domingo, 29 de março de 2020

O estranho casal

Histórias servem como fundamentos e pilares das sociedades humanas. Com o desenrolar da história, histórias sobre deuses, nações e corporações cresceram tão poderosamente que começaram a dominar a realidade objetiva. A crença no grande deus Sobek, no Mandato do Céu ou na Bíblia possibilitou a construção do lago Fayum, da Grande Muralha da China e da catedral de Chartres. Infelizmente, a fé cega nas histórias não raro acarretou a concentração dos esforços humanos em incrementar a glória de entidades ficcionais como deuses e nações, em vez de melhorar a vida de seres reais e sencientes.
Essa análise ainda se sustenta hoje? À primeira vista, pode parecer que a sociedade moderna é muito diferente dos reinos do Egito antigo ou da China medieval. O surgimento e a ascensão da ciência moderna não teriam mudado as regras básicas do jogo humano? Não seria verdadeiro dizer que, apesar da continuada importância de mitos tradicionais, os sistemas sociais modernos cada vez mais se baseiam em teorias científicas objetivas, como a teoria da evolução, que não existia no Egito antigo ou na China medieval?
Podemos argumentar que as teorias científicas são um novo tipo de mito e que nossa crença na ciência não é diferente da antiga crença egípcia no grande deus Sobek. Mas a comparação não se sustenta. Sobek existia apenas na imaginação coletiva de seus devotos. Com efeito, rezar a Sobek ajudou a cimentar o sistema social egípcio, permitindo a construção, pelo povo, de represas e canais que impediram inundações e secas. Mas as orações por si mesmas não elevaram nem baixaram minimamente o nível das águas do rio Nilo. Em contrapartida, teorias científicas não consistem apenas em um modo de unir pessoas. Diz-se que Deus ajuda a quem se ajuda. É um modo indireto de dizer que Deus não existe, mas, se nossa crença n’Ele nos inspirar a fazer algo a nós mesmos — isso ajuda. Antibióticos, diferentemente de Deus, ajudam até mesmo os que não se ajudam. Eles curam infecções, quer acreditemos neles ou não.
Consequentemente, o mundo moderno é muito diferente do mundo pré-moderno. Faraós egípcios e imperadores chineses fracassaram em derrotar a fome, a peste e a guerra, a despeito de milênios de esforço. Sociedades modernas conseguiram fazê-lo em poucos séculos. Não seria isso o fruto do abandono de mitos subjetivos em favor de conhecimento científico objetivo? E não podemos esperar que esse processo se acelere nas próximas décadas? À medida que a tecnologia nos capacita a fazer a atualização de humanos, vencer a velhice e encontrar a chave da felicidade, não deveriam as pessoas importar-se menos com deuses, nações e corporações ficcionais e se concentrar em decifrar a realidade física e biológica?
Na verdade, as coisas são muito mais complicadas. A ciência moderna certamente mudou as regras do jogo, embora não tenha apenas substituído os mitos pelos fatos. Os mitos continuam a dominar o gênero humano. A ciência só os torna mais fortes. Em vez de destruir a realidade intersubjetiva, a ciência permitirá que ela controle as realidades objetivas e subjetivas de modo mais completo. Graças aos computadores e à bioengenharia, a diferença entre ficção e realidade se tornará indistinta, à medida que pessoas reformatam a realidade para que se encaixem em suas ficções prediletas.
Os sacerdotes de Sobek imaginaram a existência de crocodilos divinos enquanto o faraó sonhava com a imortalidade. Na realidade, o crocodilo sagrado era um réptil de pântano muito ordinário vestido em refinamentos dourados, e o faraó era tão mortal quanto o mais pobre camponês. Após a morte, seu corpo era mumificado com bálsamos de preservação e perfumes olorosos, mas, ainda assim, continuava tão sem vida quanto um morto pode ser. Os cientistas do século XXI, por sua vez, poderiam ser capazes de engendrar supercrocodilos reais e prover a elite humana de juventude eterna aqui na Terra.
Em decorrência, o surgimento e a ascensão da ciência tornarão alguns mitos e religiões mais poderosos do que nunca. Para entender por quê, e para enfrentar os desafios do século XXI, deveríamos, portanto, revisitar uma das questões mais perturbadoras entre todas: como é que a ciência moderna se relaciona com a religião? A impressão que se tem é de que já se disse tudo a ser dito sobre essa questão. Mas, na prática, ciência e religião são como marido e mulher que, após quinhentos anos de aconselhamento matrimonial, não se conhecem. Ele ainda sonha com a Cinderela e ela ainda anseia pelo príncipe encantado, enquanto discutem de quem é a vez de levar o lixo para fora.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário