sexta-feira, 30 de outubro de 2020

A boa sorte de Babette

         O dia 15 de dezembro teria sido o centésimo aniversário do deão. Suas filhas havia muito ansiavam por esse dia e desejavam celebrá-lo, como se seu estimado pai estivesse ainda entre os discípulos. Assim, foi triste e incompreensível que naquele ano a discórdia e a dissensão houvessem surgido entre o rebanho. Envidaram esforços para obter paz, mas estavam cientes de que haviam fracassado. Era como se o admirável e afetuoso vigor da personalidade de seu pai tivesse evaporado, assim como o analgésico de Hoffmann se deixado na prateleira numa garrafa sem rolha. E sua partida deixara a porta entreaberta para coisas até então desconhecidas das duas irmãs, muito mais jovens do que os filhos espirituais de seu pai. De um passado meio século distante, quando as ovelhas sem pastor haviam se extraviado pelas montanhas, hóspedes sinistros, nos calcanhares dos devotos, aproveitaram a brecha para penetrar sem serem convidados e lançaram sobre os pequenos cômodos frio e escuridão. Pecados dos velhos irmãos e irmãs vieram à tona com um remorso tardio e excruciante como dor de dente, e pecados de outros contra eles com o ressentimento amargo do sangue envenenado.
Havia na congregação duas velhas senhoras que antes da conversão haviam se difamado mutuamente, tendo assim arruinado os respectivos casamentos e uma herança. Agora, eram incapazes de se lembrar de acontecimentos do dia anterior ou de uma semana antes, mas não esqueciam esse agravo de quarenta anos no passado e continuavam a remoer antigas histórias, rosnando uma para a outra. Havia um velho irmão que subitamente se lembrou de como outro irmão, quarenta e cinco anos antes, o tapeara num negócio; talvez houvesse desejado apagar o assunto de sua mente, mas aquilo permanecia cravado ali como uma ferida purulenta. Havia um velho e honrado comandante de navio e uma viúva enrugada e devota que, na juventude, quando ela era esposa de outro homem, haviam sido amantes. Ultimamente, ambos começaram a se afligir, enquanto tiravam o fardo da culpa dos próprios ombros e o jogavam um sobre o outro, para depois assumi-lo novamente, preocupando-se com as possíveis consequências terríveis, por toda a eternidade, para si mesmos, provocadas pela pessoa que no passado jurararam amar. Ficavam muito pálidos durante as reuniões na casa amarela e evitavam o olhar um do outro.
À medida que a comemoração se aproximava, Martine e Philippa sentiam cada vez mais o peso da responsabilidade. Iria o pai que sempre lhes fora fiel olhar para as filhas lá de cima e considerá-las anfitriãs injustas? Discutiam bastante o assunto entre si e repetiam as palavras de seu pai: que os caminhos do Senhor correm até pelo mar salgado e pelas montanhas cobertas de neve, onde o olhar do homem não enxerga nenhum rastro.
Certo dia, nesse verão, o correio trouxe uma carta da França para Madame Babette Hersant. Era uma coisa em si mesma surpreendente, pois ao longo de doze anos Babette jamais recebera carta alguma. As senhoras perguntavam-se o que poderia ela conter. Levaram-na à cozinha para vê-la abrir e ler a carta. Babette a abriu, leu, ergueu os olhos do papel para o rosto das duas mulheres e disse-lhes que saíra seu número na loteria francesa. Ela havia ganho dez mil francos.
A notícia causou tal impressão nas duas irmãs que ao longo de todo um minuto foram incapazes de dizer palavra. Elas mesmas estavam acostumadas a receber sua pensão modesta em pequenas parcelas; era-lhes difícil até imaginar a quantia de dez mil francos de uma vez. Então apertaram a mão de Babette, suas próprias mãos ligeiramente trêmulas. Nunca haviam apertado a mão de uma pessoa que um minuto antes entrara em posse de dez mil francos.
Após alguns instantes, deram-se conta de que aquele acontecimento dizia respeito tanto a elas quanto a Babette. A nação francesa, sentiam, assomava lentamente no horizonte da criada e, de modo correspondente, a própria existência delas afundava-lhes sob os pés. Os dez mil francos que a tornaram rica… quão pobre não tornaram a casa na qual servira! Uma a uma, antigas ansiedades e preocupações esquecidas começaram a botar as cabecinhas para fora e espiá-las dos quatro cantos da cozinha. As felicitações morriam em seus lábios e as duas senhoras devotas envergonhavam-se do próprio silêncio.
Ao longo dos dias seguintes, anunciaram a notícia para os amigos com alegria estampada no rosto, mas fazia-lhes bem ver o rosto desses amigos ganhar uma expressão triste à medida que a escutavam. Ninguém – era o sentimento geral da irmandade – podia realmente pôr a culpa em Babette: pássaros regressam a seus ninhos e seres humanos ao país onde nasceram. Mas será que a boa e fiel criada se dava conta de que partindo de Berlevaag estaria deixando tanta gente velha e pobre mergulhada em aflição? Suas caras irmãzinhas não teriam mais tempo para os enfermos e desvalidos. Sem sombra de dúvida, loterias eram uma coisa blasfema.
No devido tempo, o dinheiro chegou por escritórios de Cristiânia e Berlevaag. As duas senhoras ajudaram Babette a contá-lo e deram-lhe uma caixa para guardá-lo. Manusearam e ganharam familiaridade com os agourentos maços de papel.
Não ousavam perguntar a Babette sobre a data de sua partida. Ousariam esperar que permanecesse com elas até o dia 15 de dezembro?
As donas da casa nunca sabiam muito bem até que ponto a cozinheira acompanhava ou compreendia suas conversas particulares. Assim, ficaram surpresas quando, numa noite de setembro, Babette entrou na sala de visitas, mais humilde ou submissa do que jamais a viram, para pedir um favor. Rogava, disse, que a deixassem preparar um jantar de comemoração para o aniversário do deão.
Não fora intenção das senhoras que houvesse jantar algum. Uma ceia muito simples com uma xícara de café era a refeição mais suntuosa à qual já haviam levado qualquer convidado a sentar. Mas os olhos negros de Babette eram ansiosos e suplicantes como os de um cachorro; concordaram em que fizesse as coisas do seu jeito. Ao ouvir isso, o rosto da cozinheira se iluminou.
Mas tinha mais a dizer. Queria, disse, fazer um jantar francês, um autêntico jantar francês, dessa única vez. Martine e Philippa olharam uma para a outra. Não gostaram da ideia; pressentiam que não sabiam o que aquilo poderia implicar. Mas a própria estranheza do pedido as desarmou. Não tiveram argumentos com que fazer frente à proposta de preparar um autêntico jantar francês. Babette soltou um profundo suspiro de felicidade, mas continuou imóvel. Tinha ainda uma prece a fazer. Rogava às donas da casa que lhe permitissem pagar o jantar francês com o próprio dinheiro.
Não, Babette!”, exclamaram as senhoras. Como podia imaginar uma coisa dessas? Acreditava ela que lhe permitiriam gastar seu precioso dinheiro com comida e bebida… ou com elas? Não, Babette, de jeito nenhum.
Babette deu um passo à frente. Havia algo de formidável nesse movimento, como uma onda se avolumando. Teria ela arremetido dessa forma, em 1871, para fincar uma bandeira vermelha numa barricada? Falou, em seu esquisito norueguês, com a clássica eloquência francesa. Sua voz era como uma canção.
Senhoras! Alguma vez, nesses doze anos, pedira algum favor? Não! E por que não? As senhoras, que elevam suas preces todos os dias, conseguem imaginar o que significa para um coração humano não ter prece alguma a fazer? Para o que Babette oraria? Nada! Esta noite, tinha uma prece a fazer, do fundo de seu coração. Não sentem esta noite, minhas senhoras, ser sua incumbência condescender-lhe com a mesma alegria com que o bom Deus tem condescendido a elas?
As mulheres, por um minuto, nada disseram. Babette tinha razão; era a primeira coisa que pedia em doze anos; muito provavelmente seria a última. Refletiram um pouco. Afinal, disseram a si mesmas, a cozinha deles era melhor que a delas e um jantar não faria diferença para uma pessoa que possuía dez mil francos.
Seu consentimento enfim mudou Babette completamente. Perceberam que na juventude fora uma linda mulher. E ficaram imaginando se nessa hora elas próprias não haviam, pela primeira vez, se tornado para ela a “boa gente” da carta de Achille Papin.

Karen Blixen, in A festa de Babette

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