domingo, 29 de março de 2020

Poema da cabra

O osso do chão
se espinhou pelos céus,
rasgando a nuvem.

Nem assim irá chover.
E ainda bem:
a paisagem é tão magra
que uma única gota
causaria total inundação.

Neste deserto,
de que tudo desertou,
apenas a cabra silhuesce.

Em planetária ruminação
toma por folha
toda a esquelética planura.

Não lhe dói
a indigestão do vazio:
a pedra é menos dura que a fome.

A poesia da cabra
apenas na insaciável pança se concebe.

E a cabra se parece
com gente de voraz ganância.

Dos caprinos aprenderam:
em qualquer nada,
inventam os mais vastos pastos.
Mia Couto

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