Sempre tomei por certa a frase que se
atribui a Oscar Wilde sobre um personagem de Balzac: “The death
of Lucien de Rubempré is the great drama of my life” [A morte
de Lucien de Rubempré é o grande drama da minha vida]. Um punhado
de personagens literários marcou minha vida de maneira mais
duradoura que boa parte dos seres de carne e osso que conheci. Embora
seja verdade que quando personagens de ficção e seres humanos são
presente, contato direto, a realidade destes últimos prevalece sobre
a daqueles — nada tem tanta vida como o corpo que se pode ver,
apalpar —, a diferença desaparece quando ambos voltam a ser
passado, recordação, e com vantagem considerável para os primeiros
sobre os segundos, cuja deliquescência na memória é irremediável,
na medida em que o personagem literário pode ser ressuscitado
indefinidamente, com o mínimo esforço de abrir as páginas do livro
e deter-se nas linhas adequadas. Nesse círculo heterogêneo e
cosmopolita, bando de fantasmas amigos que se renova segundo as
épocas e o humor — hoje eu mencionaria de imediato D’Artagnan,
David Copperfield, Jean Valjean, o príncipe Pierre Bezúkhov,
Fabrice del Dongo, os terroristas Tchen e O Professor, Lena Grove e o
condenado alto — ninguém mais persistente e com quem tenha tido
uma relação mais claramente passional que Emma Bovary. Essa
história pode contribuir, talvez, para ilustrar com um exemplo
mínimo as relações tão discutidas e enigmáticas da literatura
com a vida.
A primeira lembrança que tenho de Madame
Bovary é cinematográfica. Era 1952, uma noite de verão
ardente, um cinema recém-inaugurado na Plaza de Armas alvoroçada
com palmeiras de Piura: aparecia James Mason encarnando Flaubert,
Rodolphe Boulanger era o espigado Louis Jourdain e Emma Bovary
ganhava forma nos gestos e movimentos nervosos de Jennifer Jones. O
filme não deve ter deixado uma impressão forte porque não me
incitou a procurar o livro, apesar de, exatamente nessa época, eu
ter começado a ler de maneira empenhada e canibal.
Minha segunda lembrança é acadêmica.
Por causa do centenário de Madame Bovary, a Universidade de
San Marcos, de Lima, organizou uma homenagem na Aula Magna. O crítico
André Coyné, impassível, punha em dúvida o realismo de Flaubert:
seus argumentos desapareciam debaixo dos gritos de “Viva a Argélia
Livre!” e o vociferar de uma centena de são-marquinos, armados com
paus e pedras, que avançavam pelo salão na direção do estrado
onde seu alvo, o embaixador francês, esperava, lívido. Parte da
homenagem era a edição, em um folhetinho cujas letras saíam nos
dedos, de Saint Julien l’Hospitalier, traduzido por Manuel
Beltroy. Foi a primeira coisa que li de Flaubert.
No verão de 1959, cheguei a Paris com
pouco dinheiro e a promessa de uma bolsa. Uma das primeiras coisas
que fiz foi comprar, numa biblioteca do Quartier Latin, um exemplar
de Madame Bovary na edição dos Clássicos Garnier. Comecei a
ler nessa mesma tarde, num quartinho do hotel Wetter, nas imediações
do Museu de Cluny. Aí começa de fato a minha história. Desde as
primeiras linhas, o poder de persuasão do livro agiu sobre mim de
maneira fulminante, como um feitiço poderosíssimo. Fazia anos que
nenhum romance vampirizava tão rapidamente minha atenção, abolia
assim o entorno físico e me submergia tão profundamente em seu
mundo. À medida que avançava a tarde, caía a noite, apontava o
alvorecer, era mais eficiente o transbordamento mágico, a
substituição do mundo real pelo fictício. Era já de manhã —
Emma e Léon tinham acabado de se encontrar em um palco da ópera de
Rouen — quando, aturdido, deixei o livro e me dispus a dormir: no
difícil sono matutino continuavam existindo, com a veracidade da
leitura, a granja dos Rouault, as ruas enlameadas de Tostes, a figura
bonachona e burra de Charles, o maciço pedantismo rio-platense de
Homais e, por cima dessas pessoas e lugares, como uma imagem
pressentida em mil sonhos de infância, adivinhada desde as primeiras
leituras adolescentes, o rosto de Emma Bovary. Quando acordei, para
retomar a leitura, é impossível que não tenha tido duas certezas
como dois relâmpagos: que já sabia o escritor que eu gostaria de
ser e que desde então e até a morte viveria apaixonado por Emma
Bovary. Ela seria para mim, no futuro, assim como para o Léon Dupuis
dos primeiros tempos, “l’amoureuse de tous les romans,
l’héroïne de tous les drames, le vague elle de tous les volumes
de vers” [a apaixonada de todos os romances, a heroína de
todos os dramas, a vaga ela de todos os volumes de versos].
Desde então, li o romance talvez seis
vezes do começo ao fim e reli capítulos e episódios soltos em
muitas ocasiões. Nunca tive uma desilusão, diferente do que me
ocorreu ao repassar outras histórias queridas; ao contrário,
sobretudo relendo os ápices — as reuniões agrícolas, o passeio
de fiacre, a morte de Emma —, sempre tive a sensação de descobrir
aspectos secretos, detalhes inéditos, e a emoção foi idêntica,
com variações de grau que tinham a ver com a circunstância e o
lugar.
Um livro se transforma em parte da vida
de uma pessoa por uma porção de razões que têm a ver ao mesmo
tempo com o livro e a pessoa. Gostaria de averiguar quais são, no
meu caso, algumas dessas razões: por que Madame Bovary
remexeu camadas tão profundas do meu ser, por que me deu o que
outras histórias não conseguiram me dar.
A primeira razão é, seguramente, essa
propensão que me fez preferir, desde menino, as obras construídas
com uma ordem rigorosa e simétrica, com princípio e fim, que se
fecham sobre si mesmas e dão a impressão de soberania e acabamento,
mais do que aquelas, abertas, que deliberadamente sugerem o
indeterminado, o vago, o que está em processo, meio por fazer. É
possível que estas últimas sejam imagens mais fiéis da realidade e
da vida, inacabadas para sempre e sempre meio por fazer, mas
justamente o que busquei, sem dúvida, por instinto, e que gosto de
encontrar nos livros, nos filmes, nos quadros, não foi um reflexo
dessa parcialidade infinita, desse incomensurável fluir, mas, sim, o
contrário: totalizações, conjuntos que, graças a uma estrutura
audaz, arbitrária mas convincente, dessem a ilusão de sintetizar o
real, de resumir a vida. Esse apetite deve ter se sentido plenamente
satisfeito com Madame Bovary, exemplo de obra fechada, de
livro-círculo. Por outro lado, uma preferência até então
nebulosa, mas crescente em minhas leituras, acabou fixada graças a
esse romance. Entre a descrição da vida objetiva e da vida
subjetiva, da ação e da reflexão, me seduz mais a primeira que a
segunda, e sempre me pareceu uma façanha maior a descrição da
segunda através da primeira do que o inverso (prefiro Tolstói a
Dostoiévski, a invenção realista à fantástica, e entre
irrealidades a que está mais próxima do concreto que do abstrato,
por exemplo a pornografia à ficção científica, a literatura
romântica aos contos de terror). Flaubert, em suas cartas a Louise,
enquanto escrevia Madame Bovary, tinha certeza de estar
fazendo um romance de “ideias”, não de ações. Isso levou
algumas pessoas, que tomaram suas palavras ao pé da letra, a
sustentar que Madame Bovary é um romance em que não acontece
nada, a não ser a linguagem. Não é verdade; em Madame Bovary
acontecem tantas coisas como num romance de aventuras — casamentos,
adultérios, bailes, viagens, passeios, calotes, doenças,
espetáculos, um suicídio —, só que se trata, no geral, de
aventuras miúdas. Verdade que muitos desses fatos são narrados a
partir da emoção ou da lembrança do personagem, mas, devido ao
estilo maniacamente materialista de Flaubert, a realidade subjetiva
em Madame Bovary tem tanta consistência e peso físico quanto
a objetiva. Os pensamentos e sentimentos do romance parecem fatos ,
que se podem ver e quase tocar, e isso não só me deslumbrou como me
revelou uma predileção profunda.
Estas são razões formais, derivadas da
estrutura e da concepção do livro. As referentes ao assunto são
menos invertebradas. Um romance é mais sedutor para mim na medida em
que nele aparecem, combinados com perícia numa história compacta, a
rebeldia, a violência, o melodrama e o sexo. Em outras palavras, a
maior satisfação que um romance pode produzir em mim é provocar,
ao longo da leitura, minha admiração por algum inconformismo, minha
raiva por alguma bobagem ou injustiça, meu fascínio por essas
situações de dramaticidade distorcida, de emocionalidade excessiva
que o romantismo pareceu inventar porque usou e abusou delas, mas que
sempre existiram na literatura porque, sem dúvida, sempre existiram
na realidade, e em meu desejo. Madame Bovary é pródigo
nesses ingredientes, eles são os quatro grandes rios que banham sua
vasta geografia, e na distribuição desses conteúdos existe no
romance a mesma equidade que em sua divisão formal em partes,
capítulos, cenas, diálogos e descrições.
Mario Vargas Llosa, in A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary
Nenhum comentário:
Postar um comentário