terça-feira, 31 de março de 2020

Adelaide

A sociedade comercial Ramos & Costa, explorando o negócio de fazenda, miudeza, ferragem e perfumaria estabeleceu-se numa esquina do largo principal da cidade: prédio vistoso, com diversas portas, um letreiro vermelho e negro feito por Joaquim Correntão, que pintava índios empenachados e falava muito em chimpanzés e orango-tangos. Na loja havia dois caixeiros e um guarda-livros.
A família se instalou na Rua do Juazeiro, numa casa próxima à cadeia, e dissabores aí nos surgiram. Certamente meu pai se esforçava demais por agüentar-se e trepar. Começou a ter vertigens e síncopes, desacordava minutos compridos, e nós nos alarmávamos, órfãos, chorávamos olhando o corpo morto.
Levantava-se e revivia, continuava na faina de subir, nivelar-se aos parentes enraizados na lavoura. Alguns iam visitar-nos, duros, tesos. Findas essas cerimônias, meu pai caía num abatimento profundo. Ás vezes se deitava, enrolava-se nos cobertores, desalentava-se, em tremuras, anunciava aos gritos que ia morrer. Vinha o Dr. Mota Lima, dava-lhe um vomitório de substância, encorajava-o pregando lhe os óculos grossos de míope. O doente se envergonhava daquele barulho — e horas depois lisonjeava os proprietários, colaborava na política.
A terra era um lamaçal cheio de ladeiras. Em tempo de inverno a gente andava com dificuldade no calçamento de pedras soltas, entremeadas de barrocas.
Matricularam-me na escola pública da professora Maria do O, mulata fosca, robusta em demasia, uma das criaturas mais vigorosas que já vi. Esse vigor se manifestava em repelões, em berros, aos setenta ou oitenta alunos arrumados por todos os cantos.
Localizaram-me no corredor — e, pouco fiscalizado, quase despercebido, reabri desgostoso o terceiro livro do Barão de Macaúbas, tornei a encalhar nas regras de pontuação. As minhas deficiências ocultaram-se alguns dias: Dondom, mocinha pálida e misericordiosa, tomou-me as lições, protegeu-me, corrigiu-me a pronúncia, inutilmente, e fez por mim na ardósia as contas enigmáticas.
Mandavam-me rabiscar algumas linhas pela manhã. Logo no início desse terrível dever, o pior de todos, surgiu uma novidade que me levou a desconfiar da instrução de Alagoas: no interior de Pernambuco havia 1899 depois dos nomes da terra e do mês; escrevíamos agora 1900, e isto me embrulhou o espírito. Faltou-me a explicação necessária. Como a doce mestra sertaneja, clara, de belos caracóis imaculados, superava a outra, escura, agreste, de músculos rijos, nos olhos raivosos estrias amarelas, considerei a nova data um erro. Com certeza não foi esta reflexão que mo endureceu a munheca e povoou de borrões o traslado, mas pode ter tido influência: realmente não caprichei na fatura de sinais duvidosos.
Uma vez, notando-me o desânimo diante da folha machucada, Dondom tomou a pena, traçou vários caracteres em caligrafia direita, emagrecendo-os, maneira.
Conselho perdido: as garatujas de 1900 eram iguais às de 1899. E quando a professora foi julgar as escritas e viu o dolo, chamou-me, exigiu esclarecimento.
Desejei mentir, responsabilizar-me. Impossível. Olhei desesperado a minha cúmplice. D. Maria do O envolveu a mão nos cabelos da menina, deixando livres o indicador e o polegar, com que me agarrou uma orelha. E, tendo-nos seguros, agitou o braço violentamente: rodopiamos como dois bonecos e aluímos sobre os bancos.
Voltei ao anonimato e à sombra, contundido. Mas a benévola imprudência da moça e a raiva da enorme bruta falharam: permaneci obtuso, odiando as vírgulas e o catecismo, só abrindo os volumes sujos à hora da lição. Felizmente escapava entre dezenas de garotos rudes. Se não fosse a recordação de uns dedos que me apertavam a orelha, conseguiria achar paz e segurança. Na sala, vendo a mulata ou cafuza brandir a palmatória, precisaria comportar-me bem, simular atenção, molhar de saliva as páginas detestáveis. Ali, no encolhimento e na insignificância, os livros fechados, embrutecia-me em leves cochilos, quase só.
Desperto, bocejava, examinava o quintal estreito, que subia o morro do cemitério, argiloso e resvaladiço. Perto, na cozinha, três velhas, tias da professora, miúdas e cor de piche, torravam milho no caco, pisavam milho no pilão, enchiam de fubá caixinhas coloridas e franjadas. Os alunos astutos compravam aquilo, massa pegajosa, amarga, nauseabunda — e os ganhos da indústria caseira excediam talvez o vencimento que o Tesouro pingava. Constrangida no espartilho, branqueada a pó-de-arroz, D. Maria do O fingia humanizar-se lá fora: a voz amansava, a carne se reprimia, doméstica, os bugalhos amarelentos se ocultavam sob as pálpebras roxas — e a fera metia as garras nos cabelos das crianças, adulando.
Entre as vítimas desse diabo, a mais infeliz era minha prima Adelaide. Os pais não queriam separar-se dela. E, ricos, podendo confiá-la a estabelecimento que ensinasse línguas difíceis, tinham resolvido instruí-la sem perdê-la de vista.
Os colégios mais ou menos europeus ficavam longe. Iriam soltá-la por este mundo, sujeita a inconveniências? Não. A pequena conservaria, perto de casa, todas as virtudes: bordaria fronhas; ligar-se-ia no altar, sem namoro, a um rapaz de juízo e fortuna, bem apessoado. E diferençar-se-ia das mulheres que fumavam cachimbo de barro. Uma Adelaide letrada, não muito letrada, com as inovações e as letras necessárias. Uma Adelaide que se banhasse no riacho e falasse francês.
Ora, João Leite, dono do Cavalo-Escuro, não conhecia os degraus da ciência. Acreditara num diploma da escola normal, entregara a filha a D. Maria do O. E, em consequência, uma vez por semana, carros de bois e cargueiros derramavam na escola formas de açúcar, melado, sacos de grão, farinha. A princípio esse exagero fora recebido com alvoroço, mas habituaram-se a ele, esqueceram agradecimentos, enfim aboliram as gatimônias dispensadas ao portador risonho, o crioulo José Luís. Adelaide se rebaixara. Estava ali quase órfã — e a horrenda mulata inchava e se envaidecia, publicando por meios indiretos que fazia caridade a uma intrusa. Insensível ao pagamento largo, torturava-a.
Certamente não começara impondo-lhe maus tratos: afeita à liberdade, ao mando, às correrias, às injúrias a caboclos na bagaceira, Adelaide se rebelaria contra a nova autoridade, aparentemente igual às figuras que serviam na casa-grande. Indispensáveis meses e anos para dominar a criaturinha, degradá-la, enquanto o algoz se acomodava também à situação, experimentava as forças, apurava a maldade. No começo o jeito servil, o sorriso convencional; em seguida um olhar frio, gesto de enfado, palavra dura; a lisonja recomposta; novamente acrimônia e aspereza. Idas e vindas, intermitências. Um castigo — e logo o afã de obliterá-lo, explicá-lo como trabalho de educação. A covardia manhosa adoçava umas tréguas curtas. Não fosse a garota badalar, pedir aos pais que a retirassem daquele inferno. Não pedia. Talvez até ignorasse que estava nele. Tinham-na vencido, tinham-lhe gasto o fio em pedra de amolar. Afinal desapareceram as precauções. El a menina, triste, olhava a rua, os montes verdes. Silenciosa, descia, cada vez mais descia, esgueirava-se, tentava ocultar a magreza, na aula muito povoada. Tentativa inútil. D. Maria do O atravessava as pessoas com os olhos, achava num canto da sala o corpinho fugidio, imputava-lhe qualquer falta. Às vezes a casa não estava bem varrida. Marcas de poeira, visíveis entre os bancos, avultavam apontadas pelo grosso dedo severo, comentadas pela voz estridente. E a infeliz, vergando sob a cólera despropositada, ia buscar a vassoura, limpar o tijolo, havia-se reduzido à condição de criada. Na labuta doméstica, sofria a birra das três velhas miúdas e cor de piche. Essas fúrias boçais vinham de classe muito baixa, tinham decerto adquirido em senzalas o veneno que destilavam. Da subserviência, antiga, passavam às ordens brutais, vingavam-se numa possível descendente de senhores remotos. Adelaide curvava o espinhaço, calejava na obediência, esmorecia nos trabalhos mais humildes.
A estranha inversão de papéis me surpreendia e revoltava, mas a surpresa e a revolta nunca se manifestaram. Longe da escola, em arrancos de coragem, afrontei as megeras.
Ah! negras!
Ali no corredor, o livro esquecido nos joelhos, vendo o quintal, o morro, ouvindo as lições cantadas e a arrelia da mestra, anulava-me, colava-me à parede, pusilânime e esquivo. Não ousaria revelar afeto a minha prima, não me arriscaria sequer a observar o martírio dela. Nas horas de aflição, multiplicadas, baixava a cabeça, fingia não perceber os braços finos, o rosto murcho e pálido, a boca torcida, os grandes olhos assustados, sem lágrimas. Receava, mostrando qualquer sinal de interesse, magoar a pobre, humilhá-la ainda mais. Talvez isso fosse hipocrisia: o que eu receava intimamente era comprometer-me associando-me àquela fraqueza, receber cachações destinados a ela. Não me parecia que Adelaide pudesse reabilitar-se, recuperar a alma de proprietária, dominar os cambembes esvaídos no eito. O engenho perdera a grandeza, era uma sombra de engenho, e a sinhá-moça arrastaria anos de vexame, até o fim da vida.
Tinha-me chegado vagas notícias da escravidão, sem relho e sem tronco, aceitável, quase desejável. Maria Moleca e Vitória, livres, viviam sossegadas em casa de meu avô. Não me vinha a ideia de que se conservassem ali por hábito ou por não terem para onde ir. Estavam bem, sempre tinham estado bem. As tias da professora haviam sido mucamas de luxo, sem dúvida, antes da maluqueira de uma princesa odiosa. Ingratas. Não me ocorria que alguém manejara a enxada, suara no cultivo do algodão e da cana: as plantas nasciam espontaneamente. E não pensava no sacrifício necessário às três mulheres para levantar a sobrinha fusca, desbastá-la, vesti-la, escová-la, impingi-la na sociedade. Essa metamorfose era casual. E arrepiava-me.
Coitada de minha prima, tão boa, tão débil, suportando as enxaquecas das miseráveis. Lugar de negro era a cozinha. Por que haviam saído de lá, vindo para a sala, puxar as orelhas de Adelaide? Não me conformava. Que mal lhes tinha feito Adelaide? Por que procediam daquele modo? Por quê?
Graciliano Ramos, in Infância

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