A
sociedade comercial Ramos & Costa, explorando o negócio de
fazenda, miudeza, ferragem e perfumaria estabeleceu-se numa esquina
do largo principal da cidade: prédio vistoso, com diversas portas,
um letreiro vermelho e negro feito por Joaquim Correntão, que
pintava índios empenachados e falava muito em chimpanzés e
orango-tangos. Na loja havia dois caixeiros e um guarda-livros.
A
família se instalou na Rua do Juazeiro, numa casa próxima à
cadeia, e dissabores aí nos surgiram. Certamente meu pai se
esforçava demais por agüentar-se e trepar. Começou a ter vertigens
e síncopes, desacordava minutos compridos, e nós nos alarmávamos,
órfãos, chorávamos olhando o corpo morto.
Levantava-se
e revivia, continuava na faina de subir, nivelar-se aos parentes
enraizados na lavoura. Alguns iam visitar-nos, duros, tesos. Findas
essas cerimônias, meu pai caía num abatimento profundo. Ás vezes
se deitava, enrolava-se nos cobertores, desalentava-se, em tremuras,
anunciava aos gritos que ia morrer. Vinha o Dr. Mota Lima, dava-lhe
um vomitório de substância, encorajava-o pregando lhe os óculos
grossos de míope. O doente se envergonhava daquele barulho — e
horas depois lisonjeava os proprietários, colaborava na política.
A
terra era um lamaçal cheio de ladeiras. Em tempo de inverno a gente
andava com dificuldade no calçamento de pedras soltas, entremeadas
de barrocas.
Matricularam-me
na escola pública da professora Maria do O, mulata fosca, robusta em
demasia, uma das criaturas mais vigorosas que já vi. Esse vigor se
manifestava em repelões, em berros, aos setenta ou oitenta alunos
arrumados por todos os cantos.
Localizaram-me
no corredor — e, pouco fiscalizado, quase despercebido, reabri
desgostoso o terceiro livro do Barão de Macaúbas, tornei a encalhar
nas regras de pontuação. As minhas deficiências ocultaram-se
alguns dias: Dondom, mocinha pálida e misericordiosa, tomou-me as
lições, protegeu-me, corrigiu-me a pronúncia, inutilmente, e fez
por mim na ardósia as contas enigmáticas.
Mandavam-me
rabiscar algumas linhas pela manhã. Logo no início desse terrível
dever, o pior de todos, surgiu uma novidade que me levou a desconfiar
da instrução de Alagoas: no interior de Pernambuco havia 1899
depois dos nomes da terra e do mês; escrevíamos agora 1900, e isto
me embrulhou o espírito. Faltou-me a explicação necessária. Como
a doce mestra sertaneja, clara, de belos caracóis imaculados,
superava a outra, escura, agreste, de músculos rijos, nos olhos
raivosos estrias amarelas, considerei a nova data um erro. Com
certeza não foi esta reflexão que mo endureceu a munheca e povoou
de borrões o traslado, mas pode ter tido influência: realmente não
caprichei na fatura de sinais duvidosos.
Uma
vez, notando-me o desânimo diante da folha machucada, Dondom tomou a
pena, traçou vários caracteres em caligrafia direita,
emagrecendo-os, maneira.
Conselho
perdido: as garatujas de 1900 eram iguais às de 1899. E quando a
professora foi julgar as escritas e viu o dolo, chamou-me, exigiu
esclarecimento.
Desejei
mentir, responsabilizar-me. Impossível. Olhei desesperado a minha
cúmplice. D. Maria do O envolveu a mão nos cabelos da menina,
deixando livres o indicador e o polegar, com que me agarrou uma
orelha. E, tendo-nos seguros, agitou o braço violentamente:
rodopiamos como dois bonecos e aluímos sobre os bancos.
Voltei
ao anonimato e à sombra, contundido. Mas a benévola imprudência da
moça e a raiva da enorme bruta falharam: permaneci obtuso, odiando
as vírgulas e o catecismo, só abrindo os volumes sujos à hora da
lição. Felizmente escapava entre dezenas de garotos rudes. Se não
fosse a recordação de uns dedos que me apertavam a orelha,
conseguiria achar paz e segurança. Na sala, vendo a mulata ou cafuza
brandir a palmatória, precisaria comportar-me bem, simular atenção,
molhar de saliva as páginas detestáveis. Ali, no encolhimento e na
insignificância, os livros fechados, embrutecia-me em leves
cochilos, quase só.
Desperto,
bocejava, examinava o quintal estreito, que subia o morro do
cemitério, argiloso e resvaladiço. Perto, na cozinha, três velhas,
tias da professora, miúdas e cor de piche, torravam milho no caco,
pisavam milho no pilão, enchiam de fubá caixinhas coloridas e
franjadas. Os alunos astutos compravam aquilo, massa pegajosa,
amarga, nauseabunda — e os ganhos da indústria caseira excediam
talvez o vencimento que o Tesouro pingava. Constrangida no
espartilho, branqueada a pó-de-arroz, D. Maria do O fingia
humanizar-se lá fora: a voz amansava, a carne se reprimia,
doméstica, os bugalhos amarelentos se ocultavam sob as pálpebras
roxas — e a fera metia as garras nos cabelos das crianças,
adulando.
Entre
as vítimas desse diabo, a mais infeliz era minha prima Adelaide. Os
pais não queriam separar-se dela. E, ricos, podendo confiá-la a
estabelecimento que ensinasse línguas difíceis, tinham resolvido
instruí-la sem perdê-la de vista.
Os
colégios mais ou menos europeus ficavam longe. Iriam soltá-la por
este mundo, sujeita a inconveniências? Não. A pequena conservaria,
perto de casa, todas as virtudes: bordaria fronhas; ligar-se-ia no
altar, sem namoro, a um rapaz de juízo e fortuna, bem apessoado. E
diferençar-se-ia das mulheres que fumavam cachimbo de barro. Uma
Adelaide letrada, não muito letrada, com as inovações e as letras
necessárias. Uma Adelaide que se banhasse no riacho e falasse
francês.
Ora,
João Leite, dono do Cavalo-Escuro, não conhecia os degraus da
ciência. Acreditara num diploma da escola normal, entregara a filha
a D. Maria do O. E, em consequência, uma vez por semana, carros de
bois e cargueiros derramavam na escola formas de açúcar, melado,
sacos de grão, farinha. A princípio esse exagero fora recebido com
alvoroço, mas habituaram-se a ele, esqueceram agradecimentos, enfim
aboliram as gatimônias dispensadas ao portador risonho, o crioulo
José Luís. Adelaide se rebaixara. Estava ali quase órfã — e a
horrenda mulata inchava e se envaidecia, publicando por meios
indiretos que fazia caridade a uma intrusa. Insensível ao pagamento
largo, torturava-a.
Certamente
não começara impondo-lhe maus tratos: afeita à liberdade, ao
mando, às correrias, às injúrias a caboclos na bagaceira, Adelaide
se rebelaria contra a nova autoridade, aparentemente igual às
figuras que serviam na casa-grande. Indispensáveis meses e anos para
dominar a criaturinha, degradá-la, enquanto o algoz se acomodava
também à situação, experimentava as forças, apurava a maldade.
No começo o jeito servil, o sorriso convencional; em seguida um
olhar frio, gesto de enfado, palavra dura; a lisonja recomposta;
novamente acrimônia e aspereza. Idas e vindas, intermitências. Um
castigo — e logo o afã de obliterá-lo, explicá-lo como trabalho
de educação. A covardia manhosa adoçava umas tréguas curtas. Não
fosse a garota badalar, pedir aos pais que a retirassem daquele
inferno. Não pedia. Talvez até ignorasse que estava nele. Tinham-na
vencido, tinham-lhe gasto o fio em pedra de amolar. Afinal
desapareceram as precauções. El a menina, triste, olhava a rua, os
montes verdes. Silenciosa, descia, cada vez mais descia,
esgueirava-se, tentava ocultar a magreza, na aula muito povoada.
Tentativa inútil. D. Maria do O atravessava as pessoas com os olhos,
achava num canto da sala o corpinho fugidio, imputava-lhe qualquer
falta. Às vezes a casa não estava bem varrida. Marcas de poeira,
visíveis entre os bancos, avultavam apontadas pelo grosso dedo
severo, comentadas pela voz estridente. E a infeliz, vergando sob a
cólera despropositada, ia buscar a vassoura, limpar o tijolo,
havia-se reduzido à condição de criada. Na labuta doméstica,
sofria a birra das três velhas miúdas e cor de piche. Essas fúrias
boçais vinham de classe muito baixa, tinham decerto adquirido em
senzalas o veneno que destilavam. Da subserviência, antiga, passavam
às ordens brutais, vingavam-se numa possível descendente de
senhores remotos. Adelaide curvava o espinhaço, calejava na
obediência, esmorecia nos trabalhos mais humildes.
A
estranha inversão de papéis me surpreendia e revoltava, mas a
surpresa e a revolta nunca se manifestaram. Longe da escola, em
arrancos de coragem, afrontei as megeras.
— Ah!
negras!
Ali
no corredor, o livro esquecido nos joelhos, vendo o quintal, o morro,
ouvindo as lições cantadas e a arrelia da mestra, anulava-me,
colava-me à parede, pusilânime e esquivo. Não ousaria revelar
afeto a minha prima, não me arriscaria sequer a observar o martírio
dela. Nas horas de aflição, multiplicadas, baixava a cabeça,
fingia não perceber os braços finos, o rosto murcho e pálido, a
boca torcida, os grandes olhos assustados, sem lágrimas. Receava,
mostrando qualquer sinal de interesse, magoar a pobre, humilhá-la
ainda mais. Talvez isso fosse hipocrisia: o que eu receava
intimamente era comprometer-me associando-me àquela fraqueza,
receber cachações destinados a ela. Não me parecia que Adelaide
pudesse reabilitar-se, recuperar a alma de proprietária, dominar os
cambembes esvaídos no eito. O engenho perdera a grandeza, era uma
sombra de engenho, e a sinhá-moça arrastaria anos de vexame, até o
fim da vida.
Tinha-me
chegado vagas notícias da escravidão, sem relho e sem tronco,
aceitável, quase desejável. Maria Moleca e Vitória, livres, viviam
sossegadas em casa de meu avô. Não me vinha a ideia de que se
conservassem ali por hábito ou por não terem para onde ir. Estavam
bem, sempre tinham estado bem. As tias da professora haviam sido
mucamas de luxo, sem dúvida, antes da maluqueira de uma princesa
odiosa. Ingratas. Não me ocorria que alguém manejara a enxada,
suara no cultivo do algodão e da cana: as plantas nasciam
espontaneamente. E não pensava no sacrifício necessário às três
mulheres para levantar a sobrinha fusca, desbastá-la, vesti-la,
escová-la, impingi-la na sociedade. Essa metamorfose era casual. E
arrepiava-me.
Coitada
de minha prima, tão boa, tão débil, suportando as enxaquecas das
miseráveis. Lugar de negro era a cozinha. Por que haviam saído de
lá, vindo para a sala, puxar as orelhas de Adelaide? Não me
conformava. Que mal lhes tinha feito Adelaide? Por que procediam
daquele modo? Por quê?
Graciliano
Ramos, in Infância
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