quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Uma paixão não correspondida (trecho inicial)

 


Sempre tomei por certa a frase que se atribui a Oscar Wilde sobre um personagem de Balzac: “The death of Lucien de Rubempré is the great drama of my life” [A morte de Lucien de Rubempré é o grande drama da minha vida]. Um punhado de personagens literários marcou minha vida de maneira mais duradoura que boa parte dos seres de carne e osso que conheci. Embora seja verdade que quando personagens de ficção e seres humanos são presente, contato direto, a realidade destes últimos prevalece sobre a daqueles — nada tem tanta vida como o corpo que se pode ver, apalpar —, a diferença desaparece quando ambos voltam a ser passado, recordação, e com vantagem considerável para os primeiros sobre os segundos, cuja deliquescência na memória é irremediável, na medida em que o personagem literário pode ser ressuscitado indefinidamente, com o mínimo esforço de abrir as páginas do livro e deter-se nas linhas adequadas. Nesse círculo heterogêneo e cosmopolita, bando de fantasmas amigos que se renova segundo as épocas e o humor — hoje eu mencionaria de imediato D’Artagnan, David Copperfield, Jean Valjean, o príncipe Pierre Bezúkhov, Fabrice del Dongo, os terroristas Tchen e O Professor, Lena Grove e o condenado alto — ninguém mais persistente e com quem tenha tido uma relação mais claramente passional que Emma Bovary. Essa história pode contribuir, talvez, para ilustrar com um exemplo mínimo as relações tão discutidas e enigmáticas da literatura com a vida.
A primeira lembrança que tenho de Madame Bovary é cinematográfica. Era 1952, uma noite de verão ardente, um cinema recém-inaugurado na Plaza de Armas alvoroçada com palmeiras de Piura: aparecia James Mason encarnando Flaubert, Rodolphe Boulanger era o espigado Louis Jourdain e Emma Bovary ganhava forma nos gestos e movimentos nervosos de Jennifer Jones. O filme não deve ter deixado uma impressão forte porque não me incitou a procurar o livro, apesar de, exatamente nessa época, eu ter começado a ler de maneira empenhada e canibal.
Minha segunda lembrança é acadêmica. Por causa do centenário de Madame Bovary, a Universidade de San Marcos, de Lima, organizou uma homenagem na Aula Magna. O crítico André Coyné, impassível, punha em dúvida o realismo de Flaubert: seus argumentos desapareciam debaixo dos gritos de “Viva a Argélia Livre!” e o vociferar de uma centena de são-marquinos, armados com paus e pedras, que avançavam pelo salão na direção do estrado onde seu alvo, o embaixador francês, esperava, lívido. Parte da homenagem era a edição, em um folhetinho cujas letras saíam nos dedos, de Saint Julien l’Hospitalier, traduzido por Manuel Beltroy. Foi a primeira coisa que li de Flaubert.
No verão de 1959, cheguei a Paris com pouco dinheiro e a promessa de uma bolsa. Uma das primeiras coisas que fiz foi comprar, numa biblioteca do Quartier Latin, um exemplar de Madame Bovary na edição dos Clássicos Garnier. Comecei a ler nessa mesma tarde, num quartinho do hotel Wetter, nas imediações do Museu de Cluny. Aí começa de fato a minha história. Desde as primeiras linhas, o poder de persuasão do livro agiu sobre mim de maneira fulminante, como um feitiço poderosíssimo. Fazia anos que nenhum romance vampirizava tão rapidamente minha atenção, abolia assim o entorno físico e me submergia tão profundamente em seu mundo. À medida que avançava a tarde, caía a noite, apontava o alvorecer, era mais eficiente o transbordamento mágico, a substituição do mundo real pelo fictício. Era já de manhã — Emma e Léon tinham acabado de se encontrar em um palco da ópera de Rouen — quando, aturdido, deixei o livro e me dispus a dormir: no difícil sono matutino continuavam existindo, com a veracidade da leitura, a granja dos Rouault, as ruas enlameadas de Tostes, a figura bonachona e burra de Charles, o maciço pedantismo rio-platense de Homais e, por cima dessas pessoas e lugares, como uma imagem pressentida em mil sonhos de infância, adivinhada desde as primeiras leituras adolescentes, o rosto de Emma Bovary. Quando acordei, para retomar a leitura, é impossível que não tenha tido duas certezas como dois relâmpagos: que já sabia o escritor que eu gostaria de ser e que desde então e até a morte viveria apaixonado por Emma Bovary. Ela seria para mim, no futuro, assim como para o Léon Dupuis dos primeiros tempos, “l’amoureuse de tous les romans, l’héroïne de tous les drames, le vague elle de tous les volumes de vers” [a apaixonada de todos os romances, a heroína de todos os dramas, a vaga ela de todos os volumes de versos].
Desde então, li o romance talvez seis vezes do começo ao fim e reli capítulos e episódios soltos em muitas ocasiões. Nunca tive uma desilusão, diferente do que me ocorreu ao repassar outras histórias queridas; ao contrário, sobretudo relendo os ápices — as reuniões agrícolas, o passeio de fiacre, a morte de Emma —, sempre tive a sensação de descobrir aspectos secretos, detalhes inéditos, e a emoção foi idêntica, com variações de grau que tinham a ver com a circunstância e o lugar.
Um livro se transforma em parte da vida de uma pessoa por uma porção de razões que têm a ver ao mesmo tempo com o livro e a pessoa. Gostaria de averiguar quais são, no meu caso, algumas dessas razões: por que Madame Bovary remexeu camadas tão profundas do meu ser, por que me deu o que outras histórias não conseguiram me dar.
A primeira razão é, seguramente, essa propensão que me fez preferir, desde menino, as obras construídas com uma ordem rigorosa e simétrica, com princípio e fim, que se fecham sobre si mesmas e dão a impressão de soberania e acabamento, mais do que aquelas, abertas, que deliberadamente sugerem o indeterminado, o vago, o que está em processo, meio por fazer. É possível que estas últimas sejam imagens mais fiéis da realidade e da vida, inacabadas para sempre e sempre meio por fazer, mas justamente o que busquei, sem dúvida, por instinto, e que gosto de encontrar nos livros, nos filmes, nos quadros, não foi um reflexo dessa parcialidade infinita, desse incomensurável fluir, mas, sim, o contrário: totalizações, conjuntos que, graças a uma estrutura audaz, arbitrária mas convincente, dessem a ilusão de sintetizar o real, de resumir a vida. Esse apetite deve ter se sentido plenamente satisfeito com Madame Bovary, exemplo de obra fechada, de livro-círculo. Por outro lado, uma preferência até então nebulosa, mas crescente em minhas leituras, acabou fixada graças a esse romance. Entre a descrição da vida objetiva e da vida subjetiva, da ação e da reflexão, me seduz mais a primeira que a segunda, e sempre me pareceu uma façanha maior a descrição da segunda através da primeira do que o inverso (prefiro Tolstói a Dostoiévski, a invenção realista à fantástica, e entre irrealidades a que está mais próxima do concreto que do abstrato, por exemplo a pornografia à ficção científica, a literatura romântica aos contos de terror). Flaubert, em suas cartas a Louise, enquanto escrevia Madame Bovary, tinha certeza de estar fazendo um romance de “ideias”, não de ações. Isso levou algumas pessoas, que tomaram suas palavras ao pé da letra, a sustentar que Madame Bovary é um romance em que não acontece nada, a não ser a linguagem. Não é verdade; em Madame Bovary acontecem tantas coisas como num romance de aventuras — casamentos, adultérios, bailes, viagens, passeios, calotes, doenças, espetáculos, um suicídio —, só que se trata, no geral, de aventuras miúdas. Verdade que muitos desses fatos são narrados a partir da emoção ou da lembrança do personagem, mas, devido ao estilo maniacamente materialista de Flaubert, a realidade subjetiva em Madame Bovary tem tanta consistência e peso físico quanto a objetiva. Os pensamentos e sentimentos do romance parecem fatos , que se podem ver e quase tocar, e isso não só me deslumbrou como me revelou uma predileção profunda.
Estas são razões formais, derivadas da estrutura e da concepção do livro. As referentes ao assunto são menos invertebradas. Um romance é mais sedutor para mim na medida em que nele aparecem, combinados com perícia numa história compacta, a rebeldia, a violência, o melodrama e o sexo. Em outras palavras, a maior satisfação que um romance pode produzir em mim é provocar, ao longo da leitura, minha admiração por algum inconformismo, minha raiva por alguma bobagem ou injustiça, meu fascínio por essas situações de dramaticidade distorcida, de emocionalidade excessiva que o romantismo pareceu inventar porque usou e abusou delas, mas que sempre existiram na literatura porque, sem dúvida, sempre existiram na realidade, e em meu desejo. Madame Bovary é pródigo nesses ingredientes, eles são os quatro grandes rios que banham sua vasta geografia, e na distribuição desses conteúdos existe no romance a mesma equidade que em sua divisão formal em partes, capítulos, cenas, diálogos e descrições.

Mario Vargas Llosa, in A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary

Nenhum comentário:

Postar um comentário