sábado, 31 de outubro de 2020

O menino educado

             O menino educado bateu na porta. Os pais dele estavam brigando, muito ocupados para atender, mas, após algumas batidas, ele entrou de todo modo. “Um erro”, o pai disse para a mãe, “é isso que nós somos, um erro. Como naquelas ilustrações que mostram como não fazer algo. Somos assim. Com um ‘não!’ grande em baixo e um X vermelho sobre a cara.” “O que você quer que eu lhe diga?”, a mãe disse ao pai, “pois tudo o que eu disser agora depois lamentarei ter dito.” “Diga, diga”, o pai rosnou, “para que esperar para depois se já pode lamentar agora?” O menino educado tinha um aeromodelo na mão. Ele o construíra sozinho. O manual que acompanhava a embalagem era numa língua que ele não entendia, mas havia ilustrações claras e setas, e o menino educado, cujo pai sempre dizia que tinha mãos boas, conseguiu construir o aeromodelo, seguindo as instruções, sem qualquer ajuda adicional. “Antigamente eu ria”, disse a mãe, “ria bastante, todo dia. E agora...” Ela acariciou o cabelo do menino educado distraidamente. “Agora eu já não rio. É isto.” “Isto?”, berrou o pai, “é isto? É o seu ‘vou lamentar isto depois’? ‘Antigamente eu ria’? Grande merda!”
Que belo avião”, a mãe disse e desviou o olhar ostensivamente do pai, “Por que você não vai brincar lá fora com ele?” “Vocês deixam?” perguntou o menino bem educado. “Lógico que deixamos”, a mãe sorriu e novamente acariciou o cabelo dele como se acaricia a cabeça de um cachorro. “Quanto tempo posso ficar lá?”, perguntou o menino educado. “Quanto você quiser”, o pai explodiu. “E se gostar de ficar lá fora, não precisa voltar. Só telefone de vez em quando para a mamãe não ficar preocupada.” A mãe se levantou e deu um tapa no pai com toda a força. Foi estranho, porque pareceu que o tapa apenas alegrou o pai, e foi justamente a mãe que começou a chorar. “Vá, vá”, disse a mãe, soluçando, ao menino educado, “vá brincar enquanto está claro. Mas volte antes de escurecer.” “Talvez o rosto dele seja duro como pedra”, o menino educado pensou ao descer a escada, “e por isto a mão dói quando se bate nele.”
O menino educado lançou o aeromodelo com toda a força. A peça fez uma acrobacia e continuou a deslizar paralelamente ao chão até se chocar contra um bebedouro. A asa se entortou ligeiramente, e o menino educado esforçou-se para endireitá-la. “Uau”, disse uma menina ruiva que ele não notara antes, e lhe estendeu a mão sardenta. “Que avião maneiro. Eu também quero fazer com que ele voe.” “Isto não é um avião”, o menino a corrigiu, “é um aeromodelo. Avião tem motor.” “Tudo bem, deixa eu tentar”, a menina ordenou sem tirar a mão, “não seja egoísta.” “Primeiro preciso arrumar a asa”, esquivou-se o menino educado, “você não está vendo que entortou?” “Egoísta”, disse a menina, “tomara que aconteça um monte de coisas ruins com você.” Ela franziu a testa na tentativa de pensar em alguma coisa mais específica, e, por fim, quando conseguiu, sorriu: “Que a sua mãe morra. É isso aí, que ela morra. Amém.” O menino educado a ignorou, exatamente como tinham ensinado que deveria fazer. Ele era uma cabeça mais alto que a garota, e se quisesse poderia ter-lhe dado um tapa, e isto doeria muito nela, muito mais do que nele, porque o rosto dela com toda a certeza não era de pedra. Mas ele não bateu nem chutou nem atirou uma pedra. Tampouco a xingou de volta. Era educado. “E que também o seu pai morra”, a ruiva acrescentou, lembrando-se, “Amém”, e foi embora.
O menino educado fez o aeromodelo voar mais algumas vezes. No arremesso mais bem-sucedido, a peça fez três acrobacias completas antes de cair. O sol também já começava a se pôr, o céu estava se tornando avermelhado. O pai lhe dissera certa vez que se a gente olha para o sol por muito tempo sem piscar, pode ficar cego, e por causa disto o menino educado tratava de fechar os olhos de vez em quando. Mas mesmo de olhos fechados, ele continuou a ver o vermelho do céu. Era estranho, e o menino educado estava ansioso para entender aquilo melhor, mas sabia que, se não voltasse para casa, logo a mãe ficaria preocupada. “O sol brilha o dia todo”, o menino educado pensou e curvou-se para pegar o aeromodelo da relva, “e eu não me atraso nunca.”
Quando o menino educado entrou em casa, a mãe continuava na sala, chorando e apertando a mão. O pai não estava lá. A mãe disse que ele estava no quarto dormindo, porque mais tarde daria plantão, e foi preparar uma omelete para o menino educado jantar. O menino educado empurrou um pouco a porta do dormitório dos pais, que não estava totalmente fechada. O pai estava deitado, vestido e calçado. Estava de bruços, olhos abertos, e quando o menino educado espiou o quarto, ele perguntou sem erguer a cabeça da cama, “Que tal o aeromodelo?” “Legal”, disse o menino educado, e quando sentiu que o que tinha dito não era suficiente, acrescentou, “muito legal.” “Eu e a mamãe às vezes brigamos e dizemos coisas para magoar um ao outro”, disse o pai, “mas você sabe que eu sempre amarei você. Certo? Sempre. Não importa o que se diga.” “Sim”, concordou o menino educado e começou a sair e a fechar a porta, “Eu sei, obrigado.”

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

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