
João prestava atenção em tudo. Um dia,
teria seu próprio posto. Ficava a imaginar o futuro: queria uma vida
tranquila e simples como a do pai. A tropeada foi árdua. Quando
finalmente abriram as porteiras do campo onde o gado ficaria, João
não tinha mais forças: suas mãos tremiam, suas nádegas
contraíam-se em câimbras violentas, e suas costas estavam duras. De
tanta dor, mal conseguia mexer o pescoço. Os dedos das mãos, além
de inchados, exibiam pequenos cortes, pois havia esquecido de
engraxar as rédeas, e o couro cru endurecido estava afiado, fazendo
de cada segundo uma pequena tortura.
Ao chegar de volta ao seu rancho,
atirou-se do cavalo e saiu em direção à mãe, meio que se
arrastando e bastante pálido.
— O que é isso meu filho? —
perguntou ela.
— Não há de ser nada... — respondeu
João.
— O que se passou com ele? —
perguntou a mulher ao marido.
— Nada, mãe. Estou cansado, no más.
João olhou para o pai, que ainda estava
sobre seu cavalo. O velho fez um aceno e sorriu para o filho. Ele foi
para dentro de casa cheio de orgulho.
Agora, finalmente, era um tropeiro.
R. Tavares, in Andarilhos
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