terça-feira, 31 de março de 2020
Adelaide
A
sociedade comercial Ramos & Costa, explorando o negócio de
fazenda, miudeza, ferragem e perfumaria estabeleceu-se numa esquina
do largo principal da cidade: prédio vistoso, com diversas portas,
um letreiro vermelho e negro feito por Joaquim Correntão, que
pintava índios empenachados e falava muito em chimpanzés e
orango-tangos. Na loja havia dois caixeiros e um guarda-livros.
A
família se instalou na Rua do Juazeiro, numa casa próxima à
cadeia, e dissabores aí nos surgiram. Certamente meu pai se
esforçava demais por agüentar-se e trepar. Começou a ter vertigens
e síncopes, desacordava minutos compridos, e nós nos alarmávamos,
órfãos, chorávamos olhando o corpo morto.
Levantava-se
e revivia, continuava na faina de subir, nivelar-se aos parentes
enraizados na lavoura. Alguns iam visitar-nos, duros, tesos. Findas
essas cerimônias, meu pai caía num abatimento profundo. Ás vezes
se deitava, enrolava-se nos cobertores, desalentava-se, em tremuras,
anunciava aos gritos que ia morrer. Vinha o Dr. Mota Lima, dava-lhe
um vomitório de substância, encorajava-o pregando lhe os óculos
grossos de míope. O doente se envergonhava daquele barulho — e
horas depois lisonjeava os proprietários, colaborava na política.
A
terra era um lamaçal cheio de ladeiras. Em tempo de inverno a gente
andava com dificuldade no calçamento de pedras soltas, entremeadas
de barrocas.
Matricularam-me
na escola pública da professora Maria do O, mulata fosca, robusta em
demasia, uma das criaturas mais vigorosas que já vi. Esse vigor se
manifestava em repelões, em berros, aos setenta ou oitenta alunos
arrumados por todos os cantos.
Localizaram-me
no corredor — e, pouco fiscalizado, quase despercebido, reabri
desgostoso o terceiro livro do Barão de Macaúbas, tornei a encalhar
nas regras de pontuação. As minhas deficiências ocultaram-se
alguns dias: Dondom, mocinha pálida e misericordiosa, tomou-me as
lições, protegeu-me, corrigiu-me a pronúncia, inutilmente, e fez
por mim na ardósia as contas enigmáticas.
Mandavam-me
rabiscar algumas linhas pela manhã. Logo no início desse terrível
dever, o pior de todos, surgiu uma novidade que me levou a desconfiar
da instrução de Alagoas: no interior de Pernambuco havia 1899
depois dos nomes da terra e do mês; escrevíamos agora 1900, e isto
me embrulhou o espírito. Faltou-me a explicação necessária. Como
a doce mestra sertaneja, clara, de belos caracóis imaculados,
superava a outra, escura, agreste, de músculos rijos, nos olhos
raivosos estrias amarelas, considerei a nova data um erro. Com
certeza não foi esta reflexão que mo endureceu a munheca e povoou
de borrões o traslado, mas pode ter tido influência: realmente não
caprichei na fatura de sinais duvidosos.
Uma
vez, notando-me o desânimo diante da folha machucada, Dondom tomou a
pena, traçou vários caracteres em caligrafia direita,
emagrecendo-os, maneira.
Conselho
perdido: as garatujas de 1900 eram iguais às de 1899. E quando a
professora foi julgar as escritas e viu o dolo, chamou-me, exigiu
esclarecimento.
Desejei
mentir, responsabilizar-me. Impossível. Olhei desesperado a minha
cúmplice. D. Maria do O envolveu a mão nos cabelos da menina,
deixando livres o indicador e o polegar, com que me agarrou uma
orelha. E, tendo-nos seguros, agitou o braço violentamente:
rodopiamos como dois bonecos e aluímos sobre os bancos.
Voltei
ao anonimato e à sombra, contundido. Mas a benévola imprudência da
moça e a raiva da enorme bruta falharam: permaneci obtuso, odiando
as vírgulas e o catecismo, só abrindo os volumes sujos à hora da
lição. Felizmente escapava entre dezenas de garotos rudes. Se não
fosse a recordação de uns dedos que me apertavam a orelha,
conseguiria achar paz e segurança. Na sala, vendo a mulata ou cafuza
brandir a palmatória, precisaria comportar-me bem, simular atenção,
molhar de saliva as páginas detestáveis. Ali, no encolhimento e na
insignificância, os livros fechados, embrutecia-me em leves
cochilos, quase só.
Desperto,
bocejava, examinava o quintal estreito, que subia o morro do
cemitério, argiloso e resvaladiço. Perto, na cozinha, três velhas,
tias da professora, miúdas e cor de piche, torravam milho no caco,
pisavam milho no pilão, enchiam de fubá caixinhas coloridas e
franjadas. Os alunos astutos compravam aquilo, massa pegajosa,
amarga, nauseabunda — e os ganhos da indústria caseira excediam
talvez o vencimento que o Tesouro pingava. Constrangida no
espartilho, branqueada a pó-de-arroz, D. Maria do O fingia
humanizar-se lá fora: a voz amansava, a carne se reprimia,
doméstica, os bugalhos amarelentos se ocultavam sob as pálpebras
roxas — e a fera metia as garras nos cabelos das crianças,
adulando.
Entre
as vítimas desse diabo, a mais infeliz era minha prima Adelaide. Os
pais não queriam separar-se dela. E, ricos, podendo confiá-la a
estabelecimento que ensinasse línguas difíceis, tinham resolvido
instruí-la sem perdê-la de vista.
Os
colégios mais ou menos europeus ficavam longe. Iriam soltá-la por
este mundo, sujeita a inconveniências? Não. A pequena conservaria,
perto de casa, todas as virtudes: bordaria fronhas; ligar-se-ia no
altar, sem namoro, a um rapaz de juízo e fortuna, bem apessoado. E
diferençar-se-ia das mulheres que fumavam cachimbo de barro. Uma
Adelaide letrada, não muito letrada, com as inovações e as letras
necessárias. Uma Adelaide que se banhasse no riacho e falasse
francês.
Ora,
João Leite, dono do Cavalo-Escuro, não conhecia os degraus da
ciência. Acreditara num diploma da escola normal, entregara a filha
a D. Maria do O. E, em consequência, uma vez por semana, carros de
bois e cargueiros derramavam na escola formas de açúcar, melado,
sacos de grão, farinha. A princípio esse exagero fora recebido com
alvoroço, mas habituaram-se a ele, esqueceram agradecimentos, enfim
aboliram as gatimônias dispensadas ao portador risonho, o crioulo
José Luís. Adelaide se rebaixara. Estava ali quase órfã — e a
horrenda mulata inchava e se envaidecia, publicando por meios
indiretos que fazia caridade a uma intrusa. Insensível ao pagamento
largo, torturava-a.
Certamente
não começara impondo-lhe maus tratos: afeita à liberdade, ao
mando, às correrias, às injúrias a caboclos na bagaceira, Adelaide
se rebelaria contra a nova autoridade, aparentemente igual às
figuras que serviam na casa-grande. Indispensáveis meses e anos para
dominar a criaturinha, degradá-la, enquanto o algoz se acomodava
também à situação, experimentava as forças, apurava a maldade.
No começo o jeito servil, o sorriso convencional; em seguida um
olhar frio, gesto de enfado, palavra dura; a lisonja recomposta;
novamente acrimônia e aspereza. Idas e vindas, intermitências. Um
castigo — e logo o afã de obliterá-lo, explicá-lo como trabalho
de educação. A covardia manhosa adoçava umas tréguas curtas. Não
fosse a garota badalar, pedir aos pais que a retirassem daquele
inferno. Não pedia. Talvez até ignorasse que estava nele. Tinham-na
vencido, tinham-lhe gasto o fio em pedra de amolar. Afinal
desapareceram as precauções. El a menina, triste, olhava a rua, os
montes verdes. Silenciosa, descia, cada vez mais descia,
esgueirava-se, tentava ocultar a magreza, na aula muito povoada.
Tentativa inútil. D. Maria do O atravessava as pessoas com os olhos,
achava num canto da sala o corpinho fugidio, imputava-lhe qualquer
falta. Às vezes a casa não estava bem varrida. Marcas de poeira,
visíveis entre os bancos, avultavam apontadas pelo grosso dedo
severo, comentadas pela voz estridente. E a infeliz, vergando sob a
cólera despropositada, ia buscar a vassoura, limpar o tijolo,
havia-se reduzido à condição de criada. Na labuta doméstica,
sofria a birra das três velhas miúdas e cor de piche. Essas fúrias
boçais vinham de classe muito baixa, tinham decerto adquirido em
senzalas o veneno que destilavam. Da subserviência, antiga, passavam
às ordens brutais, vingavam-se numa possível descendente de
senhores remotos. Adelaide curvava o espinhaço, calejava na
obediência, esmorecia nos trabalhos mais humildes.
A
estranha inversão de papéis me surpreendia e revoltava, mas a
surpresa e a revolta nunca se manifestaram. Longe da escola, em
arrancos de coragem, afrontei as megeras.
— Ah!
negras!
Ali
no corredor, o livro esquecido nos joelhos, vendo o quintal, o morro,
ouvindo as lições cantadas e a arrelia da mestra, anulava-me,
colava-me à parede, pusilânime e esquivo. Não ousaria revelar
afeto a minha prima, não me arriscaria sequer a observar o martírio
dela. Nas horas de aflição, multiplicadas, baixava a cabeça,
fingia não perceber os braços finos, o rosto murcho e pálido, a
boca torcida, os grandes olhos assustados, sem lágrimas. Receava,
mostrando qualquer sinal de interesse, magoar a pobre, humilhá-la
ainda mais. Talvez isso fosse hipocrisia: o que eu receava
intimamente era comprometer-me associando-me àquela fraqueza,
receber cachações destinados a ela. Não me parecia que Adelaide
pudesse reabilitar-se, recuperar a alma de proprietária, dominar os
cambembes esvaídos no eito. O engenho perdera a grandeza, era uma
sombra de engenho, e a sinhá-moça arrastaria anos de vexame, até o
fim da vida.
Tinha-me
chegado vagas notícias da escravidão, sem relho e sem tronco,
aceitável, quase desejável. Maria Moleca e Vitória, livres, viviam
sossegadas em casa de meu avô. Não me vinha a ideia de que se
conservassem ali por hábito ou por não terem para onde ir. Estavam
bem, sempre tinham estado bem. As tias da professora haviam sido
mucamas de luxo, sem dúvida, antes da maluqueira de uma princesa
odiosa. Ingratas. Não me ocorria que alguém manejara a enxada,
suara no cultivo do algodão e da cana: as plantas nasciam
espontaneamente. E não pensava no sacrifício necessário às três
mulheres para levantar a sobrinha fusca, desbastá-la, vesti-la,
escová-la, impingi-la na sociedade. Essa metamorfose era casual. E
arrepiava-me.
Coitada
de minha prima, tão boa, tão débil, suportando as enxaquecas das
miseráveis. Lugar de negro era a cozinha. Por que haviam saído de
lá, vindo para a sala, puxar as orelhas de Adelaide? Não me
conformava. Que mal lhes tinha feito Adelaide? Por que procediam
daquele modo? Por quê?
Graciliano
Ramos, in Infância
Ao linotipista
Desculpe
eu estar errando tanto na máquina. Primeiro é porque minha mão
direita foi queimada. Segundo, não sei por quê.
Agora
um pedido não me corrija. A pontuação é a respiração da frase,
e minha frase respira assim. E se você me achar esquisita, respeite
também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
Escrever
é uma maldição.
Clarice
Lispector,
in Crônicas para
jovens: de escrita e vida
Quando o Rio não era Rio
Naquele
tempo o Rio não era o Rio. Eu me lembro muito bem quando começou
essa moda de dizer: vou ao Rio, cheguei do Rio. Até então nós
todos dizíamos solenemente: Rio de Janeiro. E nos debruçávamos
sonhadoramente sobre os cartões-postais que as pessoas que iam ao
Rio de Janeiro mandavam: o bondinho do Pão de Açúcar (que era de
Assucar) e o Corcovado, ainda sem Cristo.
Mas
havia dois palácios de maravilha para a nossa imaginação; seus
nomes soavam belíssimos: a Galeria Cruzeiro e o Pavilhão Mourisco.
Não consigo refazer a ideia que eu tinha da Galeria Cruzeiro, creio
que era uma ideia que variava muito. Um grande recinto sem plateia
mas com muitas galerias, ou um palácio em forma de túnel com um
Cruzeiro do Sul aceso na fachada, algo de estranho e imenso, pois
toda gente encontrava toda gente na Galeria Cruzeiro. O Pavilhão
Mourisco, este para nós era feérico, cheio de minaretes; odaliscas,
bandeiras e punhais, talvez camelos, pelo menos grandes camelos
pintados entre oásis.
As
pessoas grandes que chegavam do Rio traziam malas fabulosas, cheias
de presentes para todos, além de dezenas de encomendas, todas
escritas cuidadosamente em uma lista com letra feminina. Nós nos
juntávamos todos para assistir à abertura das malas.
“Isto
é para você!” Era fascinante receber um embrulho de presente com
o nome da loja impresso na fita que o amarrava.
Mas
o que mais me impressionou foi uma sopa juliana. Eu nunca tinha
ouvido falar de sopa juliana, não era prato que se usasse em minha
casa. E não gostei da sopa: era de verduras e legumes. Mas o
espantoso é que vinha seca, em um envelope, e quando se punha n’água
crescia, tomava cores. As coisas do Rio de Janeiro eram assim, cheias
de milagres e de astúcias. E à noite, quando vinham visitas, os
viajantes contavam as últimas anedotas do Rio de Janeiro, pois
naquele tempo não havia rádio.
Lembro-me
que, apesar de sentir esse fascínio do Rio de Janeiro, eu não
pensava nunca em vir aqui. Isso simplesmente não me passava pela
cabeça; o Rio era um lugar maravilhoso, onde vinham pessoas grandes
e até eu pensava vagamente que no Rio de Janeiro só devia haver
pessoas grandes. Era verdade que havia, por exemplo, um menino, o
Zezé, filho de seu Osvaldo, que vinha ao Rio de Janeiro; ele usava
sapatos, quando nós todos usávamos botinas. Mas, mesmo pelo fato de
usar sapatos e vir ao Rio era como se ele fosse uma pessoa de outra
raça, não uma criança como nós. Eu não chegava sequer a
invejá-lo, tão diferente de nós eu o achava. Zezé tinha até um
sapato de duas cores, branco e vermelho; e nós com nossas botinas
pretas, sempre de bico esbranquiçado de tanto chutar pedra na rua,
sempre com os cadarços meio arrebentados, difíceis de enfiar.
Fiquei
muito espantado quando minha irmã, que vinha ao Rio com o marido, me
convidou para vir também. Ela disse que era um prêmio porque eu
tinha tirado boas notas nos exames. Lembro-me de que minhas notas
tinham sido apenas regulares, de maneira que achei aquele convite uma
honra, uma distinção que eu mesmo sabia que não merecia muito. Eu
tinha nove anos, e essa irmã era minha madrinha.
Ficamos
em uma casa de parente, na Rua Lopes Trovão, em Icaraí, ao lado do
Campo de S. Bento, que achei lindo. Lembro-me de passear na calçada
da praia com uma roupa de marinheiro, que tinha escrito no gorro:
“Encouraçado São Paulo.” E na proa da barca da Cantareira, ao
chegar ao Cais Pharoux, Antônio Paraíso, que me trazia pela mão,
dizer a um amigo: “Este cidadão vai pisar pela primeira vez o Rio
de Janeiro.”
Fomos
encontrar minha irmã e meu cunhado na hora do almoço, na Casa Heim.
Era a primeira vez que eu entrava em um restaurante e achei engraçado
o nome, que pensava que fosse “in”, então me corrigiram a
pronúncia, dizendo que em alemão era assim: “ráim”.
Mas
riram muito de mim em Cachoeiro quando perceberam que a coisa de que
eu mais havia gostado no Rio foi me deixarem ajudar a lavar a casa lá
em Icaraí, despejar baldes d’água no assoalho de tábuas largas;
porque eu falava mais disso que da Exposição do Centenário da
Independência.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
Os espantosos megálitos dos Andes
Na
porção plana de uma colina que avista o Vale de Cuzco, no Peru, há
uma fortaleza colossal chamada Sacsayhuaman, um dos mais imponentes
edifícios já construídos. Sacsayhuaman é formada por três ou
quatro paredes em terraço que sobem pela colina, e as ruínas
incluem portais, escadarias e rampas.
Gigantescos
blocos de pedra, alguns pesando mais de 200 toneladas, estão
perfeitamente encaixados. Os enormes blocos estão cortados,
facetados e encaixados tão bem que até hoje não é possível
enfiar uma lâmina de canivete, ou mesmo uma folha de papel entre
eles. Não foi usado cimento, e não há dois blocos iguais. Contudo,
eles se encaixam perfeitamente, e alguns engenheiros afirmaram que
nenhum construtor moderno, com a ajuda de instrumentos e ferramentas
do mais puro aço, seria capaz de produzir resultados mais precisos.
Cada pedra teve de ser planejada com muita antecedência; uma pedra
de 21 toneladas, para não falar de uma pesando de 80 a 200
toneladas, não pode apenas ser posta descuidadamente no lugar,
esperando-se atingir aquele grau de precisão! As pedras estão
encaixadas e ajustadas em suas posições, com entalhes do tipo
rabo-de-andorinha, tornando-as à prova de terremotos. Com efeito,
após muitos terremotos devastadores nos Andes ao longo dos últimos
séculos, os blocos ainda estão encaixados perfeitamente, enquanto a
catedral espanhola, em Cuzco, precisou ser reconstruída duas vezes.
O
mais incrível é que os blocos não são feitos com pedras locais,
mas, segundo alguns relatos, provêm de pedreiras do Equador, a mais
de 2.400 quilômetros dali! Outros estudiosos localizaram pedreiras
bem mais próximas, a cerca de 8 quilômetros, apenas. Embora se
suponha que a fantástica fortaleza tenha sido feita há apenas
alguns séculos pelos incas, não há registros de sua construção,
e tampouco ela figura nas lendas nativas. Como se explica que os
incas, que não tinham conhecimento de matemática superior, não
possuíam linguagem escrita, não dispunham de ferramentas de ferro e
nem usavam rodas, podem receber o crédito pela construção desse
complexo ciclópico de muralhas e edificações? Francamente, é
preciso fazer força para encontrar uma explicação, que tampouco
seria simples.
Quando
os espanhóis chegaram a Cuzco e viram essas estruturas, pensaram ser
obras do próprio demônio, em virtude de sua grandeza. De fato, em
nenhum outro lugar se vê blocos tão grandes encaixados com tamanha
perfeição. Viajei pelo mundo todo à procura de mistérios antigos
e cidades perdidas, mas nunca vi nada parecido.
Os
construtores das muralhas não eram apenas bons pedreiros - eram
incomparáveis! Trabalhos de cantaria similares podem ser vistos em
todo o Vale de Cuzco. Geralmente, são feitos com blocos de pedra bem
talhados e retangulares, pesando até 1 tonelada. Um grupo de pessoas
fortes pode erguer um bloco e colocá-lo no lugar; sem dúvida, foi
assim que algumas das menores estruturas foram feitas. Mas em
Sacsayhuaman, Cuzco e outras cidades incas antigas, podemos ver
blocos imensos com 30 ângulos ou mais em cada um.
Na
época da conquista espanhola, Cuzco estava em seu apogeu, com
população estimada em 100 mil incas. A fortaleza de Sacsayhuaman
poderia abrigar todos os habitantes dentro de seus muros em caso de
guerra ou de catástrofe natural. Alguns historiadores afirmaram que
a fortaleza foi construída alguns anos antes da invasão espanhola,
e creditaram a estrutura aos incas. Mas os incas não conseguem se
lembrar exatamente como ou quando ela foi feita! Só resta um relato
antigo do transporte das pedras, encontrado na obra de Garcilaso de
la Vega, The inccus. Em seus comentários, Garcilaso fala de uma
pedra monstruosa levada a Sacsayhuaman desde Ollantaytambo, a uma
distância de cerca de 72 quilômetros.
Os
índios dizem que, por causa do grande trabalho que teve para ser
levada, a pedra ficou cansada e chorou lágrimas de sangue porque não
conseguiu um lugar na edificação. A realidade histórica é
transmitida pelos amantas (filósofos e médicos) dos incas, que
costumavam falar sobre isso. Dizem que mais de 20 mil índios levaram
a pedra até o local, arrastando-a com grossas cordas. A rota que
seguiram para levar a pedra era muito difícil. Havia muitas colinas
para subir e descer. Cerca de metade dos índios puxava a pedra com
as cordas colocadas na frente. A outra metade segurava a pedra por
trás, com medo de que ela pudesse se soltar e cair em uma ravina da
qual não poderia ser removida.
Em
uma dessas colinas, por falta de cautela e esforço mal coordenado, o
peso da pedra foi excessivo para aqueles que a sustentavam por trás.
A pedra rolou colina abaixo, matando 3 ou 4 mil índios que a
sustentavam. Apesar desse infortúnio, eles conseguiram tornar a
erguê-la. Ela foi posta na planície onde hoje repousa.
Embora
Garcilaso de la Vega descreva o transporte da pedra, muitos duvidam
da veracidade dessa história. Essa pedra não pertence à fortaleza
de Sacsayhuaman e, segundo alguns pesquisadores, é menor do que
aquelas lá usadas, embora a pedra nunca tenha sido identificada
positivamente. Mesmo que a história seja real, talvez os incas
tenham procurado reproduzir aquela que, segundo eles, teria sido a
técnica de construção usada pelos antigos construtores. Apesar de
não se poder negar a maestria dos artífices incas, para alguém
acreditar nessa história precisa, antes, questionar como eles teriam
transportado e colocado os blocos de 100 toneladas tão bem, tendo em
conta o trabalho que tiveram com apenas uma pedra.
O
fato de os incas terem descoberto essas ruínas megalíticas e
construído algo sobre elas, afirmando que eram obra deles, não é
lá uma teoria muito alarmante. Com efeito, é bem provável que seja
verdade. Os antigos governantes egípcios, com frequência,
reclamavam para si obeliscos, pirâmides e outras estruturas já
existentes, chegando por vezes a apagar o cartucho do verdadeiro
construtor, substituindo-o pelo seu. A Grande Pirâmide parece ter
sido vítima de tal ardil. O faraó Kufu, ou Quéops, como era
conhecido na Grécia, mandou gravar seu cartucho na base da Grande
Pirâmide. Esse é o único texto que se pode encontrar nela, mas, ao
que tudo indica, a pirâmide não foi construída por Quéops. Talvez
nem seja um túmulo, mas isso é uma outra história.
Se
os incas chegaram e descobriram muralhas e alicerces de cidades já
existentes, por que não se instalaram por lá, pura e simplesmente?
Até hoje, bastam algumas pequenas reformas e um teto em algumas das
estruturas para torná-las habitáveis. De fato, quase tudo indica
que os incas simplesmente encontraram as estruturas e
acrescentaram-lhes alguns detalhes. Há muitas lendas andinas que
relatam que Sacsayhuaman, Machu Picchu, Tiahuanaco e outras ruínas
megalíticas teriam sido construídas por um povo gigante. Alain
Gheerbrant comenta em suas notas ao livro de Garcilaso:
Foram
usados três tipos de pedra para construir a fortaleza de
Sacsayhuaman. Dois deles, inclusive os que foram usados para fazer os
gigantescos blocos da muralha externa, foram encontrados praticamente
no local. Só o terceiro tipo de pedra (andesito negro), para as
edificações internas, foi levado de pedreiras relativamente
distantes; as pedreiras de andesito negro mais próximas ficavam em
Huaccoto e Rumicolca, a 14 e a 40 quilômetros de Cuzco,
respectivamente. Com relação aos gigantescos blocos da muralha
externa, nada prova que não tenham sido desbastados a partir de uma
massa de pedras existente no local; isso solucionaria o mistério.
Gheerbrant
acredita que os incas nunca chegaram a movimentar as pedras até
Sacsayhuaman, mas, mesmo que as tenham cortado e preparado-as no
local, um ajuste tão preciso exigiria aquilo que os engenheiros
modernos chamam de esforço sobre-humano. Além disso, a gigantesca
cidade de Tiahuanaco, na Bolívia, também foi erguida com blocos de
pedra de 100 toneladas. As pedreiras ficavam longe dali, e o lugar é
definitivamente pré-incaico. Proponentes da teoria de que os incas
encontraram essas cidades nas montanhas e nelas se fixaram, diriam
que os construtores de Tiahuanaco, Sacsayhuaman e de outras
estruturas megalíticas da região de Cuzco eram o mesmo povo.
Citando
novamente Garcilaso de la Vega, que escreveu sobre essas estruturas
logo após a conquista:
[...]
como podemos explicar o fato de os índios peruanos serem capazes de
cortar, escavar, erguer, portar, içar e aplicar blocos de pedra tão
imensos, fazendo-o, como disse antes, sem o auxílio de uma só
máquina ou instrumento? Um enigma como esse não pode ser resolvido
facilmente sem a ajuda da magia, especialmente se nos lembrarmos da
grande familiaridade desses povos com os demônios.
Os
espanhóis desmantelaram Sacsayhuaman o máximo que puderam. Quando
Cuzco foi conquistada, Sacsayhuaman tinha três torres redondas no
alto da fortaleza, por trás de três muralhas megalíticas
concêntricas. Elas foram desmontadas pedra por pedra, que foram
usadas para construir novas estruturas para os espanhóis.
Uma
teoria interessante sobre as construções com pedras gigantescas e
perfeitamente encaixadas é que foram produzidas por meio de uma
técnica hoje perdida de amolecimento e moldagem da pedra. Hiram
Bingham, descobridor de Machu Picchu, escreveu em seu livro Across
South America sobre uma planta de que ouvira falar, cujos sumos
amoleciam a pedra a ponto de ela poder ser encaixada em cantarias
muito apertadas.
Em
seu livro Exploration Fawcett, o coronel Fawcett comentou que ouvira
falar de como as pedras eram encaixadas usando-se um líquido que as
amoleciam até adquirirem a consistência do barro. Brian Fawcett,
que editou o livro do pai, conta essa história em suas notas de
rodapé: um amigo que trabalhava em uma mineradora a 4.600 metros em
Cerro de Pasco, região central do Peru, descobriu um jarro em um
túmulo incaico ou pré-incaico. Ele abriu o recipiente pensando que
fosse chicha, uma bebida alcoólica, rompendo o antigo lacre de cera
ainda intacto. Depois, por acidente, o jarro foi derrubado sobre uma
pedra. Fawcett prossegue, mencionando o amigo:
Dez
minutos depois, curvei-me sobre a pedra e casualmente examinei a poça
de líquido derramado. Não era mais líquido; a pedra sobre a qual o
jarro caíra estava macia como cimento fresco! E como se a pedra
tivesse derretido, como cera aquecida.
Ao
que parece, Fawcett acreditava que a planta poderia ser encontrada no
rio Pirene, em Chuncho, Peru, e disse que tinha folhas vermelhas,
escuras, e mais ou menos 30 centímetros de altura. Conta-se, ainda,
a história de um biólogo que observava um pássaro raro na
Amazônia. Ele viu quando a ave fez um ninho em uma rocha
esfregando-a com um graveto. A seiva do graveto dissolveu a rocha,
criando uma cavidade na qual a ave pôde acomodar seu ninho.
Toda
essa especulação pode ser posta de lado por conta de descobertas
mais recentes apresentadas na Scientific American (fevereiro de
1986). Em um fascinante artigo, o pesquisador francês, Jean-Pierre
Protzen, apresenta suas experiências na duplicação da construção
de Sacsayhuaman e Ollantaytambo. Protzen passou muitos meses perto de
Cuzco fazendo experiências com diferentes métodos de modelagem e de
encaixe, valendo-se dos mesmos tipos de pedras empregados pelos incas
(ou por seus antecessores megalíticos). Descobriu que a extração e
a formatação das pedras podem ser feitas com os martelos de pedra
encontrados em abundância na região. O ajuste preciso das pedras
foi uma questão relativamente simples, diz ele. Ele martelava as
depressões côncavas nas quais as pedras se encaixavam por
tentativas, até ficarem bem justas. Isso significava erguer e juntar
as pedras continuamente, desbastando-as pouco a pouco. Esse processo
consome um bom tempo, mas é simples e funciona.
Contudo,
mesmo para Protzen restam alguns mistérios. Ele não conseguiu
descobrir como os construtores megalíticos manuseavam as pedras
maiores. O processo de ajuste exigiria repetidos movimentos de
levantamento e deposição da pedra sendo encaixada, com uma
sequência de marteladas entre um movimento e outro. Ele não sabe
como pedras de 100 toneladas eram manipuladas nesse estágio, e
algumas, na verdade, são até mais pesadas.
Segundo
Protzen, para transportar as pedras desde as pedreiras foram
construídas estradas e rampas especiais. Muitas das pedras foram
arrastadas sobre estradas cobertas de pedregulhos, o que, segundo sua
teoria, originou sua superfície polida. A maior pedra de
Ollantaytambo pesa 150 toneladas. Ela pode ter sido puxada sobre uma
rampa com uma força de 118 mil quilos. Tal proeza exigiria 2.400
homens, no mínimo. Reunir essa equipe parece possível, mas onde se
apoiavam? Protzen diz que as rampas teriam, no máximo, 8 metros de
largura. Mais espantoso ainda, para Protzen, é que as pedras de
Sacsayhuaman tinham um acabamento fino, mas não foram polidas e não
mostram sinais de arraste. Ele não conseguiu descobrir como foram
transportadas desde a pedreira de Rumiqolqa, situada a 35 quilômetros
dali.
O
artigo de Protzen reflete uma pesquisa bem-feita, e mostra que a
ciência moderna ainda não consegue explicar ou reproduzir as
proezas de construção encontradas em Sacsayhuaman e Ollantaytambo.
Erguer continuamente e desbastar um bloco de pedra de 100 toneladas
para fazer com que se encaixe perfeitamente é uma tarefa de
engenharia grandiosa demais para ter sido uma prática. A teoria de
Protzen teria funcionado bem nas construções posteriores, menores e
perfeitamente retilíneas, mas falha nas construções megalíticas
mais antigas. Talvez teorias como levitação ou amolecimento de
pedras ainda não devam ser descartadas! Uma última observação
intrigante feita por Protzen é que as marcas de corte encontradas em
algumas pedras são muito similares àquelas encontradas no
pyramidion de um obelisco egípcio inacabado, descoberto em Assuã.
Seria coincidência? Ou uma civilização antiga estaria associada
aos dois locais?
David
Hatcher Childress, in A Incrível Tecnologia dos Antigos
segunda-feira, 30 de março de 2020
Leituras secretas
No
Céu, os Anjos do Senhor leem poemas às escondidas... Os livros de
poemas são os livros pornográficos dos anjos.
Mário
Quintana, in Sapato florido
A tranquilidade requer poucas coisas
“Ocupa-te
de poucas coisas”, dizem “se queres estar tranquilo”. Mas
pondera se não seria melhor dizer: “Faze o necessário e tudo que
a razão de um ser naturalmente sociável prescrever e como ela
prescrever”? Pois isso traz não somente a tranquilidade que advém
de fazer o bem, mas também a que advém de fazer poucas coisas.
Sendo desnecessárias a maioria das coisas que dizemos e fazemos, se
adotarmos esse procedimento teremos mais lazer e tranquilidade. Nessa
ordem de ideias em qualquer ocasião devemos perguntar a nós mesmos:
“Não seria essa uma das coisas desnecessárias?” Devemos abolir
não somente os atos desnecessários mas também os pensamentos, pois
assim os atos neles implícitos não advirão.
Marco
Aurélio, in Meditações
A servidão
Os
dias estavam repletos de novas experiências para Caninos Brancos.
Enquanto Kiche continuava atada pela vara, ele corria por todo o
acampamento, inquirindo, investigando, aprendendo. Rapidamente ficou
sabendo muito sobre os hábitos dos animais-homens, mas a
familiaridade não gerou desprezo. Quanto mais aprendia sobre eles,
mais eles demonstravam a sua superioridade, mais revelavam seus
poderes misteriosos, mais gigantesca avultava a sua semelhança com
deuses.
Ao
homem foi concedida a dor frequente de ver os seus deuses derrubados
e os seus altares desmoronados; mas ao lobo e ao cão selvagem que
vieram se deitar aos pés dos homens, essa dor nunca chegou. Ao
contrário do homem, cujos deuses são feitos de vapores e névoas
invisíveis e conjeturados da fantasia que evita a veste da
realidade, espectros errantes de bondade e poder almejados,
afloramentos intangíveis do ser no reino do espírito – ao
contrário do homem, o lobo e o cão selvagem que se aproximaram do
fogo encontram os seus deuses em carne e osso, sólidos ao tato,
ocupando o espaço da terra e exigindo tempo para realizar os seus
fins e a sua existência. Não é necessário nenhum esforço de fé
para acreditar num deus desse tipo; nenhum esforço de vontade
consegue induzir a descrença num desses deuses. Não há como
afastar-se de tal deus. Ele ali está, sobre as duas patas traseiras,
um macete na mão, imensamente potente, apaixonado, irado e amante,
deus e mistério e poder, tudo envolto pela carne que sangra quando
rasgada, e que é boa de comer como qualquer outra carne.
E
o mesmo acontecia com Caninos Brancos. Os animais-homens eram deuses
inequívocos e inescapáveis. Assim como a mãe Kiche lhes
demonstrara lealdade ao primeiro grito de seu nome, ele estava
começando a demonstrar a sua lealdade. Ele lhes dava a dianteira
como um privilégio indubitavelmente seu. Quando caminhavam, saía do
caminho. Quando chamavam, acudia. Quando ameaçavam, encolhia-se.
Quando o mandavam embora, afastava-se depressa. Pois atrás de
qualquer desejo dos animais-homens estava o poder de impor esse
desejo, um poder que machucava, um poder que se expressava em
bofetadas e macetes, em pedras voadoras e chicotadas que ferroavam.
Ele
lhes pertencia como todos os cachorros lhes pertenciam. As suas ações
estavam à mercê do comando dos deuses. O seu corpo, à mercê de
suas pancadas, pisoteios, indulgência. Essa era a lição que lhe
foi rapidamente incutida. Uma lição dura, que na realidade ia
contra muita coisa que era forte e dominante na sua natureza; e,
apesar de não gostar dela enquanto a aprendia, sem o saber ele
estava aprendendo a apreciá-la. Era colocar o seu destino nas mãos
de outro, uma troca das responsabilidades da existência. Isso era em
si mesmo uma compensação, pois é sempre mais fácil encostar-se
num outro que manter-se sozinho.
Mas
tudo não aconteceu num único dia, esta entrega de si mesmo, corpo e
alma, aos animais-homens. Ele não podia renunciar imediatamente à
sua herança selvagem e às suas lembranças da Floresta. Havia dias
em que andava furtivamente até a orla da floresta, ali ficava e
escutava algo que o chamava de muito longe. E sempre retornava,
inquieto e incomodado, para choramingar suave e melancolicamente ao
lado de Kiche, e para lamber a face da mãe com uma língua ansiosa e
inquiridora.
Caninos
Brancos aprendia rapidamente os hábitos do acampamento. Conheceu a
injustiça e ganância dos cachorros mais velhos, quando lhes eram
jogados carne ou peixe na hora da ração. Veio a saber que os homens
eram mais justos, as crianças mais cruéis, e as mulheres mais
bondosas e mais inclinadas a lhe atirar um pedaço de carne ou osso.
E depois de duas ou três aventuras dolorosas com as mães de outros
filhotes parcialmente crescidos, ele aprendeu que era sempre uma boa
política deixar essas mães em paz, manter-se o mais afastado
possível de todas, e evitá-las quando as via se aproximar.
Mas
a maldição da sua vida era Lip-lip. Maior, mais velho e mais forte,
Lip-lip tinha escolhido Caninos Brancos para seu objeto especial de
perseguição. Caninos Brancos lutava com bastante vontade, mas era
sobrepujado. O seu inimigo era demasiado grande. Lip-lip tornou-se um
pesadelo. Sempre que Caninos Brancos se aventurava a sair de perto da
mãe, era certo que o valentão aparecia, correndo no seu encalço,
rosnando, atormentando-o, atento a qualquer oportunidade, quando
nenhum animal-homem estava por perto, para pular em cima do lobinho e
forçar uma briga. Como invariavelmente vencia, Lip-lip gostava
imensamente dessas brigas. Tornaram-se o seu principal prazer na
vida, assim como se tornaram o principal tormento de Caninos Brancos.
Mas
isso não teve o efeito de acovardar Caninos Brancos. Embora sofresse
a maior parte dos danos e fosse sempre derrotado, o seu espírito
continuava indomável. Entretanto, as lutas produziram um efeito
ruim. Caninos Brancos tornou-se malévolo e soturno. Seu temperamento
era selvagem de nascença, mas tornou-se ainda mais com essa
perseguição interminável. Seu lado alegre e brincalhão de filhote
encontrava pouca expressão. Nunca brincava, nem dava cabriolas com
os outros filhotes do acampamento. Lip-lip não permitia. Assim que o
filhote de lobo aparecia perto deles, Lip-lip saltava sobre Caninos
Brancos, maltratando-o e humilhando-o, ou lutando até afastá-lo.
O
efeito de tudo isso foi privar Caninos Brancos de grande parte da sua
vida de filhote e dotá-lo de um comportamento mais maduro que o da
sua idade. Negada a expressão de suas energias por meio das
brincadeiras, ele se encolhia dentro de si e desenvolvia os seus
processos mentais. Tornou-se astucioso; tinha tempo ocioso para se
dedicar às trapaças. Impedido de obter a sua porção de carne e
peixe quando a ração geral era dada aos cachorros do acampamento,
tornou-se um ladrão inteligente. Tinha de saquear por si mesmo, e
ele saqueava bem, embora por isso fosse muitas vezes uma praga para
as índias. Aprendeu a mover-se sorrateiramente pelo acampamento, a
ser astuto, a saber o que estava acontecendo em toda parte, a ver e
ouvir tudo e raciocinar de acordo com essas informações, e a
inventar com sucesso meios e maneiras de evitar o seu implacável
perseguidor.
Foi
nos primeiros dias da perseguição que ele armou seu primeiro grande
lance realmente astuto naquele jogo e teve o primeiro gosto de
vingança. Assim como Kiche, na companhia dos lobos, tinha atraído
os cachorros para a destruição afastando-os dos acampamentos dos
homens, Caninos Brancos, de maneira bastante semelhante, atraiu
Lip-lip para as mandíbulas vingativas de Kiche. Recuando diante de
Lip-lip, Caninos Brancos começou uma fuga indireta, entrando numa
tenda, saindo de outra e contornando as várias tendas do
acampamento. Era um bom corredor, mais rápido do que qualquer outro
filhote do seu tamanho, e mais rápido do que Lip-lip. Mas ele não
chegava ao máximo da sua velocidade nessa perseguição. Mantinha um
ritmo constante, um pulo à frente de seu perseguidor.
Lip-lip,
excitado pela perseguição e pela proximidade constante de sua
vítima, esqueceu a cautela e o local. Quando se lembrou do local,
era tarde demais. Arremessando-se a toda velocidade ao redor de uma
tenda, investiu contra Kiche, deitada na ponta da sua vara. Deu um
ganido de consternação, enquanto as mandíbulas punitivas dela se
fechavam sobre ele. Ela estava amarrada, mas ele não conseguiu
livrar-se facilmente. Ela o virou de patas para o ar, impedindo-o de
correr, enquanto o rasgava e mordia com as presas.
Quando
conseguiu por fim rolar e livrar-se da loba, Lip-lip aprumou-se com
dificuldade, todo desgrenhado, ferido tanto no corpo como no
espírito. O pelo era todo tufos salientes nos lugares que os dentes
de Kiche tinham estropiado. O brigão ficou parado no lugar em que
tinha se levantado, abriu a boca e irrompeu num longo e angustiado
gemido de filhote. Mas até isso não lhe foi permitido completar. No
meio do gemido, Caninos Brancos, vindo na corrida, afundou os dentes
na pata traseira de Lip-lip. Não havia mais nenhum instinto de luta
em Lip-lip, e ele fugiu desavergonhadamente, com a vítima no seu
encalço, atormentando-o durante todo o caminho até a tenda. Ali as
índias o socorreram, e Caninos Brancos, transformado num demônio
enfurecido, só foi finalmente afastado por uma fuzilada de pedras.
Veio
o dia em que Castor Cinza, determinando que já não havia mais
perigo de fuga, libertou Kiche. Caninos Brancos ficou maravilhado com
a liberdade da mãe. Ele a acompanhava alegremente pelo acampamento
e, enquanto permanecia perto da mãe, Lip-lip mantinha uma distância
respeitosa. Caninos Brancos chegava a eriçar o pelo e caminhar de
pernas enrijecidas, mas Lip-lip ignorava o desafio. Ele não era
tolo, e qualquer que fosse a vingança que desejava, podia esperar
até pegar Caninos Brancos sozinho.
Mais
tarde naquele dia, Kiche e Caninos Brancos afastaram-se até a
entrada do mato perto do acampamento. Ele conduzira a mãe até
aquele ponto, passo a passo, e então, cada vez que parava, tentava
atraí-la para mais longe. A corrente, a toca e a quietude dos matos
o chamavam, e ele queria que ela viesse. Correu alguns passos
adiante, parou e olhou para trás. Ela não se movera. Ele
choramingou suplicante e correu brincalhão para dentro e para fora
do matagal. Voltou correndo para a mãe, lambeu a sua face e tornou a
correr para diante. Mesmo assim, ela não se movia. Ele parou e
considerou-a, todo envolto numa atenção e ansiedade fisicamente
manifestas que lentamente desapareceram, quando ela virou a cabeça e
fitou o acampamento.
Algo
o chamava na floresta. A mãe também escutava esse apelo. Mas ela
escutava igualmente aquele outro chamado mais forte, o chamado do
fogo e do homem – o chamado que, dentre todos os animais, foi dado
apenas ao lobo responder, ao lobo e ao cachorro selvagem, que são
irmãos.
Kiche
virou-se e caminhou lentamente de volta para o acampamento. Mais
forte do que a restrição física da vara era o poder que o
acampamento exercia sobre ela. Invisíveis e ocultos, os deuses ainda
a prendiam com o seu poder e não a deixavam partir. Caninos Brancos
sentou-se à sombra de uma bétula e choramingou suavemente. Havia um
forte cheiro de pinho, e as fragrâncias sutis da mata enchiam o ar,
lembrando-lhe a antiga vida de liberdade antes dos dias de cativeiro.
Mas ele ainda era um filhote parcialmente crescido, e mais forte do
que o chamado do homem ou da Floresta era o chamado da mãe. Em todas
as horas da sua curta vida, ele dependera da mãe. Ainda não chegara
o tempo da independência. Assim ele se levantou e voltou infeliz
para o acampamento, parando uma ou duas vezes para sentar,
choramingar e escutar o chamado que ainda soava nas profundezas da
floresta.
Na
Floresta, o tempo da mãe com seu filhote é curto, mas, sob o
domínio do homem, às vezes é até mais curto. Foi o que aconteceu
a Caninos Brancos. Castor Cinza estava em dívida com Três Águias.
Três Águias estava de partida, ia subir o Mackenzie até o Lago do
Grande Escravo. Uma tira de tecido escarlate, uma pele de urso, vinte
cartuchos e Kiche saldaram a dívida. Caninos Brancos viu a mãe ser
levada a bordo da canoa de Três Águias, e tentou segui-la. Um golpe
de Três Águias o atirou de volta para a terra. A canoa partiu. Ele
pulou na água e nadou na direção da canoa, surdo aos gritos agudos
de Castor Cinza para que retornasse. Até um animal-homem, um deus,
Caninos Brancos ignorou, tal era o seu terror de perder a mãe.
Mas
os deuses estão acostumados a serem obedecidos, e Castor Cinza
lançou irado uma canoa na sua perseguição. Quando alcançou
Caninos Brancos, estendeu o braço e, agarrando-o pela nuca, puxou-o
para fora da água. Não o depositou logo no fundo da canoa.
Segurando-o suspenso com uma das mãos, com a outra começou a bater
no lobinho. E foi uma surra e tanto. A sua mão era pesada. Toda
pancada era para machucar, e ele desferiu uma série de golpes.
Impelido
pelos golpes que choviam sobre ele, ora de um lado, ora de outro,
Caninos Brancos balançava de um lado para o outro como um pêndulo
errático e espasmódico. Variáveis eram as emoções que se
elevavam dentro dele. Primeiro, ficara surpreso. Depois surgiu um
medo momentâneo, quando ganiu várias vezes com o impacto da mão.
Mas isso foi logo seguido pela raiva. A sua natureza livre
afirmou-se, e ele mostrou os dentes e rosnou destemidamente diante do
deus irado. Isso só serviu para tornar o deus ainda mais irado. Os
golpes caíam mais rápidos, mais pesados, mais para machucar.
Castor
Cinza continuou a bater, Caninos Brancos continuou a rosnar. Mas isso
não podia durar para sempre. Um ou outro devia ceder, e esse alguém
foi Caninos Brancos. O medo cresceu mais uma vez dentro dele. Pela
primeira vez estava realmente sendo dominado pela mão do homem. Os
golpes ocasionais de paus e pedras antes experimentados eram carícias
em comparação a isso. Ele sucumbiu e começou a gritar e ganir. Por
algum tempo, cada golpe lhe arrancava novo ganido, mas o medo
transformou-se em terror, até que finalmente os ganidos eram
emitidos numa sucessão ininterrupta, sem conexão com o ritmo do
castigo.
Por
fim, Castor Cinza deteve a mão. Caninos Brancos, molemente
dependurado, continuava a gritar. Isso pareceu satisfazer o dono, que
o atirou rudemente para o fundo da canoa. Nesse meio tempo, a canoa
descera a corrente à deriva. Castor Cinza pegou o remo. Caninos
Brancos estava no seu caminho. O índio o empurrou selvagemente com o
pé. Nesse momento, a natureza livre de Caninos Brancos teve novo
lampejo, e ele afundou os dentes no pé coberto pelo mocassim.
A
surra que acontecera antes não foi nada comparada com a surra que
então recebeu. A ira de Castor Cinza era terrível, e igualmente
terrível o pânico de Caninos Brancos. Não só a mão, mas também
o remo duro de madeira foi usado sobre o lobinho; e todo o seu
pequeno corpo estava ferido e machucado, quando foi novamente atirado
para o fundo da canoa. De novo, e desta vez de propósito, Castor
Cinza o chutou. Caninos Brancos não repetiu o ataque ao pé. Tinha
aprendido outra lição do cativeiro. Nunca, não importa qual fosse
a circunstância, devia ousar morder o deus que era seu senhor e
dono; o corpo do senhor e dono era sagrado, não devia ser profanado
pelos dentes de alguém como ele. Isso era evidentemente o crime dos
crimes, a única ofensa para a qual não havia perdão, nem
tolerância.
Quando
a canoa tocou na margem, Caninos Brancos continuou deitado, imóvel e
choramingando, à espera da vontade de Castor Cinza. Era vontade de
Castor Cinza que ele fosse para a terra, pois foi atirado para a
margem, caindo pesadamente sobre o lado e machucando de novo as
feridas. Levantou-se tremendo e continuou a choramingar. Lip-lip, que
observara todo o procedimento da margem, precipitou-se sobre ele,
derrubando-o e afundando os dentes na sua carne. Caninos Brancos
estava fraco demais para se defender, e as coisas teriam se tornado
feias para ele, se o pé de Castor Cinza não tivesse disparado,
levantando Lip-lip no ar com a sua violência, de modo que ele se
esborrachou no chão a uns quatro metros de distância. Essa era a
justiça do animal-homem; e mesmo então, no seu estado lamentável,
Caninos Brancos sentiu uma pequena ponta de gratidão. No encalço de
Castor Cinza, mancou obedientemente pela vila até a tenda. E assim
Caninos Brancos veio a aprender que o direito de castigar era algo
que os deuses reservavam para si e negavam às criaturas inferiores.
Naquela
noite, quando tudo estava quieto, Caninos Brancos lembrou-se da mãe
e chorou com a sua ausência. O seu lamento foi demasiado barulhento
e acordou Castor Cinza, que bateu no filhote. Depois disso, ele
passou a lamentar-se suavemente, quando os deuses estavam por perto.
Mas às vezes, errando sozinho até a beirada da mata, ele dava vazão
à sua dor e abria o berro com longos choros e gemidos.
Foi
durante esse período que ele poderia ter escutado as lembranças da
toca e da corrente, voltando a correr para a Floresta. Mas a
lembrança da mãe o prendia. Assim como os animais-homens caçadores
partiam e voltavam, ela voltaria para a vila um dia. Por isso, ele
continuou no seu cativeiro esperando a mãe.
Mas
não foi um cativeiro inteiramente infeliz. Havia muito a
interessá-lo. Algo estava sempre acontecendo. Não havia fim para as
coisas estranhas que os deuses faziam, e ele estava sempre curioso
para ver. Além disso, estava aprendendo a se dar com Castor Cinza.
Obediência, uma obediência rígida e constante, era o que dele se
esperava; em troca, escapava das surras e a sua existência era
tolerada.
O
próprio Castor Cinza às vezes até lhe atirava um pedaço de carne
e o defendia dos outros cachorros que também queriam o festim. E
esse pedaço de carne tinha valor. De um modo estranho, era mais
valioso que uma dúzia de pedaços de carne atirados pela mão de uma
índia. Castor Cinza nunca mimava, nem acariciava. Talvez tenha sido
o peso da sua mão, talvez a sua justiça, talvez a sua força pura,
talvez tenha sido tudo isso que influenciou Caninos Brancos; pois uma
certa ligação estava se formando entre ele e seu rude senhor.
Insidiosamente,
e de modos remotos, bem como pelo poder da maça, da pedra e da
bofetada, os grilhões estavam sendo assentados sobre Caninos
Brancos. As qualidades da sua espécie, que no início tornaram
possível que os lobos se aproximassem das fogueiras dos homens, eram
qualidades capazes de serem desenvolvidas. Estavam se expandindo
dentro do seu ser, e a vida no acampamento, ainda que repleta de
desgraças, começava a se tornar secretamente cara para ele. Mas
Caninos Brancos disso não tinha consciência. Sabia apenas da dor
pela perda de Kiche, da esperança de seu retorno, e de um desejo
faminto pela vida livre que fora sua.
Jack
London, in Caninos Brancos
domingo, 29 de março de 2020
San Martín de los Andes
Uma
choça abandonada nos indicou a fronteira. Eu já estava livre.
Escrevi na parede da cabana: “Até breve, minha pátria. Vou-me
embora mas levo-te comigo.”
Em
San Martín de los Andes devia nos aguardar um amigo chileno. Essa
cidadezinha da cordilheira argentina é tão pequena que me tinham
dito como indicação única:
– Vai
para o melhor hotel que ali Pedrito Ramírez irá te buscar.
Mas
assim são as coisas. Em San Martín de los Andes não havia um
melhor hotel: havia dois. Qual deles escolher? Decidimo-nos pelo mais
caro, situado num bairro mais afastado, preterindo o primeiro que
tínhamos visto defronte da bela praça da cidade.
Aconteceu
que o hotel que escolhemos era tão de primeira classe que não
quiseram nos aceitar. Observaram com hostilidade os efeitos de vários
dias de viagem a cavalo, nossos casacos ao ombro, nossas caras com
barba por fazer e poeirentas. A qualquer um dava medo de nos receber.
Ainda
mais o gerente de um hotel que hospedava nobres ingleses procedentes
da Escócia e que tinham vindo para pescar salmão na Argentina. Nós
não tínhamos nada de lords. O gerente deu-nos o vade retro,
alegando com ademanes e gestos teatrais que o último quarto
disponível tinha sido reservado há dez minutos. Nisso assomou à
porta um elegante cavalheiro de inconfundível tipo militar,
acompanhado por uma loura cinematográfica, que gritou com voz
trovejante:
– Alto!
Não se manda os chilenos embora de nenhuma parte. Eles ficam aqui!
E
ficamos. Nosso protetor parecia-se tanto com Perón e sua dama com
Evita que pensamos todos: São eles! Mas depois, já de banho tomado
e vestidos com roupa limpa, sentados à mesa e degustando uma garrafa
de champanha duvidosa, soubemos que o homem era comandante da
guarnição local e ela uma atriz de Buenos Aires que vinha
visitá-lo.
Passamos
por madeireiros chilenos dispostos a fazer bons negócios. O
comandante me chamava “o Homem Montanha”. Víctor Bianchi, que
até ali me acompanhava por amizade e por amor à aventura, descobriu
uma guitarra e com suas pícaras canções chilenas encantava a
argentinos e argentinas. Porém passaram-se três dias com suas
noites e Pedrito Ramírez não chegava para me buscar. Fiquei
apreensivo. Já não nos restava camisa limpa nem dinheiro para
comprar novas. Um bom negociante de madeira, dizia Víctor Bianchi,
pelo menos deve ter camisas.
Enquanto
isso, o comandante nos ofereceu um almoço em seu regimento. Sua
amizade conosco fez-se mais estreita e confessou-nos que, apesar de
sua semelhança física com Perón, era antiperonista. Passávamos
longas horas discutindo quem teria pior presIdente, se o Chile ou a
Argentina.
Certa
manhã Pedrito Ramírez entrou de improviso em meu quarto.
– Desgraçado!
– gritei. – Por que demoraste tanto?
Tinha
sucedido o inevitável. Ele esperava tranquilamente minha chegada no
outro hotel, no da praça.
Dez
minutos depois estávamos rodando pelo pampa infinito. E continuamos
rodando dia e noite. De vez em quando os argentinos detinham o
automóvel para preparar um mate e depois continuávamos atravessando
aquela monotonia interminável.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
Poema da cabra
O
osso do chão
se
espinhou pelos céus,
rasgando
a nuvem.
Nem
assim irá chover.
E
ainda bem:
a
paisagem é tão magra
que
uma única gota
causaria
total inundação.
Neste
deserto,
de
que tudo desertou,
apenas
a cabra silhuesce.
Em
planetária ruminação
toma
por folha
toda
a esquelética planura.
Não
lhe dói
a
indigestão do vazio:
a
pedra é menos dura que a fome.
A
poesia da cabra
apenas
na insaciável pança se concebe.
E
a cabra se parece
com
gente de voraz ganância.
Dos
caprinos aprenderam:
em
qualquer nada,
inventam
os mais vastos pastos.
Mia
Couto
O estranho casal
Histórias
servem como fundamentos e pilares das sociedades humanas. Com o
desenrolar da história, histórias sobre deuses, nações e
corporações cresceram tão poderosamente que começaram a dominar a
realidade objetiva. A crença no grande deus Sobek, no Mandato do Céu
ou na Bíblia possibilitou a construção do lago Fayum, da Grande
Muralha da China e da catedral de Chartres. Infelizmente, a fé cega
nas histórias não raro acarretou a concentração dos esforços
humanos em incrementar a glória de entidades ficcionais como deuses
e nações, em vez de melhorar a vida de seres reais e sencientes.
Essa
análise ainda se sustenta hoje? À primeira vista, pode parecer que
a sociedade moderna é muito diferente dos reinos do Egito antigo ou
da China medieval. O surgimento e a ascensão da ciência moderna não
teriam mudado as regras básicas do jogo humano? Não seria
verdadeiro dizer que, apesar da continuada importância de mitos
tradicionais, os sistemas sociais modernos cada vez mais se baseiam
em teorias científicas objetivas, como a teoria da evolução, que
não existia no Egito antigo ou na China medieval?
Podemos
argumentar que as teorias científicas são um novo tipo de mito e
que nossa crença na ciência não é diferente da antiga crença
egípcia no grande deus Sobek. Mas a comparação não se sustenta.
Sobek existia apenas na imaginação coletiva de seus devotos. Com
efeito, rezar a Sobek ajudou a cimentar o sistema social egípcio,
permitindo a construção, pelo povo, de represas e canais que
impediram inundações e secas. Mas as orações por si mesmas não
elevaram nem baixaram minimamente o nível das águas do rio Nilo. Em
contrapartida, teorias científicas não consistem apenas em um modo
de unir pessoas. Diz-se que Deus ajuda a quem se ajuda. É um modo
indireto de dizer que Deus não existe, mas, se nossa crença n’Ele
nos inspirar a fazer algo a nós mesmos — isso ajuda. Antibióticos,
diferentemente de Deus, ajudam até mesmo os que não se ajudam. Eles
curam infecções, quer acreditemos neles ou não.
Consequentemente,
o mundo moderno é muito diferente do mundo pré-moderno. Faraós
egípcios e imperadores chineses fracassaram em derrotar a fome, a
peste e a guerra, a despeito de milênios de esforço. Sociedades
modernas conseguiram fazê-lo em poucos séculos. Não seria isso o
fruto do abandono de mitos subjetivos em favor de conhecimento
científico objetivo? E não podemos esperar que esse processo se
acelere nas próximas décadas? À medida que a tecnologia nos
capacita a fazer a atualização de humanos, vencer a velhice e
encontrar a chave da felicidade, não deveriam as pessoas importar-se
menos com deuses, nações e corporações ficcionais e se concentrar
em decifrar a realidade física e biológica?
Na
verdade, as coisas são muito mais complicadas. A ciência moderna
certamente mudou as regras do jogo, embora não tenha apenas
substituído os mitos pelos fatos. Os mitos continuam a dominar o
gênero humano. A ciência só os torna mais fortes. Em vez de
destruir a realidade intersubjetiva, a ciência permitirá que ela
controle as realidades objetivas e subjetivas de modo mais completo.
Graças aos computadores e à bioengenharia, a diferença entre
ficção e realidade se tornará indistinta, à medida que pessoas
reformatam a realidade para que se encaixem em suas ficções
prediletas.
Os
sacerdotes de Sobek imaginaram a existência de crocodilos divinos
enquanto o faraó sonhava com a imortalidade. Na realidade, o
crocodilo sagrado era um réptil de pântano muito ordinário vestido
em refinamentos dourados, e o faraó era tão mortal quanto o mais
pobre camponês. Após a morte, seu corpo era mumificado com bálsamos
de preservação e perfumes olorosos, mas, ainda assim, continuava
tão sem vida quanto um morto pode ser. Os cientistas do século XXI,
por sua vez, poderiam ser capazes de engendrar supercrocodilos reais
e prover a elite humana de juventude eterna aqui na Terra.
Em
decorrência, o surgimento e a ascensão da ciência tornarão alguns
mitos e religiões mais poderosos do que nunca. Para entender por
quê, e para enfrentar os desafios do século XXI, deveríamos,
portanto, revisitar uma das questões mais perturbadoras entre todas:
como é que a ciência moderna se relaciona com a religião? A
impressão que se tem é de que já se disse tudo a ser dito sobre
essa questão. Mas, na prática, ciência e religião são como
marido e mulher que, após quinhentos anos de aconselhamento
matrimonial, não se conhecem. Ele ainda sonha com a Cinderela e ela
ainda anseia pelo príncipe encantado, enquanto discutem de quem é a
vez de levar o lixo para fora.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã
Plano para um poema
Que
sea Roma la que faustina, que o vento faça ponta nos lápis de
chumbo do escriba sentado, ou atrás de trepadeiras centenárias
apareça escrita uma manhã esta frase convincente: Não há
trepadeiras centenárias, a botânica é uma ciência, para o inferno
os inventores de imagens presumidas. E Marat em sua banheira. Também
vejo a perseguição de um grilo por uma bandeja de prata, com a
senhora Délia que aproxima suavemente uma mão semelhante a um
substantivo e quando vai apanhá-lo o grilo está dentro do sal
(então cruzaram a pé enxuto, e Faraó os amaldiçoava na margem) ou
pula com o delicado mecanismo que da flor do trigo extrai a mão seca
da torrada. Senhora Délia, senhora Délia, deixe esse grilo andar
por pratos rasos.
Um
dia ele cantará com tão terrível vingança que seus relógios de
pêndulo se enforcarão em seus caixões de pé, ou a donzela dará à
luz parda roupa branca um monograma vivo, que correrá pela casa
repetindo suas iniciais como um tamborileiro. Senhora Délia, os
convidados se impacientam porque faz frio. E Marat em sua banheira.
Por
fim que seja Buenos Aires num dia avançado e refilado, com trapos ao
sol e todos os rádios do quarteirão vociferando ao mesmo tempo a
cotação do mercado livre de girassóis. Por um girassol
sobrenatural pagou-se em Liniers oitenta e oito pesos, e o girassol
fez declarações infamantes ao Repórter Esso, um pouco por cansaço
depois da recontagem de seus grãos; em parte porque seu destino
ulterior não figurava no talão de vendas. A tardinha haverá uma
concentração de forças vivas na Plaza de Mayo. As forças irão
por diferentes ruas até se equilibrarem na pirâmide, e se perceberá
que elas vivem graças a um sistema de reflexos instalado pela
prefeitura. Ninguém duvida que os atos se realizarão com o máximo
brilhantismo, o que provocou como é de supor uma extraordinária
expectativa. Venderam-se tribunas especiais, irão o senhor cardeal,
as pombas, os presos políticos, os motorneiros, os relojoeiros, as
dádivas, as senhoras grávidas. E Marat em sua banheira.
Júlio
Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas
sábado, 28 de março de 2020
Como eram, na realidade, musas de grandes pintores
Adele Bloch-Bauer, modelo de Gustav Klimt
Adele
Bloch-Bauer nasceu em uma família burguesa respeitável, seu pai era
o gerente geral da União Bancária de Viena. Aos 18 anos, ela se
casou com um conhecedor de arte e produtor de açúcar chamado
Ferdinand Bloch-Bauer, que era significativamente mais velho do que
ela. Adele posou para quatro pinturas icônicas de Gustav Klimt. A
mais famosa delas foi o “Retrato de Adele Bloch-Bauer I” (imagem
à direita). Esse trabalho também é chamado de “Woman in Gold”
e “Mona Lisa da Áustria”.
Uma
história interessante também acompanha esse retrato: o marido de
Adele estava convencido de que havia um caso entre sua esposa e
Klimt. Para que o amor do artista por sua musa esfriasse mais rápido,
Bloch-Bauer encomendou um retrato de sua esposa, esperando que ao
estar perto de Klimt, ele rapidamente se cansasse dela. O artista
trabalhou em sua obra durante 4 anos, criando cerca de 100 esboços
para o retrato. E se ele tinha algum tipo de relacionamento com
Adele, ao longo desse tempo, acabou.
Jeanne Hébuterne, modelo de Amedeo Modigliani
Jeanne
Hébuterne estudou na Academia Colarossi, uma escola privada de arte.
Lá ela conheceu o artista italiano Amedeo Modigliani, que a escolheu
como modelo entre os alunos da Instituição. Logo, entre eles,
surgiu um romance. Jeanne foi morar com Modigliani e se tornou o tema
principal de sua pintura: o artista fez aproximadamente 25 de seus
retratos. O casal teve uma filha, que recebeu o nome de sua mãe:
Jeanne.
Modigliani,
que sofria de meningite tuberculosa, morreu com apenas 35 anos de
idade em Janeiro de 1920. Jeanne Hébuterne, que estava esperando por
seu segundo filho, enlouquecida pela dor, cometeu suicídio no dia
seguinte à morte do seu amado.
Vera Mamontova, modelo para vários artistas russos
A
modelo para a obra de Valentín Serov, “Menina com Pêssegos”,
chamava-se Vera Mamontova e era filha de um rico filantropo, Savva
Mamontov. Um dia, Vera voltou para casa depois de uma caminhada e
sentou-se à mesa, segurando em suas mãos um pêssego de seu próprio
jardim. Lá estavam seus pais e o artista Valentín Serov, visitando
a fazenda. Durante os próximos dois meses, essa menina de 12 anos
posou por muitas horas todos os dias para uma pintura que,
posteriormente, tornou-se famosa.
Suzanne Valadon, a modelo de Auguste Renoir, Henri de Toulouse-Lautrec e outros
A
filha de uma lavadeira solteira, a artista francesa Suzanne Valadon,
foi a primeira mulher a ser aceita na União Francesa de Artistas.
Ela foi modelo para muitos artistas famosos como Henri de
Toulouse-Lautrec, Edgar Degas e Pierre-Auguste Renoir, que a retratou
em duas pinturas de sua série sobre dança: “Dança em Bougival”
(foto à direita) e “Dança na cidade”.
A atriz Jeanne Samary, modelo de Renoir
Jeanne
Samary foi uma atriz francesa no teatro Comédie-Française. Antes de
se casar, ela morava perto do ateliê de Pierre-Auguste Renoir e
frequentemente o visitava para posar. Em 1877-1878, o artista pintou
4 retratos de Jeanne. Cada um deles foi significativamente diferente
dos outros em termos de cor, composição e tamanhos. Um dos mais
famosos é intitulado “Jeanne Samary em um vestido decotado”
(imagem da direita), que está na coleção do Museu Pushkin, em
Moscou.
Veja mais musas aqui.
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