Naquele
tempo o Rio não era o Rio. Eu me lembro muito bem quando começou
essa moda de dizer: vou ao Rio, cheguei do Rio. Até então nós
todos dizíamos solenemente: Rio de Janeiro. E nos debruçávamos
sonhadoramente sobre os cartões-postais que as pessoas que iam ao
Rio de Janeiro mandavam: o bondinho do Pão de Açúcar (que era de
Assucar) e o Corcovado, ainda sem Cristo.
Mas
havia dois palácios de maravilha para a nossa imaginação; seus
nomes soavam belíssimos: a Galeria Cruzeiro e o Pavilhão Mourisco.
Não consigo refazer a ideia que eu tinha da Galeria Cruzeiro, creio
que era uma ideia que variava muito. Um grande recinto sem plateia
mas com muitas galerias, ou um palácio em forma de túnel com um
Cruzeiro do Sul aceso na fachada, algo de estranho e imenso, pois
toda gente encontrava toda gente na Galeria Cruzeiro. O Pavilhão
Mourisco, este para nós era feérico, cheio de minaretes; odaliscas,
bandeiras e punhais, talvez camelos, pelo menos grandes camelos
pintados entre oásis.
As
pessoas grandes que chegavam do Rio traziam malas fabulosas, cheias
de presentes para todos, além de dezenas de encomendas, todas
escritas cuidadosamente em uma lista com letra feminina. Nós nos
juntávamos todos para assistir à abertura das malas.
“Isto
é para você!” Era fascinante receber um embrulho de presente com
o nome da loja impresso na fita que o amarrava.
Mas
o que mais me impressionou foi uma sopa juliana. Eu nunca tinha
ouvido falar de sopa juliana, não era prato que se usasse em minha
casa. E não gostei da sopa: era de verduras e legumes. Mas o
espantoso é que vinha seca, em um envelope, e quando se punha n’água
crescia, tomava cores. As coisas do Rio de Janeiro eram assim, cheias
de milagres e de astúcias. E à noite, quando vinham visitas, os
viajantes contavam as últimas anedotas do Rio de Janeiro, pois
naquele tempo não havia rádio.
Lembro-me
que, apesar de sentir esse fascínio do Rio de Janeiro, eu não
pensava nunca em vir aqui. Isso simplesmente não me passava pela
cabeça; o Rio era um lugar maravilhoso, onde vinham pessoas grandes
e até eu pensava vagamente que no Rio de Janeiro só devia haver
pessoas grandes. Era verdade que havia, por exemplo, um menino, o
Zezé, filho de seu Osvaldo, que vinha ao Rio de Janeiro; ele usava
sapatos, quando nós todos usávamos botinas. Mas, mesmo pelo fato de
usar sapatos e vir ao Rio era como se ele fosse uma pessoa de outra
raça, não uma criança como nós. Eu não chegava sequer a
invejá-lo, tão diferente de nós eu o achava. Zezé tinha até um
sapato de duas cores, branco e vermelho; e nós com nossas botinas
pretas, sempre de bico esbranquiçado de tanto chutar pedra na rua,
sempre com os cadarços meio arrebentados, difíceis de enfiar.
Fiquei
muito espantado quando minha irmã, que vinha ao Rio com o marido, me
convidou para vir também. Ela disse que era um prêmio porque eu
tinha tirado boas notas nos exames. Lembro-me de que minhas notas
tinham sido apenas regulares, de maneira que achei aquele convite uma
honra, uma distinção que eu mesmo sabia que não merecia muito. Eu
tinha nove anos, e essa irmã era minha madrinha.
Ficamos
em uma casa de parente, na Rua Lopes Trovão, em Icaraí, ao lado do
Campo de S. Bento, que achei lindo. Lembro-me de passear na calçada
da praia com uma roupa de marinheiro, que tinha escrito no gorro:
“Encouraçado São Paulo.” E na proa da barca da Cantareira, ao
chegar ao Cais Pharoux, Antônio Paraíso, que me trazia pela mão,
dizer a um amigo: “Este cidadão vai pisar pela primeira vez o Rio
de Janeiro.”
Fomos
encontrar minha irmã e meu cunhado na hora do almoço, na Casa Heim.
Era a primeira vez que eu entrava em um restaurante e achei engraçado
o nome, que pensava que fosse “in”, então me corrigiram a
pronúncia, dizendo que em alemão era assim: “ráim”.
Mas
riram muito de mim em Cachoeiro quando perceberam que a coisa de que
eu mais havia gostado no Rio foi me deixarem ajudar a lavar a casa lá
em Icaraí, despejar baldes d’água no assoalho de tábuas largas;
porque eu falava mais disso que da Exposição do Centenário da
Independência.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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