Fim de ano, correria, 14h40, entrei na
lanchonete, pedi um cheese bacon (“Ui, ela come cheese bacon, que
moça indisciplinada”).
O garçom me perguntou se era com
cheddar, queijo prato, emmental, brie ou queijo da Serra da Canastra.
“Ahn… pode ser… prato.” E o pão? Quer no pão de hambúrguer
tradicional, no nosso pão exclusivo de cereais, no pão com aroma de
ervas ou no pão do chef, que é torrado com manteiga de alho e
coberto com chia? “Normal, moço, pão normal.” Ok. Vai desejar
nossa maionese especial com gengibre? Ou nosso ketchup de goiaba? Ou
molho de mostarda de Dijon com mel de laranjeira?
Olha. Eu adoro comer bem. E acho a
cozinha uma arte. Mas às vezes, só às vezes, a gente quer uma vida
que não seja gourmet. Uma vidinha limitada a queijo, bacon, carne e
pão – pura e simplesmente. Porque às vezes o gourmet não é
bem-vindo e frequentemente o gourmet cansa.
Mas o grande problema foi que o conceito
de gourmet não parou no circuito dos restaurantes. Ele se espalhou
como uma praga por incontáveis setores da nossa vida. Na verdade,
acho que o processo de gourmetização acabou por contaminar
estabelecimentos comerciais, serviços, lares e – o pior –
pessoas.
Outro dia cheguei a um churrasco dos
amigos de sempre, gente que sempre foi normal. Como de costume, cada
um levava o que fosse beber. Levei um bom e velho pack de cerveja.
Fui abrir o isopor e dei de cara com um monte de suco de cranberry,
de lichia, de maçã verde em cima do gelo, ao lado de uma vodca Grey
Goose. Ah, cara, que preguiça, para com isso.
Não satisfeitos, resolveram gourmetizar
as roupas. As peças ganharam nomes estranhos. Blusa de barriga de
fora virou cropped . Encheram as Havaianas de strass (será que ainda
pode falar strass? Acho que eu não usava essa palavra desde 2002).
Enfiaram um GPS na sola do tênis. Meus amigos falam de roupa
mencionando nomes de estilistas que seguem no Instagram. Não entendo
mais nada.
Gourmetizaram os imóveis. Os anúncios
das construtoras parecem críticas do Clodovil. “Apartamento
tendência de charme com localização exclusiva no coração da Zona
Sul, solário com projeto paisagístico de Vanderwalysson Salomão,
piscina aquecida cromoterápica com cascata gourmet, espaço gourmet
com exclusivo forno de pizza gourmet, varanda gourmet com grelha
gourmet (churrasqueira não é gourmet) e porteiro gourmet 24h.” É
tudo exclusivo, é tudo gourmet. Socorro.
Gourmetizaram a vida das crianças. No
dia em que deparei com a papinha gourmet quase tive uma síncope.
Fazem versões kids de roupas de adulto. De roupas carésimas de
adultos. As festas de aniversário passaram a ter brigadeiro de
chocolate belga em vez de ter brigadeiro rosa – fica a dica:
crianças não gostam de chocolate belga.
Gourmetizaram a barba. A barba, meu Deus!
Nem a barba ficou de fora! A barba foi alisada, milimetricamente
aparada, colocaram bálsamo de Aloe vera , silicone nas pontas,
passaram a penteá-la a cada meia hora com perfume especial para
barbas e a fazer um design exclusivo (“design exclusivo” é uma
das piores expressões do universo) com uma cera para barbas vinda da
Austrália, enriquecida com banha de canguru albino.
Acho que a vida é muito curta para
esperarmos pegarem um maçarico para caramelizar o açúcar que está
em cima do chantilly que está em cima da camada de chocolate (belga,
claro) que está em cima do mocaccino gourmet feito com café
exclusivo cultivado em Ruanda, provavelmente por mão de obra
escrava.
Eu quero uma vida menos gourmet. Quero
que parem de me dar copo quando eu abro uma lata de cerveja, quero
mais cadeira de plástico, quero Havaianas de tira normal, sola
normal, preço normal, quero queijo coalho com fuligem, quero amigos
que não analisem a marca do carro, o rótulo do vinho e a loja onde
comprei minha calça, quero crianças com os pés sujos de brincar no
quintal, quero um apartamento no qual bata sol, que tenha um valor de
aluguel aceitável e vizinhos que não gritem muito. Não precisa ter
varanda gourmet não.
Quero, talvez uma vez por mês ou a cada
dois meses, uma noite gourmet. Prestar atenção nos sabores, me
surpreender com a combinação de kiwi com carne de porco ou de
agrião com banana-nanica. Fora isso, quero só dias felizes. E dizem
por aí que não há felicidade maior do que precisar de pouco.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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